quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

XII Semana de Ciências Sociais - UFU


Entre os dias 11 e 14 de dezembro de 2012, ocorre a "XII Semana de Ciências Sociais" da Universidade Federal de Uberlândia. O evento teve início ontem, com a apresentação de cantos Maxakali.


A conferência de abertura - com a apresentação de dois episódios da série inédita "Foucault Loucura Desrazão" (direção de Eryc Rocha e Roteiro de A. Queiroz) e a palestra "Ouvir o real: relatos da biopolítica" - foi transferida para o dia 18/12/2012 (próxima terça-feira), no auditório 5O-C, as 18:30hrs, no campus Santa Mônica. Para substituir a atividade, assistimos o documentário "Foucault por ele mesmo", seguido de um debate com o público com a presença minha e do Profº Drº Antônio Carlos Petean.

Segue abaixo um resumo da programação da semana:

Quarta-feira - 12/12/2012

8:00hrs - Conferência: Eleições e Participação Política no Brasil - Profº Drº Jairo Nicolau (UFRJ)
Local: Auditório 5O-C

14:00 - Comunicações de Trabalhos
Antropologia: Auditório 5O-C
Sociologia: Auditório 5O-E
Ciência Política: Auditório 5O-F

19:00hrs - Conferência: Gênero e Mídia: a marcha das vadias e outras experiências.
Profº Drº Márcio Ferreira (INCIS/UFU)
Representante do PIBID
Representante da Marcha das Vadias
Local: Auditório 5O-C

Quinta-feira - 13/12/2012

8:00hrs - Conferência: Novas formas de organização social e a crise do sindicalismo.
Profº Drº José dos Santos Souza (UFRRJ)
Local: Auditório 5O-C

14:00hrs - Seminário: Democratização da Mídia
Representante do CACOS/ENECOS
Representante do CACIS
Local: Auditório 5O-C

19:00 - Cine Debate: Pesquisadores do Islã - a história de um site.
Profª Drª Francirosy Campos Barbosa Freitas (USP)
Local: Auditório 5O-C

Sexta-feira - 14/12/2012

8:00hrs - Conferência: O Islã no Brasil: uma perspectiva comparativa.
Profª Drª Francirosy Campos Barbosa Freitas (USP)
Local: Auditório 5O-C

14:00hrs - Mini-Cursos:

Perspectivas Pós-Estruturalistas nas Ciências Sociais: Foucault, Deleuze e Guattari.
Profº Drº Diego Soares da Silveira (INCIS/UFU)
Local: Auditório 5O-C

Educação e Saber em Nietzsche e Edgar Morin.
Profº Drº Antônio Carlos Petean (INCIS/UFU)
Local: Auditório 5O-F

Gênero: categoria analítica e dimensão estruturante de sociabilidades.
Profª Drª Maria Lúcia Vannuchi
Local: Auditório 5O-E

16:00hrs - Mini-Cursos

Cultura do Controle e Estado Penal na Sociologia Contemporânea
Profª Drª Débora Regina Pastana
Local: Auditório 5O-C

Cidade e relações etnicorraciais: OBEC mapeando redes sociais de superação do racismo
Profª Drª Claudelir Corrêa Clemente
Local: Auditório 5O-F

19:00hrs - Seminário: Luta pela Terra: questão Guarani Kaiowa e a Ocupação do Glória
Representante dos Guarani Kaiowa
Representante da Ocupação do Glória
Local: Auditório 5O-C

Organização: Coordenação do Curso de Ciências Sociais; Coordenação de Extensão; Instituto de Ciências Sociais; PPGCS; PET Ciências Sociais; NUPECS; CA - Ciências Sociais; Revista Eletrônica de Ciências Sociais.
    

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Modos de Subjetivação em Foucault

"Em suma, para ser dita 'moral' uma ação não deve se reduzir a um ato ou a uma série de atos conformes a uma regra, lei ou valor. É verdade que toda ação moral comporta uma relação ao real em que se efetua, e uma relação ao código a que se refere; mas ela implica também uma certa relação a si; essa relação não é simplesmente 'consciência de si', mas constituição de si enquanto 'sujeito moral', na qual  o indivíduo circunscreve a parte dele mesmo que constitui o objeto dessa prática moral, define sua posição em relação ao preceito que respeita, estabelece para si um certo modo de ser que valerá como realização moral dele mesmo; e, para tal, age sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe-se à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se. Não existe ação moral particular que não se refira à unidade de uma conduta moral; nem conduta moral que não implique a constituição de si mesmo como sujeito moral; nem tampouco constituição do sujeito moral sem 'modos de subjetivação', sem uma 'ascética' ou sem 'práticas de si' que as apoiem. A ação moral é indissociável dessas formas de atividade sobre si, formas essas que não são menos diferentes de uma moral a outra do que os sistemas de valores, regras e de interdições" - História da Sexualidade II, M. Foucault.

[Selecionei este breve trecho por ele abrir um caminho em direção à problematização do "sujeito moral" nas ciências. Isso implica uma reflexão sobre a maneira como o fazer científico envolve um trabalho cotidiano sobre si mesmo e com os outros (humanos e não humanos). Ao lado desse exercício reflexivo - diretamente associado à noção de "modos de subjetivação" em Foucault - será necessário abordar outro tema importante: os modos 'disciplinares' de objetivação das relações de conhecimento. Este aspecto é abordado em outros trabalhos de Foucault, principalmente, no livro "Vigiar e Punir". Inclusive, foi a releitura desta obra durante o processo de escrita da tese que me fez problematizar o espaço e o tempo laboratorial como componentes de uma máquina disciplinar, que age sobre os corpos e subjetividades dos cientistas. Esses dois aspectos - os modos de subjetivação e objetivação - tiveram um efeito importante nos estudos da ciência denominados de "epistemologia histórica" (Daston e Galison) e "ontologia histórica" (Ian Hacking).]
  
[Nesta semana, realizamos a terceira reunião do Grupo de Estudo "Saber e Poder em Foucault", desta vez para refletir e debater o segundo volume da História da Sexualidade. Devido à série de seminários do Nupecs com a temática foucaultiana, retomaremos às atividades do grupo somente em janeiro de 2013].

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Seminários Externos do NUPECS - Dez/2012

Em dezembro de 2012, o Núcleo de Pesquisa em Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia (NUPECS/UFU) está dando início à série de palestras "Seminários Externos do NUPECS", que contará com novas edições no ano de 2013.

Segue abaixo a programação dos dois seminários.

PROGRAMAÇÃO - DEZEMBRO/2012

03/12/2012 - 18-20hrs
"Andando com Foucault: da biopolítica à ecopolítica" - Profº Drº Edson Passeti (PUC/SP)

11/12/2012 - No âmbito da Semana de Ciências Sociais
18-19hrs - Pré-Lançamento Nacional do Vídeo Documentário "Foucault Loucura Desrazão", dirigido por Eryc Rocha (SESC)

19-21hrs - "Ouvir o real: relatos da biopolítica" - Profº Drº André Queiroz (UFF).

LOCAL: Auditório 5O, Bl. C - Campus Sta. Mônica - UFU

Observação: será fornecido Certificado de Participação.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

1º Seminário Internacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Na próxima semana, entre os dias 19 e 21 de novembro, será realizado, em Uberlândia, o "1º Seminário Internacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais", uma atividade organizada pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia da Universidade Federal de Uberlândia. Na ocasião, esterei participando do evento como debatedor dos trabalhos apresentados no GT 3 - Educação, Políticas Públicas e Teoria Sociais. Segue abaixo a programação resumida e o link para o blog do evento.

19/11/2012

08-08:30
Credenciamento

09-12hrs - Mesa de Abertura: "Trabalho, Estado e Classes Sociais no Capitalismo Contemporâneo"
Profº Drº Nicolas Carrera (Universidade de Buenos Aires)
Profª Drª Virgina Fontes (UFF, FioCruz)
Mediadora: Profª Drª Patrícia Tropia (UFU)

13:30-14:30 - Apresentação de Pôsteres
14:30-18:30 - Grupos de Trabalho

20/11/2012

09-12hrs - Mesa Redonda: "O Trabalho de Campo e Etnografia"
Profº Drº Edmundo Antonio Peggion (PPGAS-UFSCAR)
Profº Drº Dagoberto José Fonseca (UNESP)
Mediador: Marcel Mano (UFU)

Idem

19:30-22hrs - Mesa Redonda: "Macumba: diversidades das religiosidades de matriz africana"
João Marcos Allen (UFU)
Marili Junqueira (UFU)
Jaqueline Talga
Vanesca Tomé Paulino
Representantes das religiosidades afro-brasileira do Triângulo Mineiro e Paranaíba

21/11/2012

09-12hrs - Mesa Redonda: "Sociabilidades, Identidades e Subjetividades"
Profº Drº João Carlos Zuin (UNESP)
Profª Drª Jacy Alves de Freitas (INHIS - UFU)
Mediadora: Profª Drª Eliane Ferreira (UFU)

Idem

19:30 - Festa de Encerramento do evento

A programação completa e outras informações podem ser conferidas no link abaixo.

http://sinppgcsufu.blogspot.com.br/p/programacao.html
 

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Participação em Painel no 10º Congresso da Abrasco - Porto Alegre

Nesta semana, esterei de passagem pela saudosa capital dos casais, Porto Alegre, onde irei participar do painel "Concepções sobre saúde e adoecimento, sistema biomédico e políticas na área de saúde", organizado por Sílvia Guimarães (UnB), no âmbito do 10º Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

A atividade será realizada no dia 16 de novembro (sexta-feira), na sala 503 da Faculdade de Educação (FACED/UFRGS), e conta também com a presença das professoras Cristina Dias da Silva (UFJF), Rita de Cássia Neves (UFRN) e Paula Viana (Grupo Curumim).

Na ocasião, pretendo tecer reflexões sobre a interface entre políticas públicas na área de saúde e pesquisas na área da biomedicina que envolvem o chamado 'acesso' aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Farei isso a partir de uma etnografia da ciência realizada junto a uma pesquisa de farmacologia que visa a produção de fitoterápicos a partir de plantas medicinais e conhecimentos coletados em uma comunidade ribeirinha do Alto Amazonas. Essa iniciativa foi autorizada pelo governo brasileiro e se insere dentro da proposta de estabelecimento de um 'diálogo' entre a ciência e os saberes medicinais ribeirinhos.

