terça-feira, 14 de agosto de 2012

Epistemologia-Ontologia em Bateson: traduções e agenciamentos

O agenciamento de conceitos - como toda e qualquer 'tradução' (no sentido de "translação") - envolve certa parcela de 'traição', permitindo colocar em ação desvios sutis que fornecem a base para a 'relação' que se estabelece entre o 'texto' (o artigo ou livro) e outras 'textos' (e autores). De fato, o uso (ou consumo) de teorias, obras e autores não envolve a simples reprodução de noções ortodoxas, mas um agenciamento da 'diferença' para projetar ou descrever circunstâncias específicas (o tipo de 'unidade de informação' que faz a diferença em determinado contexto etnográfico, por exemplo).

Ao mesmo tempo, Foucault já demonstrou que a 'autoria' não reflete uma unicidade (da obra ou do autor), mas uma multiplicidade de perspectivas teóricas e enunciados que se transformam a partir da relação que estabelecem entre si. Com isso, os autores de obras (um conjunto heterogêneos de livros e artigos) permitem diversas apropriações, em momentos diferentes da trajetória intelectual do autor. Por isso é possível falar de um "Jovem Marx" em contraposição ao "Velho Marx" ou do Lévi-Strauss das "Estruturas Elementares do Parentesco" ou da série "Mitológicas". Em alguns casos, a diferença entre um livro e outro do mesmo autor é tão significativa que o próprio escritor tem dificuldade em se reconhecer nos seus escritos mais antigos.

Enfim, seja pelo lado do consumo de teorias e autores, seja pelo lado da produção, a multiplicidade inerente à obra de arte (ou científica, existe mais em comum entre essas duas atividades do que a epistemologia naturalista reconhece) permite múltiplas 'traduções', todas elas envolvendo certo agenciamento.

Vou citar um exemplo específico que reflete o tipo de 'controvérsia' que costuma acompanhar a 'economia da citação'. Na defesa da minha tese de doutorado em antropologia, ouvi de um colega o comentário de que eu teria elaborado uma crítica ao naturalismo ocidental a partir de duas perspectivas analíticas supostamente "irreconciliáveis": uma análise 'epistemológica' (presente na obra de Bateson, por exemplo) e outra 'ontológica', presente na obra de Heidegger e nos escritos mais recentes da 'ontologia política' (ver Law e Mol em outras postagens deste blog). A suposta 'aporia' viria do fato de Bateson ainda estar 'preso' à noção de 'epistemologia', enquanto a outra perspectiva busca se deslocar em direção à abordagem ontológica dos processos de conhecimento e saber.

[A confusão pode ser maior ainda quando levamos em consideração o fato da perspectiva teórica da 'ontologia política' ter sido proposta por seus defensores em contraposição à abordagem epistemológica defendida por autores como Susan Star e James Griesemer (ver o artigo clássico publicado em 1989 na biblioteca do blog), reafirmando a suposta 'aporia' reproduzida também por autores que assumem uma posição mais 'tradicional' em relação à divisão "Ontologia X Epistemologia".]

Tal polêmica, no entanto, assume um novo sentido quando vemos o próprio Bateson admitindo que, ao usar a noção de 'epistemologia', ele está também se referindo à ontologia, pois ambas seriam indissociáveis. Ele faz isso em um pequeno trecho publicado em um artigo sobre o tema do alcoolismo (autores nada didáticos como Bateson dificultam ainda mais a busca de uma 'tradução ortodoxa', no sentido de uma reprodução do conceito ou da teoria tal como foi concebida pelo autor, pois não costumam escrever resumos ou sínteses de suas ideias). Neste trecho, Bateson esclarece o uso que faz do conceito de 'epistemologia', uso esse bastante incomum. Vejamos.

"Os filósofos reconheceram e separaram dois tipos de problemas. Primeiro, existe o problema de como as coisas são, o que é uma pessoa, e que tipo de mundo é esse em que vivemos. Esses são os problemas da ontologia. Segundo, existe o problema de como conhecemos qualquer coisa, ou mais especificamente, como a gente sabe que tipo de mundo é este e que tipo de criatura somos nós quando dizemos que podemos conhecer algo (ou talvez nada) dessa questão. Esses são os problemas da epistemologia" (Tradução Livre, ver referência abaixo).

[Neste trecho, Bateson apresenta o seu ponto de partida: um contexto teórico onde ontologia e epistemologia remetem a problemáticas diferentes, que são abordadas separadamente. Se ficarmos aqui, poderíamos afirmar que Bateson faz uma opção por trabalhar com o segundo tipo de questões, mais propriamente de natureza 'epistemológica', enquanto autores como Heidegger estariam preocupados com o segundo tipo de questões, de natureza ontológica (leitura possível, já que todas as traduções são necessariamente 'parciais', apesar de não ser o caminho adotado na minha tese). O trecho subsequente, no entanto, revela a posição tomada por Bateson diante desse contexto (que envolve certo agenciamento da problemática)].

"Na história natural dos seres humanos vivos, ontologia e epistemologia não podem ser separadas. As crenças sobre o 'tipo' de mundo irão determinar a forma como o sujeito vê e age no mundo, e as suas formas de perceber o mundo e agenciá-lo irão determinar as suas crenças sobre o tipo de mundo em que ele vive. O homem vivo está associado a uma rede de pressupostos ontológicos e epistemológicos com os quais - independentemente de qualquer julgamento externo de verdade ou de falsidade - se tornam parcialmente auto-suficientes para ele".

[Neste trecho, Bateson desfaz a aporia construída e reificada por uma parte dos filósofos ocidentais, argumentando que, na fluxo da vida, questões epistemológicas e ontológicas são indissociáveis. Mais do que isso, o autor sugere a existência de uma espécie de circularidade entre os pressupostos ontológicos sobre o que existe e as formas de conhecer o 'existente'. Por último, ele esclarece o uso que faz das duas noções. O caminho percorrido por Bateson não consiste em dar enfase à epistemologia em detrimento da ontologia (ou o inverso, que também reifica o Grande Divisor) , mas em buscar desfazer a suposta aporia ao tornar epistemologia-ontologia perspectivas não somente indissociáveis, mas também interconectadas. Inclusive, a 'diferença' que faz a diferença na proposição teórica de Bateson - em relação a outras abordagens teóricas - não consiste em optar por um ou outro lado do divisor, mas em buscar superá-lo.]

"É estranho fazer referência constante à ontologia e à epistemologia e é incorreto sugerir que essas duas perspectivas são dissociáveis na análise da história do homem. Mas, ao que parece, não existe uma palavra adequada para expressar, simultaneamente, essas duas perspectivas [ontológica e epistemológica]. (...) Com isso, eu vou usar o termo 'epistemologia' neste artigo para abordar ambos os aspectos (ontológico e epistemológico) que determinam a adaptação (ou não adaptação) ao ambiente humano e não humano (ou natural)" (Tradução Livre).

Dizer que alguém fez um 'mal uso' de determinado autor, teoria ou conceito não é assim tão simples como gostariam os defensores da 'tradição ortodoxa' (se é que existe, de fato, algo assim). Não somente os autores que são citados agenciam os conceitos que utilizam em suas obras de maneira um tanto inusitada (como vimos aqui em relação às noções de 'epistemologia' e 'ontologia' em Bateson), como também existe todo um agenciamento que perpassa o consumo (ou uso) que envolve a leitura de um autor ou teoria.

Referência:
BATESON, G. 1972. The Cybernetics of 'Self': a theory of Alcoholism. IN:______. Steps to an Ecology of Mind.  

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