segunda-feira, 24 de junho de 2013

O Movimento dos Manifestantes: razões, motivações e contradições

Quem são os manifestantes?

Os primeiros protestos foram promovidos por manifestantes diretamente ou indiretamente vinculados ao Movimento Passe Livre e a questão do transporte público (ver post anterior). Após as primeiras manifestações e diante da postura dos governadores e prefeitos, da polícia e da grande mídia, que classificaram as ações como "atos de vandalismo" e os autores como "vândalos", o coletivo de manifestantes passou por uma transformação radical em sua composição interna. Mobilizados por uma insatisfação generalizada com a classe governamental (dos três poderes da república e em todos os níveis de governo, a mesma história pronunciada e reificada diariamente na Grande Mídia), pessoas de todos os tipos aderiram ao movimento, em sua maioria, jovens de classe média. Articulados por meio das redes sociais, o Movimento multiplicou extraordinariamente a sua força política em poucos dias, ampliando também a sua pauta de reivindicações. Surgiram novos coletivos formados por pessoas desvinculadas de partidos políticos, o que não significa que não sejam eleitores e não participem de outros níveis de exercício da cidadania, inclusive por meio do voto.

Esse vasto e variado contingente com forte tendência para o pensamento de esquerda mobilizou-se pelas razões mais variadas: contra a corrupção e o mau uso dos recursos públicos (talvez a insatisfação mais latente e generalizada); contra projetos conservadores que colocam em risco direitos conquistados na constituinte; contra o esvaziamento ideológico dos partidos políticos e dos próprios governos (cada vez mais voltados para a conquista do poder e manutenção da "governabilidade" a qualquer custo); contra os privilégios da classe governamental; contra a ação homofóbica sintetizada na figura de Feliciano e seus aliados e apoiadores; pela melhoria da educação, da saúde, do transporte público de qualidade, da reforma agrária, da reforma política e tributária, da igualdade racial e de gênero, dos direitos indígenas e do meio ambiente. A maior parte dessas pessoas é de esquerda e votou em Dilma ou na Marina nas últimas eleições, mas se decepcionou profundamente com as alianças feitas em nome da governabilidade e com a incapacidade política do governo federal em levar adiante propostas e bandeiras políticas históricas do Partido dos Trabalhadores e de outros partidos de esquerda. Algumas delas desistiram da via partidária há décadas ou se afastaram do Partido dos Trabalhadores para formar novos partidos, com tendências políticas mais à esquerda.

Motivados por toda série de insatisfação, os 'insurgentes moderados' se revoltam contra a destruição iminente dos seus sonhos, das suas inquietudes mais profundas, da total ausência de perspectiva ideológica, e emergem 'além-mundo' feito rizomas nômades,  numa avalanche de sentidos que transborda os limites quadráticos e euclidianos das frases e bandeiras de efeito moral (e muitas vezes moralista). Esses 'renegados' da história política recente não conseguiram acompanhar  os impressionantes desvios e contorções ideológicas de suas principais lideranças e acabaram ficando para trás, em algum lugar no meio do caminho. São as pedras do poema que invadiram as ruas, que ocuparam os prédios públicos da cidade e que agora sentem - mesmo que de forma estereotipada como as camisetas de Guevara vendidas nas esquinas das grandes metrópoles - um suspiro e uma inquietação que transborda pelas frestas da estrutura, que já não tem lugar e por isso avança, atento e determinado, em busca de um mundo que ainda não existe e que parece condenado a desaparecer sem deixar vestígios.    

Obviamente, quando a mídia e a polícia mudaram a sua atitude em relação às manifestações, entraram em cena grupos mais radicais que agenciaram o anonimato das massas para  colocar em prática suas táticas e estratégias de ação direta.

Com isso, grupos civis organizados passaram a agir em meio a massa de manifestantes, separando-se deles em momentos estratégicos e promovendo ações independentes, como a depredação, principalmente, de bens públicos, mas também privados. Esses grupos já existiam antes do Movimento e utilizaram os protestos para disseminar as suas modalidades tradicionais de ação política. Apesar do uso da violência representar um ataque à democracia, já que equaciona a diversidade ideológica a partir da intolerância e da luta direta com o diferente, não podemos deixar de reconhecer que esses grupos agem de forma organizada e consciente, fazendo uso de estratégias de ação direta associadas às noções de "guerrilha urbana" e "enfrentamento" com as forças policiais, em um estilo muito próximo do grupo anarquista "black pot". Podemos ver essa coerência na própria escolha dos alvos dos ataques: prédios e bens públicos, unidades policiais e a própria polícia, bancos, instituições comerciais e unidades móveis da grande mídia. Ora, mesmo quem é contrário ao uso de violência nas manifestações políticas, não pode deixar de perceber que se trata de grupos civis organizados para fins específicos de ação política, mesmo que as suas práticas e estratégias sejam condenáveis e, até certo ponto, consideradas 'selvagens' e contraproducentes.