A programação do evento é enorme e conta com a presença de especialistas de diversas áreas científicas, de órgãos governamentais e centros de pesquisa associados à temática da saúde pública. Para quem tiver interesse, a programação está disponível no link abaixo.

http://www.saudecoletiva2012.com.br/home.asp

domingo, 28 de outubro de 2012

O mensalão e a crise da democracia partidária

A vontade de domínio político totalitário resulta de uma mentalidade que vê na democracia apenas um 'instrumento' para a construção de uma 'sociedade-partido', no melhor estilo '1984', de G. Orwell. O "Grande Irmão' tem um plano para dominar o mundo, independentemente dos meios usados para a conquista de tal feito. Tudo vale, vale tudo: comprar o mandato popular de parlamentares; apoiar genocidas do agronegócio; abraçar os apoiadores da ditadura; destruir o meio de vida de índios e ribeirinhos; corromper funcionários públicos; desrespeitar a Constituição Brasileira. A lista de 'meios' usados para tal finalidade deixaria até Maquiavel constrangido. E a opera assume tons fantásticos, com cenas surrealistas, com verdinhas circulando em cuecas e malas pretas, com ministros atuando nos bastidores do poder, convertendo a máquina pública num exército de uma quadrilha oculta, que age nos bastidores do poder partidário, manipulando tendência e instituindo um modo perverso de governar. Para essa ala dominante do PT paulista, a democracia é sinônimo de luta pela hegemonia totalitária: maquiavelismo na veia com alguns toques gramscianos.

Mas o mensalão de José Dirceu e Cia coloca a própria democracia em crise. Lembro que, em 1989, havia uma expectativa popular em torno de uma 'limpeza ética do poder'. Após décadas de regime militar, a sociedade brasileira viu-se diante da tarefa de construir novamente um estado de direito e democrático. Vivíamos o período pós constituinte. O tema da ética e da reforma do estado tomou a pauta dos candidatos, em um debate político acirrado e repleto de afirmações demagogas. Acabou ganhando, com o apoio da Organização Tabajara (Rede Globo), o zé bonitinho do momento. Collor era o 'caçador de marajás', o homem que prometia 'limpar' a corrupção e o mal uso da máquina pública da história do país. Um messias prometendo redenção. Como sabemos hoje, tudo não passou de uma grande encenação pirotécnica, uma retórica superficial que acabou levando o alagoano ao poder. O discurso sobre a ética - na política real do dia a dia - é agenciado nas lutas diárias pelo poder. Tempos depois tivemos que acertar as contas com o destino. O movimento 'cara pintada' - ao buscar recuperar o tema da ética na política - expressou a decepção do povo brasileiro em uma ainda recente e jovem democracia.

Depois veio o período "FHC", eleito sob a bandeira de um 'Real Forte' e uma economia que apresentava tendências claras de recuperação. Com o controle da inflação, teve também início uma lenta e ampla reforma neoliberal do estado, através de uma transformação profunda dos mecanismos de exercício do governo. A tecnicização da política deu origem a uma governamentalidade neoliberal que ainda se mantem ativa e atuante até hoje. Os programas de privatização tucanos são uma grande 'caixa preta' de corrupção e descaso com o poder público. Para se manter no governo e governar, FHC estabeleceu relações fisiológicas com setores à direita do prisma político, como o antigo PFL (hoje DEM). Instituiu-se ali uma nova tecnologia de governo: um tecnicismo academicista (com forte viés economicista) apoiado em uma base política 'vampiresca'. Enquanto FHC reformava e tecnicizava de um lado, seus aliados se deliciavam com o mercado das privatizações do outro. Foi o período triste do Estado Mínimo, do descaso com a saúde e com a educação, de perseguição aos movimentos sociais. Não há dúvida de que o governo do PSDB enredou-se em sua própria malha de apoio, rendendo-se ao velho estilo fisiológico de fazer política performado pelos setores mais conservadores da política brasileira. Sem falar que foram oito longos anos sem aumento para diversos setores do funcionalismo público, oito anos de sucateamento do ensino público superior.  

Foi a partir desta conjuntura de decepção e amargura que o PT construiu o seu caminho em direção à presidência da república. Baluarte da ética no poder público, os petistas perseguiam os corruptores e corruptos diariamente, colocando-se como uma 'estrela' em um céu escuro e sinistro de corrupção e descaso com o bem público. As irregularidades associadas ao processo de privatização ocorrido no Governo FHC foram alvo da metralhadora giratória de figurinhas como José Genuíno e Dirceu. O PT da oposição era um forte porta-voz da mudança e da ética na política.

Mas ainda faltava algo. A simples retórica da ética não era suficiente para convencer os patrões da mídia, os empresários, as indústrias, os bancários, enfim, todos os agentes formadores de opinião pública. Foi então que entrou em cena o 'maquiável brasileiro', costurando literalmente as parcerias que levaram Lula ao poder no início do século XXI. José Dirceu costurou uma complexa rede de apoio político, sendo que parte dessa rede manteve-se sempre nos bastidores, financiando a campanha milionária que levou Lula à presidência da República. Somente hoje, com a conclusão do julgamento do 'mensalão', podemos avaliar a profundidade e a densidade das associações políticas e econômicas que conduziram o primeiro presidente operário ao poder da república.

Mas a regra da política-partidária é básica: todo apoio será cobrado em dobro mais a frente. Foi assim que o núcleo político do PT paulista levou o primeiro governo Lula à enredar-se na sua própria rede, reproduzindo o mesmo erro de FHC. Sob a bandeira de um 'pragmatismo' vazio, nos bastidores da república, uma verdadeira máfia de corruptores e corruptos se formou na penumbra da noite, sob o manto pardo do poder republicano. Usando do dinheiro do contribuinte, os antigos porta-vozes da ética na política deram início a um audacioso plano para conquistar o Brasil e o mundo, tendo no comando José 'Cérebro' Dirceu e José 'Pink' Genuíno. Nesse caminho incerto, formou-se o núcleo de gestão fraudulenta.

Como um vírus que cresce e avança quando não encontra obstáculos ou quando consegue vencê-los sem maior resistência,  esse núcleo fraudulento e corrupto foi aos poucos construindo sua hegemonia no governo e no partido, com o expurgo dos honestos e o estabelecimento de novas parcerias utilitárias. De uma hora para outra, as antigas vítimas da metralhadora giratória petista passaram a pousar ao lado das lideranças do PT: reis da soja e do agronegócio, grileiros; empresários; José Sarney; Paulo Maluf; o inesquecível Roberto Jefferson, ACM e todos aqueles 'partidos-vampiros', que vivem sugando a máquina pública em benefício próprio. Nesse processo de busca de 'poder pelo poder', rasgou-se a Constituição Democrática e Cidadã e afundou-se a história do principal partido da recente democracia brasileira. Quando o voto de parlamentares e eleitores é transformado em uma 'mercadoria' de barganha ilícita, os valores democráticos entram em profunda crise institucional.

Surge deste contexto sinistro um herói pouco provável: um STF composto por juristas escolhidos à dedo por Lula, a direção nacional (paulista) do PT e seus ministros mais próximos. O 'feitiço' virou contra o 'feiticeiro'. O Castelo de Areia (Kafka) desmoronou-se por completo. O julgamento do mensalão revelou aos brasileiros e ao mundo esta face obscura e sinistra do 'novo PT' de José Dirceu e Cia. Nesse processo histórico, o partido foi transformado em uma empresa, introjectando a lógica nefasta do neoliberalismo, que transforma sonhos e pessoas em números, estatísticas e cálculos de 'custo e benefício'. Aprimoraram-se as tecnologias governamentais em busca de um controle totalitário e absoluto da população e do território: surge daí toda uma nova governamentalidade. A 'vida' humana e não humana é transformada pela lógica da economia política.

Quando o STF finalmente reconheceu, mapeou e identificou a malha de corrupção que perpassava os bastidores da república, a democracia já estava abalada em seus alicerces fundamentais. A mentalidade da hegemonia política inaugurada por Dirceu já havia conquistado adeptos por toda parte. A ética do vale tudo predominava por todos os corredores do Castelo. Assistimos à banalização da ideologia partidária em nome de uma política de alianças com resultados duvidosos. Nesse caminho, o projeto político emancipador - de caráter trabalhista - está se transformando em um projeto desenvolvimentista, que consegue reunir em um só programa de governo o pior da nossa história político-partidária: assistencialismo + desenvolvimentismo autoritário e totalitário. Vamos transformar o Brasil em uma grande 'Miami Tropical'.

Mas os idiotas não só perderam a modéstia, como também passaram a sofrer seriamente de 'bipolaridade'. De um lado, continuam atuando sob o manto trabalhista, colocando-se retoricamente ao lado dos trabalhadores e 'excluídos' da sociedade do grande capital; do outro, rasgam a constituição e convertem um projeto ideológico em um programa de consolidação de uma sociedade de consumo cujos pilares foram estabelecidos durante a Ditadura Militar. Surge o 'trator do PAC' atropelando tudo e todos que se colocam no seu caminho: ecossistemas, plantas,  animais, ribeirinhos, pescadores, comunidades tradicionais e indígenas. Vamos passar o Brasil à limpo, transformar este país em uma grande potência colonial. Nesse processo, toda forma de resistência do mundo da vida é domesticada por uma redução da discussão política  aos números e tabelas do planejamento contábil e empresarial: "O problema do neoliberalismo é, ao contrário, saber como se pode regular o exercício global do poder político com base nos princípios de uma economia de mercado" (Foucault, Nascimento da Biopolítica).

Ao lado dessa transfiguração interna da ideologia lulista promovida pelos seus assessores mais diretos, temos as políticas sociais de caráter 'reparatório', ora voltadas para a inserção dos setores mais pobres e miseráveis na sociedade de consumo, ora voltadas para a efetivação de um desenvolvimento predatório sustentado por um poderoso lobby político no congresso nacional. Enquanto a economia e os economistas vão muito bem obrigado, a política e a democracia vão mal. O esvaziamento do embate ideológico e político, a metamorfose constante de partidos e candidatos, tudo isso contribui para a falência do sistema partidário tal como o conhecemos hoje. A morosidade em realizar uma reforma política profunda agrava ainda mais o problema. Criou-se uma malha fina tecnicista que perpassa todos os campos de governamentalidade. O desenvolvimentismo se tornou a moda do momento e não existe espaço para o debate político.

Completa-se, aqui, o ciclo de transfiguração da consciência política operária surgida nos porões da ditadura, quando a vítima assume como sua a consciência dos seus algozes. Para entender esse processo com um todo, precisamos não só de uma teoria social, mas também de uma teoria psicanalítica.

 Os orquestradores desse genocídio da democracia justificam suas ações apontando para seus inimigos e dizendo: 'se eles também roubaram e continuam roubando, porque nós não podemos roubar?'. Ora, como diz um velho ditado popular, 'faz parte da natureza da cobra picar'. A corrupção ativa e passiva faz parte da essência da direita brasileira. O mensalão do PSDB não só era aguardado, como expressa a natureza deste partido. Nenhuma surpresa aí. Mas com o PT é diferente. O povo aguardava uma mudança de paradigmas na política brasileira. Ganhou em troca uma grande decepção e o desconto na compra da geladeira do ano. Vamos inflar o capitalismo e vender a democracia. Acabaram-se as utopias. Ao final da história (que é também o começo de uma tragédia coletiva), sobrou apenas uma malha extensa de corruptores e corruptos, que agem nos bastidores e contam com a cobertura política de um bando de avestruzes.

["Quando uma avestruz enterra sua cabeça na areia ao aproximar-se o perigo, muito provavelmente toma a rota mais feliz. Ela esconde o perigo, e então calmamente diz que não há perigo algum; e se sente de maneira perfeitamente segura de que não há perigo, por que haveria de levantar a cabeça para ver? Um homem pode passar a vida mantendo sistematicamente fora de vista tudo o que poderia causar uma mudança em suas opiniões" (Charles Peirce, Ilustrações da Lógica da Ciência).]

Vitória nas urnas, mas derrota na ética, na ideologia e na política. Com isso, nós, brasileiros, perdemos todos. Vivemos em uma conjuntura onde tudo parece se igualar, onde só temos a possibilidade de escolher entre o 'mesmo' e o "mesmo', entre o ruim e o menos pior, entre uma cesta básica e um pontapé no traseiro, entre a bolsa-família e um tapinha nas costas. Triste fim da democracia e da utopia: o projeto de emancipação e libertação da classe trabalhadora foi transfigurado em um programa de transformação de cidadãos em consumidores.

O que dizer numa situação como essa se não: 'aos vencedores as batatas'!
                                           

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Vida e Materialismo Histórico em Marx e Engels

"Com relação aos alemães, que não dispõem de quaisquer premissas, devemos lembrar a existência de uma primeira premissa de toda a existência humana e, portanto, de toda a História, ou seja, a premissa de que os homens têm de estar em condições de viver para poderem fazer História. Para viver é preciso, sobretudo, comer, beber, vestir-se, ter uma habitação etc. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e a verdade é que este é um fato histórico, uma condição fundamental de toda a História, que ainda hoje, tal como há milhares de anos, tem de ser realizado dia a dia, hora a hora, para, ao menos, manter os homens vivos. Mesmo quando a realidade se reduz a um simples bastão, como como São Bruno, essa mesma realidade pressupõe a atividade da produção deste bastão. Assim a primeira coisa a fazer em qualquer concepção da História é observar este fato fundamental em todo o seu significado e em toda a sua dimensão, e atribuir-lhe a importância que lhe é devida.

(...) A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, como da alheia, na procriação, surge imediatamente como uma dupla relação: por um lado como relação natural, por outro como relação social, no sentido em que aqui se entende a cooperação de vários indivíduos não importando em que circunstância, maneira e com que objetivos. Disto resulta que um determinado modo de produção ou estágio de desenvolvimento industrial esteja sempre ligado a um determinado modo de cooperação, ou fase social, e este modo de cooperação é ele próprio uma 'força produtiva'; e que a quantidade das forças produtivas acessíveis aos homens condiciona o estado da sociedade e, portanto, a 'História da Humanidade' tem de ser estudada e tratada em conexão com a história da indústria e da troca.

Somente agora, depois de termos examinado quatro momentos, quatro facetas das relações históricas primordiais, verificamos que o homem também tem 'consciência'. Mas não se trata de uma consciência que seja de antemão consciência 'pura'. Sempre pesou sobre o 'espírito' a maldição de estar preso à matéria, a qual aqui se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, em outras palavras: sob a forma de linguagem. A linguagem é tão velha como a consciência, a linguagem é a consciência real prática que existe também para outros homens e que, portanto, só assim existe também para mim, e a linguagem só nasce, como a consciência, da necessidade, da carência de contato com outros homens. Onde existe uma relação, ela existe para mim.

(...) A consciência da necessidade de manter relações com os outros indivíduos marca o começo da consciência do homem de que vive, de fato, em sociedade. Este começo é tão animal quanto a própria vida social desta fase, é mera consciência gregária e, neste aspecto, o homem se distingue aqui do carneiro apenas pelo fato de a sua consciência substituir o instinto ou de o seu instinto ser consciente".

Referência: MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã: teses sobre Feuerbach (Relações Históricas Primordiais).

Imagem: Cássio Loredano (Editora Boitempo)            

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O Cego e a bengala - Merleau-Ponty



"Na verdade, todo hábito é ao mesmo tempo motor e perceptivo, porque, como dissemos, reside, entre a percepção explícita e o movimento efetivo, nesta função fundamental que delimita ao mesmo tempo nosso campo de visão e nosso campo de ação. A exploração dos objetos com uma bengala, que há pouco apresentávamos como um exemplo de hábito motor, também é um exemplo de hábito perceptivo. Quando a bengala se torna um instrumento familiar, o mundo dos objetos táteis recua e não mais começa na epiderme da mão, mas na extremidade da bengala. É-se tentado a dizer que, através das sensações produzidas pela pressão da bengala na mão, o cego constrói a bengala e suas diferentes posições, depois que estas, por sua vez, medeiam um objeto à segunda potência, o objeto externo. A percepção seria sempre uma leitura dos mesmos dados sensíveis, ela apenas se faria cada vez mais rapidamente, a partir de signos cada vez mais claros. Mas o hábito não consiste em interpretar as pressões da bengala na mão como signos de certas posições da bengala, e estas como signos de um objeto exterior, já que ele nos dispensa de fazê-lo. As pressões na mão e a bengala não são mais dados, a bengala não é mais um objeto que o cego perceberia, mas um instrumento com o qual ele percebe. A bengala é um apêndice do corpo, uma extensão da síntese corporal".

Referência: MERLEAU-PONTY, M. 2011. Fenomenologia da Percepção (Capítulo IV). São Paulo: Martins Fontes.   

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Metrologia e Formatação em Serres

"Enfim, como navegar sem instrumentos para medir os ângulos, sem regras de cálculo, sem um modelo astronômico, sem compasso nem portulano, sem um mapa que indique o traçado exato do espaço a percorrer? Por meio da generalização dessa métrica, essas máquinas e referências contribuem para um verdadeiro controle das operações.

Essa padronização de pesos e medidas, de sinais e atos, torna possíveis as trocas mundializadas entre o que então se chamava de terra habitada. No espaço desse tempo, nenhuma economia de tal envergadura teria sido capaz de se organizar nem funcionar sem esses números, sem essas operações, não apenas sem as medidas que eles permitem ou pressupõem, mas, sobretudo, sem essa metrologia generalizada. A economia é resultante dela, pelo menos na mesma medida em que a condiciona. Em resumo, sua novidade pressupõe, ou acompanha, no mesmo momento e nos mesmos lugares, a emergência da ciência moderna: em países mercantilistas como a Itália e Flandres, pátrias de Girolamo Cardano (1501-1576) e Simon Stevin (1548-1620), respectivamente. Não que eu acredite, repito, que a economia tenha determinado as descobertas científicas, mas o reagrupamento de um conjunto de técnicas do mesmo gênero, um gênero ao qual procuro dar um nome, condiciona as trocas complexas do comércio realizado em torno do Mediterrâneo na época do Renascimento, assim como a emergência da ciência que herdamos.

(...) A esse gênero de coisas dou o nome de formato: a contabilidade formata as trocas, assim como, nos dias de hoje, computador formata e globaliza nossas informações; denominemos, pois, formatação a padronização do conjunto dessas medidas científicas, práticas, culturais e até mesmo artísticas, nos casos das partituras musicais destinadas aos corais e nas pinturas dos mestres. Uso o exemplo da contabilidade porque a palavra procede o que, em latim anglicizado, designa nossas máquinas: ao agrupar contábil e mensurável, ambas produzem inumeráveis configurações, pressupõem elementos, séries, repetições, homogeneidades, medidas e acordos que dizem respeito a vários domínios que, naturalmente, pensamos não terem nenhuma relação entre si.

(...) O formato diz respeito a homens e coisas, à natureza e à cultura... assim como ao acontecimento, que é seu oposto. Se alguém adivinhar rapidamente o poder que o acontecimento propicia, poderá também perceber seus inconvenientes. Preservar a uniformidade do mensurável certamente permite a eficácia, uma vez que elimina qualquer acidente, mas exclui o acontecimento e impede a novidade.

(...) Quem nunca obedeceu a um horário rígido, previsto com muita antecedência, tanto para o ano como para as horas, matinas, tércias, sextas, laudes, vésperas e completas, quem não saiu de sua cela ao soar dos sinos, não se debruçou sobre o birô para estudar, quem não foi ao refeitório, sempre em fila e, com frequência, em silêncio... O claustro, o pátio do colégio, a fábrica ou o escritório, o estádio ou a prisão... criam um lugar no espaço, contam o tempo, determinam de que maneira preencher os dias e a sequencia das horas, seus monges, internos, marinheiros e equipes vestem uniformes... em resumo, eles formatam o tempo, o espaço e as ações das crianças e dos adultos. Esse programa variou pouco desde a Idade Média até a manha de ontem.

(...) Sem o formato, no qual as formas dizem respeito tanto ao artesão como à sua obra, não há produção. Como é que um atleta alcança o estado que ele designa como 'estar em forma'? Por meio de um treinamento que exige que ele siga uma regra e que se torne um monge; o mesmo acontece com o escritor. Trata-se de uma condição necessária que assegura, pelo menos, um trabalho bem-feito, uma corrida honrosa, um lugar medíocre entre os profissionais. Para a genialidade, porém, ninguém encontrou ainda as condições suficientes. A classificação das ciências e disciplinas, dos artigos e teses, das notas de rodapé, do índice e da bibliografia, a citação conscienciosa e humilde por ocasião do debate... são exigências universitárias que disciplinam a pesquisa e o pensamento. Conforme-se à força coercitiva da formatação... Obedeça ao formato-pai que, invisível e ausente, reina sobre o saber absoluto.

Se seu desejo, porém, é inventar, arrisque-se, livre-se do formato. Faça isso, mesmo que tenha de morrer, transforme-se em filho. As grandes obras conjugam formato e invenção, disciplina de ferro e liberdade: pai e filho."

Referência: SERRES, M. 2008. Ramos (Formato-Pai). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.    

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Objetos Fractais em Mandelbrot

"Ao longo deste ensaio, objetos fractais naturais muito diversos, alguns dos quais, como a Terra, o céu e o oceano, nos são bastante familiares, são estudados com a ajuda de uma grande família de objetos geométricos, até agora considerados exotéricos e perfeitamente inúteis. Pretendo mostrar, pelo contrário, que estes objetos, pela sua simplicidade, diversidade e extraordinária extensão das suas novas aplicações, merecem ser rapidamente integrados na geometria elementar. Apesar do seu estudo fazer parte de campos científicos diferentes, entre os quais a geomorfologia, a astronomia e a teoria da turbulência, os objetos naturais em questão têm em comum uma forma irregular ou interrompida. Para os estudar, concebi, aperfeiçoei e utilizei extensivamente uma nova geometria da natureza.

A noção que lhe serve de fio condutor será designada por um de dois neologismos equivalentes, 'objeto fractal' ou 'fractal', termos que formei, pela necessidade que me surgiu com este livro, a partir do adjetivo latino fractus, que significa 'irregular' ou 'quebrado'.

Será necessário definir uma figura fractal de modo rigoroso, para em seguida dizer que um objeto real é fractal por se assemelhar à figura geométrica que constitui o modelo? Considerando que um tal formalismo seria prematuro, adotei um método muito diferente: um método baseado numa caracterização aberta e intuitiva, onde os avanços se efetuam por retoques sucessivos.