[O pior 'vandalismo' é aquele perpetuado pela corrupção do poder público e privado, o chamado crime do 'colarinho branco'. A raiva, o ódio e a violência se alimentam do mau exemplo dado pelos corruptos e pelo descaso geral com o bem público].

A questão, portanto, é saber como os governos pretendem lidar com esses grupos? Classificando-os como "terroristas" e criminalizando suas ações ou buscando constituir um canal de diálogo com suas lideranças (será isso possível?). De fato, ainda conhecemos muito pouco sobre a identidade, os valores e as formas de organização social desses grupos mais radicais, alguns deles com orientação ideológica mais à direita (como é o caso dos Skin Head e dos Nazistas) e outros com posicionamentos políticos mais à esquerda, como é o caso dos grupos anarquistas que fazem uso de táticas violentas de ação política.

[Vale notar, no entanto, que o anarquismo político é um campo bastante múltiplo e variado de coletivos e indivíduos, alguns deles organizados, outros não, mas certamente sua diversidade não deve ser reduzida a uma ou outra de suas inúmeras versões. Existem coletivos anarquistas que são pacifistas e contrários ao uso de força física em manifestações políticas, com exceção da promoção de táticas de autodefesa e proteção. O Estado Brasileiro estaria cometendo um erro injustificável se passasse a perseguir os anarquistas e tratá-los genericamente como 'terroristas', o que constitui um atentado contra seus direitos civis e políticos. O Movimento Anarquista nacional e internacional não pode ser confundido com ações de grupos isolados que só vagamente se identificam com a teoria política anarquista.]

Uma questão importante que se coloca para o poder público e as forças policiais é como diferenciar e abordar diferentemente esses coletivos, que possuem identidades políticas antagônicas e valores políticos divergentes. Os grupos de direita visam, em última instância, instaurar uma ditadura de direita no Brasil e possuem uma postura intolerante em relação a diferenças "raciais" e de gênero; já os grupos radicais de esquerda querem promover uma revolução popular e instalar formas alternativas de representação política. Estamos diante, portanto, de forças políticas mais à direita e à esquerda do cenário político brasileiro, que possuem apenas um único fator em comum: ambas fazem uso de estratégias e táticas de luta radicais e não se organizam através de partidos políticos, apesarem de atuarem enquanto um "movimento político".

[É importante citar um dado relevante e surpreendente. Conforme pesquisa realizada pelo Ibope, apesar da maioria dos manifestantes não concordar com ações de depredação do patrimônio público, 28% concordam que essas ações são justificáveis em 'alguns casos'].  

Paralelo a esses grupos civis mais radicais, existe também uma massa de desatentos que dormia um sono profundo e que agora se sente 'acordada' e 'alerta'. São jovens de classe média que até ontem se deliciavam com o 'fast-food' ideológico encontrado nas prateleiras da grande mídia, com seus jargões terroristas e seu niilismo inconsequente. Esses jovens se sentem 'perdidos', sem 'um lugar' ou uma 'perspectiva histórica'. Eles são o fruto subversivo de uma sociedade vazia de ideologias e utopias. Ainda sob o efeito entorpecedor do protagonismo providencial dos holofotes da mídia, esses anti-heróis do nosso tempo são como zumbis que ainda não encontraram sua redenção e descansam eternamente nos braços da mãe gentil. Esses homens-pequenos se transformam em gigantes quando protegidos pelo anonimato das massas. Essa força e essa potência de jovens de classe média que acabaram de acordar para a política é extremamente maleável, efêmera, inconstante e imprevisível, podendo dar origem a bulbos rizomáticos ou à árvores de raízes nacionalistas e até mesmo fascistas e homofóbicas. Aqui, sem dúvida, é preciso ter cuidado para não afugentar esses 'recém chegados' e lançá-los não mãos utilitárias dos setores mais conservadores da nossa sociedade. O aspecto efêmero e inconstante de sua disposição política pode servir de subsídio para o brotamento espontâneo de ideologias políticas fascistas. Por outro lado, a sua imensa potencialidade pode servir como ponto de partida para projetos políticos revolucionários e de esquerda. Cabe agora saber como essa 'nova' força política será agenciada no cenário político brasileiro.