O subtítulo sublinha que o meu objetivo inicial consiste em descrever, a partir do exterior, a forma de diversos objetos. Logo que esta primeira fase seja bem sucedida, a prioridade transita de imediato da descrição para a explicação: da geometria para a dinâmica, a física e por aí adiante.

O subtítulo indica ainda que, para conseguir a irregularidade fractal, coloco em discussão as construções em que predomina o acaso.

Por fim, o subtítulo explicita que uma das características principais de todo objeto fractal é a sua dimensão fractal, que será representada por D. Esta é uma medida do grau de irregularidade e de fragmentação. Um fato muito importante: ao contrário dos números dimensionais correntes, a dimensão fractal pode muito bem ser uma fração simples, como 1/2 ou 5/3, ou mesmo um número irracional, como log 4/log 3 = 1,2618... Assim, é conveniente dizer, a respeito de certas curvas planas muito irregulares, que a sua dimensão fractal se situa entre 1 e 2, a respeito de certas superfícies muito enrugadas e cheias de pregas, que a sua dimensão fractal está entre 2 e 3 e, enfim, definir conjuntos de pontos sobre uma linha cuja dimensão fractal está entre 0 e 1.

(...) A geometria fractal é caracterizada por duas escolhas: a escolha de problemas no seio do caos da natureza, uma vez que descrever todo caos seria uma ambição sem esperança e sem interesse, e a escolha de ferramentas no seio das matemáticas, pois procurar aplicações das matemáticas pelo simples fato de serem belas acabou sempre por causar dissabores.

Depois de progressivamente amadurecidas, estas duas escolhas criaram algo de novo: entre o domínio do caos desregulado e a ordem excessiva de Euclides existe agora a nova zona da ordem fractal."

A geometria fractal foi criada, em 1975, pelo matemático francês nascido na Polônia, Benoit Mandelbrot. Em linhas gerais, um fractal é um objeto geométrico que pode ser divido em partes, cada uma da qual semelhante ao original. Essas figuras de forma irregular e fragmentada são encontradas na natureza ou podem ser produzidas artificialmente através de um algoritmo matemático.



Referência: MANDELBROT, B. 1998. Objetos Fractais (Introdução). Lisboa: Editora Gradiva.      

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

A noção de "transformação" em Lévi-Strauss

"A de 'transformação' tem um espaço capital em suas análises de o Pensamento Selvagem como igualmente será o caso em Mitológicas. A quem o senhor tomou de empréstimo? Aos lógicos?"

"Nem aos lógicos nem aos linguistas. Veio-me de uma obra que para mim desempenhou um papel decisivo, e que li durante a guerra, nos Estados Unidos: On Growth and Form, em dois volumes, de D'arcy Wentworth Thompson, publicada pela primeira vez em 1917. O autor, naturalista escocês, interpretava como transformações as diferenças visíveis entre as espécies e órgãos animais ou vegetais no seio de um mesmo gênero. Isso foi uma iluminação, tanto que logo iria perceber que esta maneira de ver inscrevia-se numa longa tradição: antes de Thompson, havia a botânica de Goethe, e antes de Goethe, Albert Dürer, com seu Traité de la proportion du cosps humain.

Ora, a noção de transformação é inerente à análise estrutural. Diria, até, que todos os erros, todos os abusos cometidos, sobre ou com a noção de estrutura, provêm do fato de seus autores não compreenderem que é impossível concebê-la separada da noção de transformação. A estrutura não se reduz ao sistema: conjunto composto de elementos e de relações que os unem. Para que se possa falar de estrutura, é necessário que entre os elementos surjam relações invariantes, de tal forma que se possa passar de um conjunto a outro por meio de uma transformação.

Um outro itinerário, que os historiadores das ideias saberiam traçar melhor, introduziu a noção de transformação em linguística, talvez também a partir de Goethe, por intermédio de Guillaume de Humboldt e Baudoin de Courtenay. Quando se tenta dar conta da diversidade, seja qual for o domínio considerado, das diferentes maneiras pelas quais os elementos podem ser combinados, impõe-se o recurso à noção de transformação.

Se invoco um único princípio, o intercâmbio das mulheres entre os subgrupos da sociedade, para ficar a par de todas as regras de casamento, é necessário que essas regras, diferentes conforme a época e o lugar, se reduzam a estados de uma mesma transformação. O mesmo acontece quando o linguista prepara o repertório de fenômenos que o aparelho vocal consegue articular, e destaca as limitações a que cada língua deve curvar-se para retirar desse fundo comum os elementos de seu sistema fonológico particular. A própria noção de fenômeno implica que as propriedades divergentes dos sons, tal como a fonética os registra, constituam-se em transformações opcionais ou contextuais de uma realidade invariante, num nível mais profundo."

Referência: LÉVI-STRAUSS, C. e ERIBON, D. 2005. De perto e de longe. São Paulo: Cosac Naify.            

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Metalogue: Why a Swan? - Bateson

"Daughter: why a swan?
Father: Yes - and why a puppet in Petroushka?
D: No - that's different. After all a puppet is sort of human - and that particular puppet is very human.
F: More human then people?
D: Yes.
F: But still only sort of human? And after all the swan is also sort of human.
D: Yes.
***
D: But what about the dancer? Is she human? Os course she really is, but, on the stage, she seems inhuman or impersonal - perhaps superhuman. I don't know.
F: You mean - that while the swan is only a sort of swan and has no webbing between her toes, the dancer seems only sort of human.
D: I don't know - perhaps it's something like that.
***
F: No - I get confused when I speak of the 'swan' and the dancer as two different things. I would rather say that the thing I see on the stage - the swan figure - is both 'sort of' human and 'sort of' swan.
D: But then you would be using the word 'sort of' in two senses.
F: Yes, that's so. But anyhow, when I say that the swan figure is 'sort of' human, I don't mean that it (or she) is a member of that species or sort which we call human.
D: No, of course not.
F: Rather that she (or it) is a member of another subdivision of a larger group which would include Petroushka puppets and ballets swans and people.
D: No, it's not like genera and species. Does your larger group include geese?
***
F: But we don't have to avoid puns. In french the phrase espèce de (literally 'sort of') carries a special sort of punch. If one man calls another 'a camel' the insult may be a friendly one. But if he calls him an espèce de chameau - a sort of camel - that's bad. Is's still worse to call a man as espèce d'espèce - a sort of a sort.
D: A sort of a sort of what?
F: No - just a sort of a sort. On the other hand, if you say of a man that he is a true camel, the insults carries a flavor of grudging admiration.
D: But when a frenchman calls a man a sort of camel, is he using the phrase sort of in anything like the same way as I, when I say the swan is sort of human?
***
F: It's like - there's a passage in Macbeth. Macbeth is talking to the murderers whom he is sending out to kill Banquo. They claim to be man, and he tells them they are sort of men. 'Ay - in the catologue ye go for men. as hounds and greyhounds, mongrels, spaniels, curs, shoughs, water-rugs and demi-wolves are clept all by the name of dogs' (Macbeth, Act III, Scene 1).  
D: No - that's what you said just now. What was it? 'Another subdivision of a larger group? I don't think that's it at all.
F: No, it's not only that. Macbeth, after all, uses dogs in his simile. And 'dogs' means either noble hounds or scavengers. It would not be the same if he had used the domestic varieties of cats - or the subspecies of wild roses.
D: All right, all right. But what is the answer to my question? When a frenchman calls a man a 'sort of' camel, and I say the swan is 'sort of' human', do we both mean the same thing by 'sort of'?
***
F: All right, let's try to analyze what 'sort of' means. Let's take a single sentence and examine. If I say 'the puppet Petroushka is sort of human,' I state a relatioship.
D: Between what and what?
F: Between Ideas, I think.
D: Not between a puppet and people?
F: No. Between some ideas that I have about puppet and some ideas that I have about people.
D: Oh.
***
F: And then there is that other relationship which is emphatically not 'sort of'. Many men have gone to the stake for the proposition that the bread and wine are not 'sort of' the body and the blood.
D: But is that the same thing? I mean - is the swan ballet a sacrament?
F: Yes - I think so - at least for some people. In Protestant language we might say that the swanlike costume and movements of the dancer are 'outward and visible signs of some inward and spiritual grace' of woman. But in catholic language that would make the ballet into a mere metaphor and not a sacrament.
D: But you said that for some people it is a sacrament. You mean for Protestants?
F: No, no. I mean that if for some people the bread and wine are only a metaphor, while for others - Catholics - the bread and wine are a sacrament; then, if there be some for whom the ballet is a metaphor, there may be other for whom it is emphatically more than a metaphor - but rather a sacrament.
D: In the Catholic sense?
F: Yes.
***
F: I mean that if we could say clearly what is meant by the proposition 'the bread and wine is not 'sort of' the body and blood'; then we should know more about what we mean when we say either that the swan is 'sort of' human or that the ballet is a sacrament.
D: Well - how do you tell the difference?
F: Which difference?
D: Between a sacrament and a metaphor?
***
F: Wait a minute. We are, after all, talking about the performance of the artist or the poet, or a given member of the audience. You ask me how I tell the difference between a sacrament and a metaphor. But my answer must deal with the person and not the message. You ask me how I would decide whether a certain dance on a certain day is or is not sacramental for the particular dancer.
D: All right - but get on with it.
F: Well - I think it's a sort of a secret.
D: You mean you won't tell me?
F: No - it's not that sort od secret. It's not something that one must not tell. It's something that one cannot tell.
D: What do you mean? Why not?
F: Let us suppose I asked the dancer, 'Miss X, tell me, that dance which you perform - is it for you a sacrament or a mere metaphor?' And let us imagine that I can make this question intelligible. She will perhaps put me off by saying, 'You saw it - it is for you to decide, if you whant to, whether or not it is sacramental for you'. Or she might say, 'Sometimes it is and sometimes is isn't'. Or 'How was I, last night?' But in any case she can have no direct control over the matter.
***
D: Do you mean that anybody who knew this secret would have it in their power to be a great dancer or a great poet?
F: No, no, no. It isn't like that at all. I mean first that great art and religion and all the rest of it it is about this secret; but knowing the secret in an ordinary conscious way would not give the knower control. 
                                                                               ***

D: Daddy, what has happened? We were trying to find out what 'sort of' means when we say that the swan is 'sort of' human. I said that there must be two senses of 'sort of'. One in the phrase 'the swan figure is a 'sort of' swan, and another in the phrase 'the swan figure is 'sort of' human'. And now you are talking about mysterious secrets and control.
F: All right. I'll star again. The swan figure is not a real swan but a pretend swan. It is also a pretend-not human being. It is also 'really' a young lady wearing a white dress. And a real swan would resemble a young lady in certain ways.
D: But which of these is sacramental?
F: Oh Lord, here we go again. I can only say this: that it is not one of these sacrament but their combination which constitutes a sacrament. The 'pretend' and the 'pretend-not' and the 'really' somehow get fused together into a single meaning.
D: But we ought to keep them separate.
F: Yes. That is what the logicians and the scientists try to do. But they do not create ballets that way - nor sacraments."

Referência: BATESON, G. 1972. Steps to an Ecology of Mind. Chicago and London: The University of Chicago Press.    

Observação: este breve trecho retirado da primeira parte do livro de Bateson - uma série de meta-diálogos estabelecidos entre o autor e sua filha - serviu de inspiração para que Deleuze e Guattari desenvolvessem a noção de "devir" em Mil Platôs.  

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Qualidades Sensíveis - Lévi-Strauss

"Entre seus livros, talvez O Pensamento Selvagem seja o que mais modificou as formas de pensar para além do círculo de especialistas em etnologia. Sua reabilitação do pensamento primitivo transformou-se em trecho selecionado para todas as antologias do pensamento contemporâneo (Didier Eribon).

Queria mostrar que não existe um fosso entre o pensamento dos povos chamados primitivos e o nosso. Quando, em nossas próprias sociedades, observávamos crenças ou costumes estranhos, que contrariavam o senso comum, nós os explicávamos como vestígios ou lembranças de formas arcaicas do pensamento. Parecia-me, ao contrário, que essas formas de pensamento estão sempre presentes, atuantes entre nós. Muitas vezes lhes damos livre curso. Elas coexistem com formas de pensamento que se apoiam no testemunho da ciência; são igualmente contemporâneas (Lévi-Strauss).

Por exemplo, essa era a comparação que o senhor fazia com frequência entre a bricolagem e o pensamento mítico.

Eu citava a bricolagem como exemplo de modos de pensamento dotados de uma originalidade específica, aos quais não prestamos atenção, ou melhor, pelos quais não temos a mínima consideração, porque nos parecem fúteis ou secundários, quando demonstram mecanismos essenciais da atividade mental e nos põem em pé de igualdade com operações intelectuais bem distantes do que acreditamos ser nossa maneira moderna de pensar. Na ordem especulativa, o pensamento mítico opera como a bricolagem num plano prático; ele dispõe de um tesouro de imagens acumuladas pela observação do mundo natural: animais, plantas, com seus habitats, suas características distintivas, seu emprego numa determinada cultura. Ele combina esses elementos para construir um sentido, como o bricoleur utiliza, diante de uma tarefa, os materiais ao seu alcance para lhes conferir um novo significado, diferente daquele que tinham inicialmente.

Mas esse livro tinha um alcance epistemológico mais amplo...

Era uma tentativa de superar a oposição já clássica na filosofia ocidental entre a ordem do sensível e a do inteligível. Se a ciência moderna conseguiu constituir-se, foi ao preço de uma ruptura entre as duas ordens, entre o que no século XVII chamava-se qualidades secundárias - ou seja, os dados da sensibilidade: cores, odores, sabores, ruídos, texturas - e as qualidades primárias, não tributárias dos sentidos, que constituem a verdadeira realidade. Ora, parecia-me que o pensamento dos povos chamados 'selvagens', que permanecera refratária a essa distinção, conduzia toda a sua reflexão no plano das qualidades sensíveis e conseguia, contudo, construir sobre essa única base uma visão do mundo não desprovida de coerência nem de lógica. E também mais eficiente do que se costuma crer.

O que o senhor chama a "ciência do concreto"...

... uma abordagem que me parecia diferente da ciência, embora comparecendo comparável a ela. Ponto de vista fortalecido, parecia-me, por certas tendências que eu identificava no pensamento científico contemporâneo. Infelizmente, não tenho a menor competência em matéria científica mas as ciências tradicionais da natureza - zoologia, botânica, geologia - sempre me fascinaram, como uma terra prometida onde não teria a privilégio de penetrar. Nos Estados Unidos, comecei a ler assiduamente, e continuei desde então, revistas como Scientific American, Science, Nature - a essas acrescento hoje La Recherche. Não compreendo tudo, longe disso. Mas isso nutriu minha reflexão e sobretudo fiquei impressionado ao constatar que depois de ter por muito tempo proscrito as qualidades secundárias, depois de ter voltado as costas ao sensível, a ciência agora procurava reintegrá-lo. Ela se questiona sobre o que é um odor, um sabor, sobre a forma das flores e sua evolução, sobre a estrutura melódica do canto dos pássaros... Descobre assim, frequentemente, o fundamento objetivo de crendices populares e até de superstições. Contrariamente à tese proposta por Foucault em As Palavras e as Coisas - a de uma ruptura radical entre epistémes - percebo na ciência contemporânea um esforço para recuperar as etapas arcaicas de seu desenvolvimento, para integrar antiqüíssimas sabedorias à sua visão de mundo.

Para estudar a ciência do concreto que caracteriza o 'pensamento selvagem', o senhor mesmo acumulou um volume impressionante de conhecimentos concretos: sobre plantas, animais, clima...

Desde que comecei a escrever O Totemismo Hoje e O Pensamento Selvagem, até o fim das Mitológicas, vivi rodeado de livros de botânica e de zoologia... Aliás, essa curiosidade remonta a minha infância.

No caso em questão, o senhor ultrapassou o estágio da simples curiosidade.

É verdade. Precisei instruir-me em todos esses domínios. Como lembrança, conservo no meu gabinete de trabalho o globo celeste vulgarmente chamado 'cabeça de vitela', que recebi de presente não lembro de que órgão oficial ao qual me dirigia para esclarecer minhas dúvidas. É um instrumento que os astrônomos não utilizam mais, mas que muito me ajudou a para situar as constelações de que tratam os mitos. Os conhecimentos científicos que precisava adquirir não iam além dos conhecimentos de um ou dois séculos atrás! Extraía-os da Enciclopédia de Diderot e D'Alembert, da Zoologia de Brehm e, às vezes, até de Plínio...

Quando se pensa que algumas pessoas puderam criticá-lo por ignorar o concreto!

Ao contrário, presto uma atenção quase obsessiva a todos os pequenos detalhes concretos.

É essa atenção ao concreto que talvez o tenha tornado particularmente sensível ao papel da 'imaginação estética' no jogo das classificações totêmicas que o senhor descreve.

Sim, porque uma das diferenças essenciais entre a maneira como nós refletimos e a maneira como aqueles povos refletem, é nossa necessidade de fragmentar. Apreendemos isso com Descartes: dividir a dificuldade em tantas parcelas quanto forem necessárias, para melhor resolvê-las. O pensamento dos povos chamados primitivos rejeita essa fragmentação. Uma explicação só é válida desde que seja total. Quando procuramos a solução de um problema específico, dirigimo-nos a esta ou àquela disciplina científica, ou então ao direito, à moral, à religião, à arte... Nos povos que os etnólogos estudam, todos esses domínios são ligados. Assim, cada expressão da vida coletiva constitui o que Mauss denominava um fato social total. Ela põe em questão, simultaneamente, todos esses aspectos."    

Referência: LÉVI-STRAUSS C. e ERIBON D. 2005. De Perto e de Longe (capítulo 11). São Paulo: Cosac Naify.

sábado, 25 de agosto de 2012

A greve docente na encruzilhada

Os professores da UnB decidiram pelo término da greve nesta última sexta-feira (24/08). A decisão foi tomada em assembléia da categoria, por uma pequena margem de diferença: 478 (a favor) X 445. Com isso, mais uma universidade decide pelo retorno às aulas. Além da UnB, as seguintes instituições também decidiram pelo término da greve nas últimas semanas: UFC; UFRGS; UFSC e UNIFESP (Guarulhos). Por outro lado, mais de 50 universidades e institutos federais decidiram pela continuidade da greve, decisão reafirmada em assembleias realizadas na última semana. A lista de instituições ainda em greve é longa, incluindo (entre outras): UFRJ, UFRRJ, UFMG, UFBA, UFMS, UFPel, UFF, UFAM, UFPA, UFU, UFJF, UNIR, UFOP, UFG, UFPB e UNILA.

É importante observar que a decisão pelo retorno às aulas foi polêmica em todas as instituições e não conta com a concordância de uma parte significativa do corpo docente dessas universidades. O resultado apertado na assembléia da UnB é um bom retrato da atual conjuntura em outras universidades, com uma forte tendência à divisão e polarização da categoria docente, uma aposta dos negociadores do MEC. Diante da proximidade do prazo governamental para ajustes no orçamento de 2013 - o dia 31 de agosto, conforme determina a lei orçamentaria - o movimento se vê numa encruzilhada sem ter estabelecido um acordo com o governo. De fato, o acordo firmado entre o MEC e a PROIFES não resultou em uma adesão imediata dos professores, o que é compreensível diante da baixa representatividade política desse sindicato junto à classe docente. Por outro lado, as demais centrais sindicais se atrasaram em elaborar uma contraproposta (algo feito apenas recentemente) e agora correm atrás do prejuízo político, tendo como horizonte o retorno às aulas sem acordo ou uma continuidade da greve mesmo diante do término do prazo institucional para negociar alterações no orçamento da União.

Se, por um lado, a morosidade dos sindicatos docentes nacionais acabou retardando a possibilidade de um acordo mais amplo com a categoria; por outro lado, o governo não só se demonstrou intransigente durante todo o processo de negociação - desconsiderando completamente as demandas e sugestões do setor -, como continua negando qualquer possibilidade de reabertura das negociações com o movimento. Essa retomada poderia ser feita tendo como referência a "contraproposta" da ANDES encaminhada recentemente para a presidenta Dilma e os ministérios de educação e planejamento. Infelizmente, no entanto, a intransigência dos representantes governamentais não parece ter limite, pois o MEC voltou a afirmar que as negociações foram encerradas em uma nota publicada no dia 24/08.

Diante dessa decisão, resta saber qual caminho vão tomar os professores insatisfeitos com o acordo firmado com o governo. No caso de uma continuidade da greve, deve-se levar em conta que tal decisão abre um horizonte longo de paralisação, pois a retomada das negociações em termos de aumento salarial só poderia ocorrer a partir de janeiro de 2013. Na hipótese de um retorno às aulas, sabemos que esse retorno será apenas temporário, pois o término da greve representaria uma decisão tática e circunstancial que, por si só, já apontaria para a retomada do movimento grevista no início de 2013.

O melhor seria o governo fazer uma força-tarefa nos próximos dias para tentar negociar com os grevistas uma adesão à proposta já firmada, que incorporaria pequenas alterações sugeridas na contraproposta da ANDES. Mas a atual conjuntura política nacional dificulta ainda mais uma "negociação de última hora", tendo em vista o contexto de greves no setor público federal.  Também é difícil imaginar qual será a força política do movimento grevista e a sua capacidade para dar continuidade à paralisação mesmo diante da impossibilidade institucional de negociação com o governo em torno de propostas concretas.