Por último, existem os coletivos de manifestantes que representam uma minoria associada a partidos de direita ou de oposição. Esses "manifestantes retardatários" - pois só aderiram às manifestações tardiamente e de forma oportunista - buscam agenciar os protestos para disseminar seus projetos golpistas. De fato, esses são os "infiltrados", aqueles que querem transformar o Movimento exatamente naquilo que ele não é, i.e., numa ação de retomada do poder pelos partidos de direita. Trata-se de grupos como o "Golpe Militar de 2014", que se manifestam, em grande parte, por meio das redes sociais, mas que, no geral, possuem pouca ou quase nenhuma ressonância na massa de manifestantes. Inclusive, boa parte desses coletivos civis organizados já existia e atuava antes da emergência das manifestações. Em geral, trata-se de forças políticas nem tão 'ocultas' que compartilham entre si uma mentalidade fascista e autoritária gestada pelo regime de exceção dos governos militares. Outra questão que resta a ser investigada é a ligação desses micro-fascismos extremistas com partidos de direita que também propagam, nos bastidores do poder republicano, um discurso com forte tendência golpista. Outro sério risco é que esses setores fascistas acabem conseguindo arregimentar e agenciar a insatisfação e o entorpecimento dos 'desavisados' que até ondem dormiam sem sonhar, aumentando significativamente suas fileiras de combatentes.  

[Talvez seja essa a razão para que a presença desses setores minoritários entre os manifestantes tenha incentivado a disseminação precipitada de boatos e conjecturas absurdas, comparando, por exemplo, o Movimento dos manifestantes com a Marcha por Deus, pela família e pela propriedade privada de 1964. Essas interpretações foram alimentadas pelo uso, por parte de alguns manifestantes, de antigos slogans como "O Gigante Acordou" e frases do gênero. Apesar de uma parte dos manifestante ser composta por jovens que estão, de fato, "acordando" para a vida política brasileira (não posso deixar de notar e questionar o caráter 'iluminista' dessa expressão), amplos setores da população e muitos dos próprios manifestantes já estavam acordados e alertas há muito tempo, atuando em partidos, ONGs ou movimentos sociais. De fato, a história política do país demonstra claramente que os estudantes, trabalhadores e camponeses nunca tiveram o privilégio do sono profundo. Talvez isso seja aplicável apenas aos jovens e adultos da classe média, cuja uma parte significativa esteve descansando em águas profundas, ainda sob o efeito nefasto da apatia civil promovida pelos regimes militares. No entanto, essas particularidades simbólicas que perpassam o Movimento não devem ser utilizadas como subsídio para a generalização de estereótipos ou para a propagação do medo, pois ao criar alusões desta magnitude acabamos por silenciar a energia e a potência revolucionária de outra parte do movimento que, apesar de heterogêneo e "a-partidário", nunca esteve apático e tem fortes ligações com bandeiras politicas historicamente 'de esquerda'. Aqui, mais do nunca, não podemos deixar que as batalhas de interpretação acabem por sobrepor a imagem da "Maioria" (qualitativa e não quantitativa) sobre os devires-minoritários que perpassam o Movimento e que podem potencializar projetos políticos revolucionários.]        

Em meio à massa de manifestantes existem também indivíduos que se aproveitam de uma situação de exceção para roubar e cometer toda série de ilegalidade. Esses indivíduos são mais difíceis de identificar e controlar, pois eles se aproveitam do anonimato para gozar da impunidade.

Do ponto de vista quantitativo, conforme pesquisa realizada pelo Ibope entre a massa de manifestantes, 52% dos manifestantes eram estudantes; 43% tinham menos de 24 anos; 43% possuem ensino superior completo, 49% disseram ter renda familiar acima de cinco salários mínimos (R$ 3.390,00); e 46% nunca haviam participado antes de manifestações políticas. Esses dados fornecem um retrato do Movimento, formado, em grande parte, por jovens de classe média e baixa.