Para pressionar o governo a retomar as negociações com o movimento docente, acesse o link abaixo e assine a petição:

http://www.avaaz.org/po/petition/Abertura_das_negociacoes_entre_o_governo_brasileiro_e_os_docentes_das_IFES_do_pais_representados_pelo_ANDESSN/?epwwHab
                

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Riquezas Intangíveis de Pessoas Partíveis - Vanessa Lea

Foi publicado, recentemente, pela editora da Universidade de São Paulo, o livro "Riquezas Intangíveis de Pessoas Partíveis: os Mebêngôkre (Kayapó) do Brasil Central", de autoria da etnóloga Vanessa Lea. A autora focaliza a análise nas relações que conectam as pessoas no processo de transmissão de nomes e riquezas (nekretx) no âmbito das redes associadas às matricasas mebêngôkre, argumentando que os Metyktire (subgrupo mebêngôkre) são matrilineares, diferentemente do que apontam estudos realizados nas décadas de 1970/80. Essa análise é inspirada nas reflexões de Lévi-Strauss sobre as "sociedades de casas" e de Marilyn Strathern sobre a circulação de riquezas na Nova Guiné. O livro descreve as práticas de nominação dos mebêngôkre, que costumam transmitir um conjunto variado de nomes (bonitos, comuns e de brincadeira) e nekretx para as gerações mais novas, através de longas cerimônias organizadas para esta finalidade. De leitura agradável, o texto aborda um tema central na vida mebêngôkre a partir de uma perspectiva etnográfica permeada por análises teóricas de maior fôlego, permitindo comparações com outras sociedades Jê do Brasil Central.

A publicação já está disponível nas livrarias. Segue abaixo um pequeno trecho da introdução do livro (para divulgação):

"De modo geral, há pouca relutância em aceitar os bens industrializados. Como será demonstrado em outros capítulos, a incorporação de bens de fora de sua sociedade sempre fez parte da cultura Mebêngôkre. Por exemplo, muitos anos atrás aprenderam com os índios Yudjá a construir canoas. Os Metyktire afirmam querer coisas de kube, mesmo coisas que eles mesmos fabricam, como fio de algodão vermelho. Raciocinam afirmando que gostam das coisas do kube como os kube gostam de coisas de índio - bordunas, colares, cocares, cestos, etc.

Os Metyktire me bombardearam com perguntas sobre a confecção de cobertores, panelas de metal, canetas, papel etc. Estavam incrédulos que eu pudesse usar coisas sem nunca ter observado como são fabricadas. Suspeitavam que havia alguma espécie de especialização, perguntando, por exemplo, se os kube americanos são aqueles que manufaturavam cartuchos caibre 38. Um homem perguntou se aqueles que fazem velas ficam ricos, devido ao preço relativamente alto das velas, ou se as dão de graça (kajgô).

A noção de dinheiro é ainda mais enigmática e misteriosa. O chefe Metyktire me perguntaram quem fabrica dinheiro, como e onde. O chefe em Kretire queria saber quem é o dono do dinheiro e para que o utiliza. Um homem alegou que os kube precisam simplesmente (tu) dar coisas aos índios porque têm dinheiro no banco, que recebem do chefe grande; para obtê-los basta fazer fila. Os Metyktire pedem dinheiro para qualquer visitante kube argumentando que os 'índios não têm dinheiro'. (...)

No início da minha estada com os Metyktire me decepcionou o fato de eles falarem dia e noite sobre nekretx, referindo-se aos bens industrializados. Para europeus, pós-1968 como eu, sociedades ameríndias representavam a possibilidade de viver em harmonia com a natureza, e de oferecerem alternativas às mazelas da sociedade pós-industrial. Estava intrigada em saber por que os bens industrializados eram designados por uma palavra tão evidentemente mebêngôkre, e então decidi investigar a etimologia de nekretx. Isso significou mergulhar num mundo fantástico, digno da imaginação de Borges. Fui seduzida pela riqueza (nekretx) dos Mebêngôkre ao ponto de torná-lo o objeto principal de minha pesquisa. Nekretx e o sistema onomástico dos Mebêngôkre são dois lados da mesma moeda: ambos são fundamentais para entender a organização social dos Mebêngôkre porque implicam um conceito de casa como pessoa jurídica (personne morale, em francês), composta de pessoas partíveis (conforme será esclarecido a seguir)."


Referência: LEA, Vanessa. 2012. Riquezas Intangíveis de Pessoas Partíveis: os Mebêngôkre (Kayapó) do Brasil Central. São Paulo: Editora Edusp.      

sábado, 18 de agosto de 2012

Bringing Things to life - Ingold

"Bringing things to life, then, is a matter not of adding to them a sprinkling of agency but of restoring them to the generative fluxes of the world of materials in which they came into being and continue to subsist. This view, that things are in life rather than life in things, is diametrically opposed to the conventional anthropological understanding of animism, invoked by Pels (...). Things are alive and active not because they are possessed of spirit - whether in or of matter - but because the substances of which they are comprised continue to be swept up in circulations of the surroundings media that alternately portend their dissolution or - characteristically with animate beings -ensure their regeneration. Spirit is the generative power of these circulatory flows which, in living organisms, are bound into tightly woven bundles or tissues of extraordinary complexity.

Considered as a constituent of the material world, a stone is indeed both a lump of matter that can be analysed for its physical properties and an object whose significance is drawn from its incorporation into the context of human affairs. The concept of materiality, as we have seen, reproduces this duality, rather than challenging. But in the world of materials, humans figures as much within the context for stones as do stones within the context for humans. And these contexts, far from lying on disparate levels of being, respectively social and natural, are established as overlapping regions of the same world. It is not as though this world were one of brute physicality, of mere matter, until people appeared on the scene to give it form and meaning. Stones, too, have histories, forged in ongoing relations with surroundings that may or may not include human beings and much else besides".

Referência: Tim Ingold - Being alive: essays on movement, knowledge and description ("Materials against materiality").
      

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Epistemologia-Ontologia em Bateson: traduções e agenciamentos

O agenciamento de conceitos - como toda e qualquer 'tradução' (no sentido de "translação") - envolve certa parcela de 'traição', permitindo colocar em ação desvios sutis que fornecem a base para a 'relação' que se estabelece entre o 'texto' (o artigo ou livro) e outras 'textos' (e autores). De fato, o uso (ou consumo) de teorias, obras e autores não envolve a simples reprodução de noções ortodoxas, mas um agenciamento da 'diferença' para projetar ou descrever circunstâncias específicas (o tipo de 'unidade de informação' que faz a diferença em determinado contexto etnográfico, por exemplo).

Ao mesmo tempo, Foucault já demonstrou que a 'autoria' não reflete uma unicidade (da obra ou do autor), mas uma multiplicidade de perspectivas teóricas e enunciados que se transformam a partir da relação que estabelecem entre si. Com isso, os autores de obras (um conjunto heterogêneos de livros e artigos) permitem diversas apropriações, em momentos diferentes da trajetória intelectual do autor. Por isso é possível falar de um "Jovem Marx" em contraposição ao "Velho Marx" ou do Lévi-Strauss das "Estruturas Elementares do Parentesco" ou da série "Mitológicas". Em alguns casos, a diferença entre um livro e outro do mesmo autor é tão significativa que o próprio escritor tem dificuldade em se reconhecer nos seus escritos mais antigos.

Enfim, seja pelo lado do consumo de teorias e autores, seja pelo lado da produção, a multiplicidade inerente à obra de arte (ou científica, existe mais em comum entre essas duas atividades do que a epistemologia naturalista reconhece) permite múltiplas 'traduções', todas elas envolvendo certo agenciamento.

Vou citar um exemplo específico que reflete o tipo de 'controvérsia' que costuma acompanhar a 'economia da citação'. Na defesa da minha tese de doutorado em antropologia, ouvi de um colega o comentário de que eu teria elaborado uma crítica ao naturalismo ocidental a partir de duas perspectivas analíticas supostamente "irreconciliáveis": uma análise 'epistemológica' (presente na obra de Bateson, por exemplo) e outra 'ontológica', presente na obra de Heidegger e nos escritos mais recentes da 'ontologia política' (ver Law e Mol em outras postagens deste blog). A suposta 'aporia' viria do fato de Bateson ainda estar 'preso' à noção de 'epistemologia', enquanto a outra perspectiva busca se deslocar em direção à abordagem ontológica dos processos de conhecimento e saber.

[A confusão pode ser maior ainda quando levamos em consideração o fato da perspectiva teórica da 'ontologia política' ter sido proposta por seus defensores em contraposição à abordagem epistemológica defendida por autores como Susan Star e James Griesemer (ver o artigo clássico publicado em 1989 na biblioteca do blog), reafirmando a suposta 'aporia' reproduzida também por autores que assumem uma posição mais 'tradicional' em relação à divisão "Ontologia X Epistemologia".]

Tal polêmica, no entanto, assume um novo sentido quando vemos o próprio Bateson admitindo que, ao usar a noção de 'epistemologia', ele está também se referindo à ontologia, pois ambas seriam indissociáveis. Ele faz isso em um pequeno trecho publicado em um artigo sobre o tema do alcoolismo (autores nada didáticos como Bateson dificultam ainda mais a busca de uma 'tradução ortodoxa', no sentido de uma reprodução do conceito ou da teoria tal como foi concebida pelo autor, pois não costumam escrever resumos ou sínteses de suas ideias). Neste trecho, Bateson esclarece o uso que faz do conceito de 'epistemologia', uso esse bastante incomum. Vejamos.

"Os filósofos reconheceram e separaram dois tipos de problemas. Primeiro, existe o problema de como as coisas são, o que é uma pessoa, e que tipo de mundo é esse em que vivemos. Esses são os problemas da ontologia. Segundo, existe o problema de como conhecemos qualquer coisa, ou mais especificamente, como a gente sabe que tipo de mundo é este e que tipo de criatura somos nós quando dizemos que podemos conhecer algo (ou talvez nada) dessa questão. Esses são os problemas da epistemologia" (Tradução Livre, ver referência abaixo).

[Neste trecho, Bateson apresenta o seu ponto de partida: um contexto teórico onde ontologia e epistemologia remetem a problemáticas diferentes, que são abordadas separadamente. Se ficarmos aqui, poderíamos afirmar que Bateson faz uma opção por trabalhar com o segundo tipo de questões, mais propriamente de natureza 'epistemológica', enquanto autores como Heidegger estariam preocupados com o segundo tipo de questões, de natureza ontológica (leitura possível, já que todas as traduções são necessariamente 'parciais', apesar de não ser o caminho adotado na minha tese). O trecho subsequente, no entanto, revela a posição tomada por Bateson diante desse contexto (que envolve certo agenciamento da problemática)].

"Na história natural dos seres humanos vivos, ontologia e epistemologia não podem ser separadas. As crenças sobre o 'tipo' de mundo irão determinar a forma como o sujeito vê e age no mundo, e as suas formas de perceber o mundo e agenciá-lo irão determinar as suas crenças sobre o tipo de mundo em que ele vive. O homem vivo está associado a uma rede de pressupostos ontológicos e epistemológicos com os quais - independentemente de qualquer julgamento externo de verdade ou de falsidade - se tornam parcialmente auto-suficientes para ele".

[Neste trecho, Bateson desfaz a aporia construída e reificada por uma parte dos filósofos ocidentais, argumentando que, na fluxo da vida, questões epistemológicas e ontológicas são indissociáveis. Mais do que isso, o autor sugere a existência de uma espécie de circularidade entre os pressupostos ontológicos sobre o que existe e as formas de conhecer o 'existente'. Por último, ele esclarece o uso que faz das duas noções. O caminho percorrido por Bateson não consiste em dar enfase à epistemologia em detrimento da ontologia (ou o inverso, que também reifica o Grande Divisor) , mas em buscar desfazer a suposta aporia ao tornar epistemologia-ontologia perspectivas não somente indissociáveis, mas também interconectadas. Inclusive, a 'diferença' que faz a diferença na proposição teórica de Bateson - em relação a outras abordagens teóricas - não consiste em optar por um ou outro lado do divisor, mas em buscar superá-lo.]

"É estranho fazer referência constante à ontologia e à epistemologia e é incorreto sugerir que essas duas perspectivas são dissociáveis na análise da história do homem. Mas, ao que parece, não existe uma palavra adequada para expressar, simultaneamente, essas duas perspectivas [ontológica e epistemológica]. (...) Com isso, eu vou usar o termo 'epistemologia' neste artigo para abordar ambos os aspectos (ontológico e epistemológico) que determinam a adaptação (ou não adaptação) ao ambiente humano e não humano (ou natural)" (Tradução Livre).

Dizer que alguém fez um 'mal uso' de determinado autor, teoria ou conceito não é assim tão simples como gostariam os defensores da 'tradição ortodoxa' (se é que existe, de fato, algo assim). Não somente os autores que são citados agenciam os conceitos que utilizam em suas obras de maneira um tanto inusitada (como vimos aqui em relação às noções de 'epistemologia' e 'ontologia' em Bateson), como também existe todo um agenciamento que perpassa o consumo (ou uso) que envolve a leitura de um autor ou teoria.

Referência:
BATESON, G. 1972. The Cybernetics of 'Self': a theory of Alcoholism. IN:______. Steps to an Ecology of Mind.  

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Notícia sobre a Greve dos Docentes Federais

As negociações com o governo federal em torno da greve docente não têm avançado e a recente decisão dos representantes do MEC em fechar acordo com a PROIFES e encerrar as negociações de forma unilateral só agrava ainda mais a conjuntura atual. Como todos sabem, a PROIFES é um sindicato associado ao governo, com pouca representação na base docente. A proposta não foi aceita pelas demais centrais sindicais, que não tiveram suas demandas atendidas. Até quarta-feira (08/08), 57 assembleias de centrais sindicais regionais deliberaram pela continuidade do movimento grevista, apoiando a decisão da ANDES. Os mandatários de Dilma, no entanto, interrompem o processo de negociação e o ministro da educação determina o início do 2º semestre (sem propor solução para a recuperação das aulas do primeiro semestre).

Apesar do governo ter feito pequenas alterações na proposta inicial, retirando pontos polêmicos como a requisição de um mínimo de 12 h/a como critério para progressão na carreira e a reformulação do número de níveis para 13, conforme requisitado pela pauta grevista, ainda existe muita discordância com as entidades sindicais em torno da estrutura e dos critérios de progressão na carreira docente.

Conforme as novas regras previstas na proposta do governo, o ingresso na carreira docente passará a ocorrer na categoria de "Professor Auxiliar", independentemente do nível de formação (hoje, classe de ingresso para candidato com nível de graduação. Concursos para auxiliar deixaram de ser feitos há décadas, quando se passou a exigir o diploma de doutorado para ingresso na carreira). Com isso, candidatos com doutorado terão que finalizar os três anos de estágio docente para, só então, pedir "promoção por titulação" para a categoria de "Adjunto, nível 1". O que não está claro é se o ingressante com doutorado contará com um salário equivalente ou maior do que o salário atual de um professor adjunto durante o período de espera pelo critério extraordinário de progressão e se essa regra será garantida por meio de condicionantes. Outra questão diz respeito a forma como esse novo critério de progressão será aplicado na prática. As universidades federais poderão publicar editais para professor auxiliar I com exigência mínima de 'doutorado'? Ou todos os concursos para auxiliar terão que permitir candidatos com graduação, apesar de poderem aceitar a inscrição de mestres e doutores? Quais são as implicações práticas dessas novas regras? Como elas serão aplicadas e de que forma serão utilizadas pelas universidades na contratação de novos docentes?

Outra polêmica gira em torno dos percentuais de aumento apresentados - de forma diferencial para cada classe e nível - pelo governo. Esses percentuais não integram no cálculo a projeção de inflação para o período de três anos (2013-2015). Quando esse percentual é inserido no cálculo, verifica-se perda salarial para boa parte dos docentes. Isso significa que ao anunciar um aumento gradual de 45% nos próximos três anos, o governo de fato apresenta uma proposta que se quer consegue conter as perdas inflacionarias do respectivo período, quem dirá conceder um aumento real do valor nominal do salário docente. Não é preciso ser perito em matemática para entender que esse percentual não pode ser classificado como 'aumento', muito menos como 'política de valorização salarial'. Em um momento em que o movimento docente defende a importância da melhoria das condições de trabalho (o que inclui um aumento nominal do salário docente), o governo responde com um aumento irreal.  

A distribuição diferencial do percentual de aumento entre as classes e níveis não corresponde a nenhuma lógica coerente, explicitando desigualdades já existente na atual estrutura de classes e níveis. Não existe, conforme observado pelas centrais sindicais, relação proporcional entre regimes de trabalho, valorização da titulação e  consistência remuneratória na progressão entre níveis e classes, criando distorções salariais sem qualquer critério de fundo.

Outra questão polêmica é a insistência do governo em precarizar o salário nominal em detrimento da retribuição por titulação, entrando em contradição com as reivindicações do setor, que exigem a incorporação dos ganhos no salário nominal, patrimônio inalienável do servidor público. Por último, a atitude do governo de transferir para Grupos de Trabalho as questões mais controversas - em uma conjuntura anterior de desrespeito ao que foi debatido e definido pelos GTs formados anteriormente com função semelhante - contribui para criar insegurança entre os docentes em torno de pautas importantes para o movimento.

A postura autoritária do executivo frente aos movimentos grevistas que perpassam atualmente diferentes setores do governo federal tem resultado na promoção fictícia de um 'diálogo de surdos', acompanhado por uma manipulação midiática da opinião pública que conta com a conivência dos principais meios de comunicação, repassando para o corpo docente a responsabilidade pela interrupção das aulas, quando, de fato, a manutenção da greve pelas organizações sindicais reflete a postura intransigente assumida pelos representantes dos ministérios da educação e planejamento nas negociações. Um exemplo desta postura foi a forma como a notícia do aumento previsto na proposta inicial do governo (de 45%, em etapas anuais) foi comunicada pelos principais meios de comunicação sem qualquer reflexão crítica. Apesar de contarem com a assessoria de economistas e analistas financeiros, as reportagens não mencionaram as taxas de inflação para o período, camuflando o que se apresenta como uma clara diminuição relativa dos níveis salariais. Com isso, a sociedade brasileira assiste a uma intensificação deliberada e pontual de práticas de criminalização das sindicais e dos movimentos grevistas só equiparado aos períodos mais autoritários da política nacional.

Da mesma forma que ocorre no setor energético, a postura autoritária e prepotente do governo impede a discussão de fundo sobre a atual política nacional de ampliação e reformulação do ensino superior público, algo que inclui um conjunto de ações heterogêneas colocadas em ação nos últimos anos, como as políticas de cotas, a reserva de vagas para alunos provenientes do sistema público, o REUNI (ampliação de vagas, cursos e universidades), a reformulação da estrutura e dos critérios de progressão na carreira, a consolidação de regras produtivistas na avaliação docente e outras tantas medidas. Não cabe aqui discutir cada uma dessas medidas, algumas delas de caráter positivo como as políticas de cotas para negros, índios e alunos de escola pública. O projeto de ampliação da Universidade Pública é fundamental para a consolidação da democracia e para o avanço no combate às desigualdades sociais e econômicas. Mas é preciso ter cuidado para que esse projeto não resulte, em médio e longo prazo, no sucateamento 'brando' do ensino público, que além da gratuidade, também deve manter a sua qualidade como valor inabalável. É nesse sentido que é importante refletir e coordenar esse conjunto de medidas, buscando harmonizá-las em um projeto que tenha efeito positivo a médio e longo prazo.

Infelizmente, a greve não tem colaborado para criar um espaço de reflexão sobre o projeto educacional que queremos para o Brasil. Para fazer a diferença é preciso eleger a educação como um tema fundamental. Reduzir a crise do ensino superior à simples imposição de propostas 'para inglês ver' é desqualificar a educação enquanto patrimônio nacional.      

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Curso de Campo Kayapó - 2012

Entre os dias 17 e 31 de julho,participei como instrutor em um curso de campo na aldeia mebêngôkre (Kayapó) A'ukre, localizada na TI Kayapó, no sudeste do Pará. O curso "Conservação, Vida Social e Desenvolvimento entre o Povo Indígena Kayapó do Sudeste da Amazônia" é uma iniciativa da Associação Floresta Protegida, do departamento de antropologia da Universidade de Maryland, em parceria local com a Universidade de Brasília (mais informações no link ao lado, "Curso de Campo Kayapó"). O curso - que integra a grade curricular do departamento de antropologia da Universidade de Maryland - é oferecido para alunos de graduação norte-americanos e também contou, neste ano, com a participação de uma aluna da China e com o acompanhamento de um grupo de estagiários Canadenses.

Os alunos matriculados ganham créditos pelas atividades e a iniciativa serve como um instrumento sustentável de geração de renda para a comunidade, que recebe uma taxa "comunitária" de U$ 400,00 por aluno, além de recursos repassados para as famílias e pessoas que participam diretamente nas atividades. Neste ano, o curso gerou cerca de R$ 10 mil em recursos disponibilizados diretamente para a comunidade, que possui grande demanda por iniciativas de geração de renda. O custo médio final para cada estudante chega próximo a US$ 3,5 mil, incluindo despesas com deslocamento e estadia.

O alto custo do curso é um dos principais fatores que dificultam a concepção de uma iniciativa semelhante voltada inteiramente (ou em parte) para estudantes brasileiros sediados em universidades federais. Atualmente, dois estudantes da UnB participam do curso como 'alunos visitantes', custeados pela Universidade de Maryland. Estamos buscando ampliar essa participação, seja através da incorporação de novas universidades parceiras, seja através da concepções de novos cursos, com novos parceiros.

A proposta geral do curso consiste em fornecer aos alunos noções fundamentais sobre uma diversidade de temas e disciplinas nas áreas de etnografia, etnologia, biologia e ecologia, buscando aliar o conhecimento didático fornecido no âmbito de seminários e oficinas com a vivência concreta de uma série de atividades desenvolvidas em contexto, nos espaços de habitação da aldeia, das trilhas comunitárias, dos rios e das diferentes paisagens ecológicas que compõem o ambiente local, estimulando em cada participante uma experiência existencial inesquecível. O tópico sobre "Técnicas de Pesca", por exemplo, é ministrado durante uma "expedição" com pescadores pelos diferentes ambientes de pesca existentes na região do entorno da aldeia. Nesse contexto, os alunos apreendem através da observação e experimentação direta das atividades de pesca, na companhia de instrutores e guias mebêngôkre. O mesmo ocorre com outros temas etnológicos e ecológicos abordados durante o curso, que não são apenas ministrados de forma didática, mas experimentados pelos estudantes.