Todos esses coletivos são compostos não somente por elementos humanos, mas também por aparelhos e objetos que compõem sua agência política. Estamos aqui diante de um campo bastante heterogêneo que envolve desde cartazes, camisetas, máscaras e faixas utilizadas para expressar as ideias e bandeiras políticas, até aparelhos tecnológicos como a internet, computadores, máquinas fotográficas, filmadores digitais e celulares, aparelhos que permitem a expressão pública de ideias e valores, o registro das ações e sua divulgação por meios das redes sociais. O papel que esses elementos não humanos desempenham nas redes sociotécnicas associadas ao Movimento dos Manifestantes deve ser levado em conta no estudo desses eventos de protagonismo político. Os recursos teórico-metodológicos fornecidos pela Teoria Ator-rede me parecem os mais apropriados e potencialmente eficazes para compreender a associação entre coisas e pessoas que está na origem dessa extensa rede de manifestantes que ocuparam as ruas e avenidas das grandes metrópoles mundiais.

Quais são as razões e motivações dos manifestantes?

Na minha opinião, não existe um único fator que determinou a emergência das manifestações no cenário político brasileiro. De fato, esse mapeamento das motivações e insatisfações só será possível a partir de estudos mais densos sobre as manifestações e os próprios manifestantes. Uma das razões para isso é a própria heterogeneidade do Movimento, que não pode ser reduzido a uma de suas várias partes ou eixos de disseminação. Ao tentar homogeneizar um coletivo de vozes diversificadas, acabamos por fabricar estereótipos imprecisos. Qualquer tentativa de pressupor uma identidade que não comporte, em si mesma, certa multiplicidade de vozes e opiniões, resultará em uma visão deturpada sobre o Movimento, seus protagonistas e suas razões históricas. Tenho certeza que, nos próximos anos, os eventos que acompanhamos nas últimas semanas serão objeto de inúmeras pesquisas nas áreas de ciências sociais e humanas. Podemos, no entanto, contribuir para esse mapeamento a partir de algumas anotações iniciais.

A razão mais geral e, provavelmente, também a mais espontânea e estrutural, é a indignação com a classe política e governamental. As pessoas estão cansadas de conviver com contradições evidentes de um país com problemas estruturais, como a alta desigualdade econômica e social. Ninguém suporta saber que, enquanto pessoas ganham um salário miserável, os políticos têm inúmeros privilégios, além de um excelente salário. Num país com alta taxa de desigualdade econômica, sustentar uma elite governamental extremamente onerosa e, na maioria dos casos, improdutiva,  é uma contradição evidente aos olhos da sociedade civil. Esse sentimento cresce ainda mais diante das constantes notícias de corrupção e mau uso dos recursos públicos. A indignação aumenta ainda mais quando as pessoas se dão conta do quanto elas pagam de impostos e o que isso representa na economia familiar. Campanhas e projetos de lei que buscam dar visibilidade aos impostos embutidos no preço das mercadorias tem incentivado a revolta popular contra o uso indevido dos tributos estatais. A incapacidade dos governos em fazer uma reforma tributária profunda que promova um ajuste nas irregularidades existentes tem levado as pessoas a se manifestarem contra o que consideram um "roubo". Vale notar que não se trata aqui de ser contra a cobrança de tributos - essa é a tradução/versão propagada pelos empresários, pela indústria e pelos meios de comunicação - mas no fato de que, apesar da alta carga tributária, os serviços públicos, em geral, continuam sendo de péssima qualidade e acabam indo parar - através da corrupção - no bolso da classe político-partidária e governamental.

Além dessa razão mais geral - o que não significa que ela seja a mais importante ou significativa -, existem outras tantas razões mais específicas que são compartilhadas por apenas uma parte ou outra do Movimento, mas que estão mais ou menos disseminadas enquanto bandeiras secundárias para boa parte dos manifestantes: educação, saúde, transporte público, desigualdade econômica e social, além de projetos conservadores ou lutas históricas das minorias, como os direitos indígenas, de gênero e o combate a homofobia. Essas razões têm como porta-vozes, em geral, pessoas comuns, que elegem um tema para o seu cartaz tendo como referências os debates e discussões que ocorrem nas redes sociais e nos meios de comunicação, expressando sua voz no coletivo de manifestações. É importante notar que essas noções também são amplamente compartilhadas. Pessoas que saíram para ´protestar contra a homofobia podem 'apoiar' manifestações mobilizadas contra o ataque aos direitos indígenas e ao meio ambiente (e vive-versa). Existe, portanto, um fluxo contínuo de razões que se associam ou dissociam entre si em maior ou menor medida. Ao participar de uma manifestação, logo notei a multiplicidade de vozes que constituem o coletivo de manifestante, mas também notei que essas vozes não eram dissonantes, mas na maioria dos casos convergentes e/ou paralelas.