A convivência, por um lado,  entre alunos, instrutores e estagiários de diferentes nacionalidades e, por outro lado, entre estes e os guias, instrutores e famílias indígenas que participam diretamente nas atividades promovidas durante o período, resulta em uma experiência de vida que supera as fronteiras linguísticas e socioculturais, constituindo um espaço-tempo de experimentação direta com a alteridade.

Deslocamento até a aldeia A'ukre (TI Kayapó, Pará)

Saí de Uberlândia no dia 17 de julho, por volta das 6:00hrs, em um avião pequeno da TRIP que me levou até Belo Horizonte, onde esperei por algumas horas até o horário da conexão em direção à Marabá, onde fiquei de encontrar o restante do grupo. A viagem foi relativamente tranquila, com uma breve passagem pela Serra dos Carajás. A visão aérea da região permite evidenciar o avanço do desmatamento, principalmente, ao sul e sudeste do Pará. Da janela da aeronave, é possível ver com nitidez os campos abertos no meio da mata, agora cobertos por uma pastagem rala que alimenta milhares de animais bovinos. Esses campos formam nódulos interligados por estradas de terra, onde os caminhões transitam levando e trazendo pessoas e coisas  das cidades para o interior. Trata-se de uma rede sociotécnica em intensa expansão que forma uma espécie de 'arco do desmatamento', que percorre o sul do Pará, do leste ao oeste. A grandiosidade da mata amazônica, no entanto, ainda predomina na paisagem como um verdadeiro oceano verde que resiste as investidas das frentes desenvolvimentistas. Uma parte considerável do trecho ainda em estado de conservação se encontra no interior da TI Kayapó, o que exige múltiplos esforços de fiscalização e proteção contra o avanço predatório de madeireiros e mineradores. Uma parte desse trabalho tem sido realizado pela AFP, em parceria com a FUNAI e outros parceiros locais.    

Cheguei em Marabá por volta do meio dia e encontrei Mayara, aluna da UnB, no aeroporto. Fomos encontrar o restante do grupo em um restaurante, onde almoçamos antes de continuar viagem até Tucumá. O trajeto Marabá-Tucuma está em condições deploráveis, com buracos imensos espalhados por toda parte, exigindo dos motoristas um cuidado redobrado. Levamos certa de 8 horas para percorrer um percurso de 400 km em um micro-ônibus. Chegamos em Tucuma por volta das 22hrs.

No outro dia de manha, a equipe fez uma reunião com os estudantes para apresentação do projeto, programação e exposição sobre a legislação indigenista atual e as diretrizes e regras de acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade (MP 2.186-16/2001).  Todos foram advertidos que a iniciativa visa unicamente a realização de atividades de ensino e de vivência extensionista. Os estudantes e instrutores foram informados sobre o compromisso, assumido pelo grupo frente aos órgãos governamentais, de não acessar conhecimentos associados à biodiversidade local, ponto com o qual todos concordaram sem qualquer objeção. Os estudantes também foram esclarecidos sobre os direitos autorais e procedimentos éticos associados aos direitos de imagem e receberam uma série de informações sobre o projeto. Ao final, um documento foi redigido e assinado por todos os integrantes do grupo, manifestando conhecimento sobre a legislação brasileira e o seu comprometimento em respeitá-la em todos os seus aspectos.

Por volta das 16hrs, eu, Kurt (estagiário canadense) e Tiago (instrutor mebêngôkre) partimos de avião para a aldeia A'Ukre, onde aguardamos até o dia seguinte pelo restante do grupo. A chegada na aldeia foi acompanhada por um grupo de crianças e mulheres que vieram nos receber na cabeceira da pista de terra. Também fomos recebidos por um dos caciques da aldeia e por Pat-i e Mecangô, instrutores mebêngôkre responsáveis por nos auxiliar com o curso.


Após montarmos nossas barracas na casa do projeto, fomos assistir um jogo de futebol no campo principal da aldeia, localizado ao lado da pista de pouso. Os mebêngôkre da aldeia A'Ukre, assim como seus parentes de outras aldeias kayapó da região, adoram jogar futebol, esporte que costumam praticar quase todos os dias, ao final da tarde. Eles participam todos os anos dos jogos municipais nas cidades de Tucuma e Redenção.



Atividades do Curso de Campo (2012)

Assim que os demais integrantes chegaram na A'Ukre, o coletivo inicial de estudantes foi dividido em dois grupos menores, sendo que o "grupo A" permaneceu na aldeia junto comigo, Laura, Phil e mais dois instrutores mebêngôkre e o "grupo B" foi de barco até a base de pesquisa Pinkaiti, acompanhados por Barbara, Pingo e um grupo de guias mebêngôkre.



No dia 24 de julho, o "grupo B" (acompanhados por dois estagiários canadenses) retornou para a aldeia e o "grupo A" (acompanhado pelo instrutor Phill) se deslocou até a base de pesquisa. Com isso, todos os estudantes tiveram a oportunidade de desfrutar da programação de atividades tanto na área de ecologia/biologia como na área de etnologia.

Segue abaixo a lista de atividades vivenciadas pelos alunos do curso durante o período de permanência na aldeia A'Ukre e na base de pesquisa Pikaiti.

Módulo de Etnologia Kayapó - Aldeia A'Ukre
Instrutores: Laura Zanotti, Diego Soares e Phill Nash
  • Tópico "Vivência na Roça e Agrobiodiversidade mebêngôkre": visita a roças mebêngôkre e debate com os alunos e guias indígenas sobre a diversidade de plantas e variedades cultivadas na roça ;
  • Tópico sobre mitos e histórias associadas às plantas cultivadas na roça;
  • Tópico "Vivência em Trilhas na Mata", caminhos comunitários utilizados na caça e na coleta de recursos diversos (realização de uma trilha de 28 km ou 12 horas até uma cachoeira);
  • Tópico "Paisagens da Aldeia": caminhada pela aldeia e oficina sobre ordenação sociocultural do espaço e a noção de "paisagens indígenas";
  • Oficina de Pintura Corporal seguida de seminário sobre "Gênero, pessoa e corporalidade entre os Mebêngôkre-Kayapó";
  • Tópico "Rituais e Vida Cerimonial": participação em danças e rituais que integram a vida cerimonial dos mebêngôhre da A'Ukre e discussão/debate com os estudantes sobre o tema;
  • Tópico "Educação Indígena": seminário/oficina com professores mebêngôkre da A'Ukre sobre a educação indígena na comunidade;
  • Tópico "Saúde Indígena": seminário/oficina com profissionais de saúde e agentes indígenas de saúde sobre o atendimento na aldeia;
  • Tópico "Vida e Cotidiano na Aldeia": realização de debates sobre relações sociais inter-familiares, entre famílias matriarcais (as "Casas"), relações geracionais e de gênero no cotidiano da aldeia;  
  • Tópico "Técnicas de Pesca": realização de 'expedições de pesca' e debate sobre técnicas e recursos pesqueiros com os guias/instrutores mebêngôkre.             











Módulo de Biologia/Ecologia - Base de Pesquisa Pikaiti
Instrutores: Adriano Jerozolimski e Barbara Zimmerman
  • Trilhas Ecológicas na área da base de pesquisa, com realização de seminários sobre temas associados à ecologia e ao desenvolvimento sustentável;
  • Sessões de Vídeo (Ex: "The Kayapó", T. Turner) acompanhadas por debate com guias mebêngôkre sobre o (s) tema (s) abordado no filme ou documentário;
  • Seminário sobre projetos e fontes de sustentabilidade e a sua viabilidade sociocultural e ecológica (Castanhas, Sementes de Cumaru, Artesanato, etc.);
  • Trilha até a Cachoeira e tópico sobre técnicas mebêngôkre de pesca e caça;
  • Trilhas e atividades de observação da vida animal noturna nas imediações da base de pesquisa e na cachoeira;
  • Seminários sobre projetos e atividades desenvolvidas pela Associação Floresta Protegida (AFP);      







No dia 29 de julho, os dois grupos de estudantes, estagiários e instrutores se reencontraram na aldeia A'Ukre para participar da programação final do curso. Após a realização de uma feira de troca e compra de artesanato envolvendo estudantes e a comunidade da A'Ukkre, os homens mebêngôkre realizaram uma dança na praça central  (com a participação de alguns estudantes e instrutores). Depois disso, foi realizado uma roda de avaliação da iniciativa por estudantes e membros da comunidade e uma reunião final entre lideranças indígenas e instrutores do curso.




No dia 30 de julho, o grupo retornou para Tucuma de avião. A tarde foi realizado um seminário com membros da FUNAI Regional, onde as atividades deste órgão público foram apresentadas e discutidas com os estudantes. A noite foi realizado um jantar de finalização do curso, que também contou com a participação de funcionários da FUNAI e colaboradores da AFP.

No dia 31 de julho, pegamos o ônibus de volta para Marabá por volta das 04:00 horas da manha, chegando nesta cidade ao meio-dia, onde eu e Mayara (aluna da UnB) retornamos de avião, respectivamente, para Uberlândia e Brasília. Os demais integrantes do grupo continuaram viagem terrestre até Belém, onde aguardaram entre dois e três dias para retornarem para os locais de origem.

Além de participar como instrutor nas atividades que integram a programação do curso de campo, tive a oportunidade de discutir e planejar com as lideranças mebêngôkre da aldeia A'Ukre o esboço inicial de um programa de pesquisa, ensino e extensão que pretendemos colocar em prática até o final de 2013, a partir de uma parceria institucional entre a UFU e a AFP. A iniciativa, que ainda se encontra em etapa inicial de elaboração, irá integrar projetos na área de inclusão digital, preservação do patrimônio cultural, educação escolar indígena e conhecimentos tradicionais.

Também tive a oportunidade de discutir questões associadas a implantação, em diferentes aldeias kayapós da região, do projeto "Pontos de Cultura Indígena" na TI Kayapó. O projeto prevê a instalação de centros de multimídia nas aldeias, fornecendo a infra-estrutura (computadores, câmeras de vídeo e fotografia, gravadores digitais, acesso à internet via satélite) e uma série diversificada de atividades de capacitação.  A iniciativa ainda depende da liberação dos recursos pelo governo e pela instituição executora. Existe uma expectativa que isso venha a ocorrer no próximo ano.  

Por último, é importante observar que foi discutido com os demais membros da equipe executora do curso a formalização de uma parceria com a Universidade Federal de Uberlândia em torno de uma segunda versão do mesmo curso de campo, possivelmente a partir do estabelecimento de uma parceria institucional com a AFP, a Universidade de Perdue e a Universidade de Maryland. Vamos buscar, no decorrer do próximo ano, viabilizar tal projeto do ponto de vista institucional e administrativo.  



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