Não resta dúvida que os coletivos de direita "infiltrados" na massa de manifestantes possuem razões e motivações bem diferentes e até mesmo opostas às razões e motivações da maior parte das pessoas mobilizada nos protestos das últimas semanas. Seus interesses são notórios e públicos e estão expressos em toda série de documentos escritos e seus projetos políticos são divulgados por meio de redes sociais, blogs e sites. Não se trata, portanto, de nenhuma novidade. Por outro lado, não resta dúvida que essas razões e motivações representam uma pequena minoria dos interesses envolvidos na massa de manifestações políticas e seria um grave erro metodológico conferir a essas exceções o caráter de 'norma' ou 'média', pois certamente não se trata aqui de algo relevante ou representativo tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo.                

O a-partidarismo e a insatisfação com o atual sistema de representação política

Muito tem se falado sobre o caráter a-partidário do Movimento de manifestantes. Conforme pesquisa do Ibope, 89% dos manifestantes disseram não se sentirem representados por qualquer partido político e 96% não são filiados. Antes de abordarmos as razões e motivações do sentimento a-partidário, precisamos limpar o terreno de teses equivocadas sobre o "a-partidarismo".

1) Existe uma diferença conceitual entre "a-partidarismo" e "anti-partidarismo". No primeiro caso, trata-se de uma ausência de identificação com os partidos políticos atuais e suas formas de organização, o que significa que esse termo expressa o fato das pessoas não serem 'filiadas' a nenhum partido político na atualidade, o que não significa que não tenham apoiado partidos políticos no passado ou não estejam dispostas a aderir a projetos políticos partidários no futuro. No segundo caso, trata-se de uma crítica histórica consciente à forma de organização político-partidária, postura geralmente associada a coletivos que defendem outras formas de ação política organizada;

2) A Ciência Política demonstra claramente que, pelos menos, desde o pensamento político de Aristóteles, sabe-se que a atividade política é inerente ao ser humano, daí o termo de "sujeito político" para referir-se a nossa forma de estar e viver no mundo;

3) Como muito bem esclarece o próprio marxismo, o Partido é, sim, um instrumento de exercício da política, mas não é o único. A política é uma atividade que perpassa outros setores da nossa sociedade: a família, o ambiente empresarial, as associações profissionais e de classe, as escolas e universidades, as fábricas e empresas, os bancos e instituições financeiras, as organizações não governamentais, os movimentos sociais, as diferentes igrejas e religiões, as relações comerciais e econômicas, a mídia e os meios de comunicação, etc. Reduzir a atividade política ao exercício partidário é um equivoco e tanto;

4) O fato das pessoas não serem filiadas a partidos políticos não significa, obviamente, que elas não exercem o voto nas eleições. Inclusive, boa parte dos manifestantes teve papel ativo nas últimas eleições, muito deles, inclusive, votaram na Dilma no primeiro ou no segundo turno. Outras ajudaram a eleger o Governo Lula, em 2002. Quando as pessoas dizem que são "a-partidárias", elas estão dizendo que, atualmente, não estão envolvidas diretamente com as questões deste ou daquele partido político ou que simplesmente não são filiadas a nenhum partido político, simples assim.

Mas porque essa insatisfação generalizada com os nossos partidos políticos e com a estrutura partidária? Ora, não é de hoje que os especialistas defendem a tese do "esvaziamento ideológico" dos partidos políticos no Brasil. Inclusive, existem pesquisas que apontam que boa parte dos eleitores não vota no partido "x" ou "f", mas neste ou naquele candidato. Por outro lado, os partidos atuais possuem uma organização social e política cujo esboço inicial foi construído na Grécia e na Roma Antiga, mas cuja forma atual foi concebida ao longo dos séculos XVIII e XIX. Ora, desde então, as sociedades ocidentais passaram por profundas transformações sociais e tecnológicas. Com isso, da mesma forma que fazemos, por exemplo, com outras instituições como a Igreja ou a escola, devemos questionar se a estrutura partidária foi capaz de se adaptar aos novos tempos ou se tornou obsoleta. Na minha opinião, eventos de mobilização direta da sociedade civil em diversos países do mundo apontam para uma falência da capacidade de organização das demandas civis por parte da classe política e dos partidos tradicionais.

É importante notar que a via partidária não é e nunca foi a única forma de fazer política na democracia. E essa questão de fazer política de outras formas nos remete a antigos debates do socialismo revolucionário, envolvendo figuras históricas do anarquismo e do marxismo. Existem, inclusive, milhares de grupos civis organizados no mundo inteiro que se identificam com a forma anarquista de fazer política e se organizam politicamente tendo como referência as noções de ação direta e auto-organização ou auto-gestão. É importante notar que a maior parte dos coletivos anarquistas não fazem uso de ações e táticas violentas de luta política, sendo que muitos desses coletivos possuem uma postura claramente pacifista. O Brasil, inclusive, foi palco de importantes ações anarquistas nas décadas de 1920-40, quando coletivos formados por imigrantes europeus desempenhavam um importante papel na luta de classes em diversas cidades brasileiras, como Porto Alegre e São Paulo. Boa parte dessas manifestações anarquistas resultaram nos direitos trabalhistas instaurados pelo primeiro governo de Getúlio Vargas, que também fez de tudo para institucionalizar e disciplinar esses setores mais radicais da sociedade civil por meio da criação de sindicatos e partidos políticos mais ou menos atrelados ao Estado.

O próprio Movimento dos Manifestantes é um bom exemplo de como é possível fazer ações políticas eficazes sem ser por intermédio dos partidos políticos. Inclusive, a forma de organização política descentralizada do Movimento deve ser estudada mais densamente, assim como o seu caráter mais ou menos "espontâneo", pois esses fatores podem oferecer uma boa indicação de alternativas ou impasses atrelados à difícil tarefa de superar a crise das instituições da democracia participativa.

O Papel das Redes Sociais

É importante notar o papel que as redes sociais têm na conscientização popular das contradições estruturais de uma sociedade capitalista: 76% dos manifestantes que participaram da pesquisa do Ibope disseram que fizeram uso das redes sociais para convidar amigos para manifestações. Esse padrão de organização política se alimenta de uma vasta rede de contra-informação que cresce a cada dia que passa, conseguindo, com isso, colocar em disputa a interpretação dos fatos, acirrando, portanto, as batalhas de interpretação e retirando um pouco do imenso poder de formar "opinião pública" que a grande mídia historicamente teve no Brasil e no mundo. A alta velocidade de disseminação rizomática das informações em amplos setores da sociedade civil tem levado a um aumento significativo do protagonismo político. Até maio de 2013, esse protagonismo era exercido, em grande parte, no ambiente virtual ou em eventos e mobilizações mais localizadas. A maior novidade deste Movimento é que as pessoas resolveram sair do ambiente virtual e ir para o mundo da vida, encontrando-se de "carne e osso" nas ruas e avenidas das cidades. Esse movimento de transbordamento do "virtual" para as ruas teve início há mais de uma década, quando a internet começou a se popularizar entre jovens de classe média, uma parte deles de esquerda. Ele esteve presente como importante fator de organização social, por exemplo, nas manifestações e protestos políticos promovidos pelos primeiros integrantes do MPL.

Existe, portanto, uma especificidade na forma como os manifestantes se organizam e se mobilizam e as redes sociais têm exercido um papel fundamental nessa forma de organização sociotécnica. As informações circulam de forma descentralizada, mas seguindo feixes ou eixos de dispersão que compartilham entre si uma determinada tendência ideológica ou posicionamento político. Esse fato não é novidade e existem, inclusive, grupos de pesquisa voltados para o estudo da circulação rizomática e arbórea de informações e posicionamentos políticos nas redes sociais. Ver, por exemplo, o excelente trabalho desenvolvido pelo "Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura" (LABIC).          

É importante notar que o poder de agência e eficácia das ações políticas desses novos movimentos civis é o efeito da associação entre elementos humanos e não humanos. Vale notar aqui o papel que  os aparelhos de mediação sociotécnica possuem na circulação, disseminação, amplitude e alta ressonância política dos protestos que temos acompanhados nas últimos anos no Brasil e no mundo, assim como a importância estratégica do uso de aparelhos de registro audiovisual - câmeras fotográficas, celulares e filmadoras digitais -, que funcionam como um elemento de divulgação dos abusos cometidos pela polícia ou até mesmo como instrumentos de registro de eventos que não são transmitidos pela grande mídia.

A associação entre o Movimento dos manifestantes brasileiros e outros movimentos civis

É bastante evidente a relação entre as manifestações que ocorreram nas últimas semanas, no Brasil, com outros movimentos civis como "Occupy Wall Street", os protestos contra a política econômica adotada na União Européia e o conjunto de mobilizações políticas denominadas de "Primavera Árabe". Essas manifestações possuem vários pontos em comum, como é o caso do papel desempenhado pelas redes sociais nas formas de organização e mobilização política, o caráter a-partidário dos coletivos de manifestantes (pelo menos num primeiro momento) e uma insatisfação generalizada com a democracia representativa e com as formas tradicionais de organização política das sociedades ocidentais e "modernas".

Para o Movimento de Manifestantes, o grande desafio será manter o povo mobilizado na cobrança de atitudes e ações dos governantes. Essa tarefa tem sido a mais difícil e complexa. Os exemplos de outros movimentos como "Occupy Wall Street" apontam também para o caráter "efêmero" dessas novas mobilizações da sociedade civil. Da mesma forma surpreendente que os movimentos emergem no cenário político, eles também desaparecem da noite para o dia. Existe uma forte tendência que, após certo período de efervescência politica, as pessoas acabem retornando para suas rotinas de trabalho, família e lazer, deixando as atividades de protesto nas ruas para os movimentos sociais e os setores tradicionais da política partidária.

Por outro lado, o grau de resistência e densidade das manifestações civis tende a crescer na medida em que as contradições da democracia representativa e do capitalismo se multiplicam. Quanto maior for o vazio ideológico dos partidos políticos, quando mais os porta-vozes traírem as expectativas ideológicas dos coletivos que eles representam, maior será a força e a persistência das manifestações civis.

Diante do acirramento das relações de força no capitalismo contemporâneo - ocasionado, entre outras razões, por um acirramento da desigualdade econômica e social e pela crise ambiental - não seria uma hipótese equivocada apontar para um possível crescimento da periodicidade das manifestações políticas da sociedade civil.

Ainda em relação ao Movimento, outro desafio será equacionar as multiplicidade de vozes e interesses políticos agenciados nos protestos e mobilizações. Sabemos que os diferentes coletivos mobilizados nessas redes de ativistas envolvem atores que se diferenciam tanto pelos valores ideológicos que defendem, como pelas estratégias de luta e práticas políticas. Estabelecer um espaço de dialogo democrático entre as múltiplas diferenças que perpassam o Movimento representa um desafio e tanto para os manifestantes, algo que já ficou evidente na onda de protestos que acompanhamos nas últimas semanas.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Poética - Manuel Bandeira

"Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expe
diente protocolo e manifestações de apreço ao senhor
                                                             [diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicioná-
                  [rio o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de
                                                           [si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos do amante
                       [exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
                                        [maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.    

terça-feira, 18 de junho de 2013

O Movimento Passe Livre e a Revolta dos Manifestantes

Na última semana acompanhamos "ao vivo" cenas de violência policial contra manifestantes civis que ocuparam diversos setores da cidade de São Paulo, parando vias públicas com suas bandeiras de luta e gritos de guerra. Tratava-se de manifestações políticas pacíficas do Movimento Passe Livre, coletivo civil a-partidário que luta pela tarifa zero e por melhorias no transporte público das grandes metrópoles brasileiras. A ação foi organizada após o governo paulista anunciar um novo aumento no preço das passagens. Esse evento ocorreu paralelamente a outros atos civis em prol da defesa do transporte público, gratuito e de qualidade, em cidades como Porto Alegre, Curitiba, Rio de Janeiro, Fortaleza e Brasília.

O Movimento Passe Livre (MPL) representa uma importante inovação no cenário político brasileiro, tendo surgido oficialmente, em 2005, na Plenária Nacional pelo Passe Livre, em Porto Alegre. Desvinculado de qualquer partido político, em poucos anos o coletivo de manifestantes conseguiu forjar unidade a partir da multiplicidade, unindo uma diversidade de vozes em torno de um interesse em comum.  Antes disso, no entanto, já existiam movimentos em defesa do passe livre em outras cidades brasileiras, como é o caso de Florianópolis. Conforme informações prestadas pelo MPL, eventos como a "Revolta do Buzu" (Salvador, 2003) e as "Revoltas da Catraca" (Florianópolis, 2004-5) são marcos da recente história de mobilizações civis em defesa do transporte público gratuito e de qualidade. Conforme argumentam os membros do MPL, o transporte não pode ser tratado como mercadoria, pois  é o único meio de locomoção dos setores mais pobres da população - estudantes, trabalhadores e desempregados - que dependem dele para exercer outros direitos civis, como o acesso ao trabalho, à educação, aos serviços de saúde e lazer. [Site "Tarifa Zero" e MPL].

Os abusos cometidos pela polícia militar diante das manifestações do MPL demonstram claramente o seu total despreparo para lidar com atos políticos civis mesmo após vinte anos de democracia e às vésperas do país sediar uma copa do mundo. O uso recorrente de bombas de gás lacrimogênio, balas de borracha e spray de pimenta contra manifestantes nos remete à abordagem truculenta que os militares dispensavam aos movimentos populares na época da ditadura, evidenciado uma atitude anti-democrática do poder público, marcado pelo uso abusivo da autoridade policial contra a população civil. Essa atitude acabou incentivando a revolta de alguns grupos de manifestantes, que agiram em resposta à repressão com cenas dignas de uma rebelião popular, com depredação de bens públicos e privados, como o ataque a paradas de ônibus e a instituições do setor financeiro. Essas cenas de batalha foram televisionadas para o mundo inteiro e em poucos dias os atos civis se multiplicaram em várias cidades do Brasil. Essas manifestações também foram fortemente reprimidas pela polícia, que performou, em pleno século XXI, cenas dignas de uma ditadura militar, o que representa um grave retrocesso na ainda recente democracia brasileira.  

Ao mesmo tempo, em um claro exemplo de mau jornalismo, os grandes meios de comunicação transmitiram a notícia de forma superficial, nomeando as manifestações civis de "vandalismo". Nas palavras do guru decadente das organizações tabajaras, Arnaldo Jabor, tratava-se de uma "ação isolada de pessoas que não têm o que fazer e resolveram criar transtorno atoa". Nos primeiros dias de cobertura jornalística os manifestantes foram classificados como "vândalos" e estigmatizados como baderneiros nos principais telejornais brasileiros, com destaque especial para a rede globo. Ao invés de informar a população sobre as motivações legítimas dos manifestantes e os abusos evidentes da polícia, a primeira postura da mídia foi 'ocultar' as motivações dos manifestantes e deslegitimar suas ações políticas através das constantes acusações de vandalismo. Essa postura foi reforçada pelas declarações iniciais do governador e do prefeito de São Paulo, que não reconheceram qualquer legitimidade política nas ações do MPL, apoiaram a ação repressora das forças policiais e se colocaram contrários a qualquer forma de negociação com "vândalos".

Mais tarde, no entanto, diante da divulgação dos eventos na mídia internacional e da mobilização da população através das redes sociais - além do ataque sofrido pelos próprios repórteres que acompanhavam, nos últimos dias, os eventos na rua - o jornalismo tupiniquim 'voltou atrás' e resolveu 'representar' os atos políticos dos manifestantes como um movimento civil legítimo, apesar dos exageros cometidos por 'grupos isolados". Nunca antes a mudança de perspectiva jornalística sobre eventos políticos nacionais foi tão evidente como no caso das manifestações do MPL. Com o passar dos dias, os representantes governamentais também flexibilizaram seus discursos em nome do diálogo com o Movimento. Essa mudança radical de postura por parte da mídia e dos governantes reflete, em grande medida, a mobilização massiva da sociedade civil nas redes sociais, o que permitiu colocar em ação um poderoso plano de contra-informação, esclarecendo a sociedade brasileira sobre o serviço de desinformação performado em tempo real pelos grandes meios de comunicação.

Em um dos melhores exemplos de mobilização popular que a sociedade brasileira já produziu nas últimas décadas, os "manifestantes", conforme passaram a ser denominados na grande mídia, fizeram uso das redes sociais para planejar novos atos políticos em praticamente todas as grandes capitais brasileiras. Essas mobilizações culminaram em múltiplas ações coordenadas que ocorreram simultaneamente, no dia 17 de junho, em diversas capitais, do norte ao sul do país, mobilizando milhares de pessoas. Além dos membros do MPL, simpatizantes de outras causas políticas aderiram às manifestações e multiplicaram as barricadas do movimento. As ações foram convocadas, em grande parte, por meios virtuais e sem uma coordenação centralizada, envolvendo coletivos a-partidários ou multi-partidários mobilizados em torno de causas comuns, como a luta pela educação de qualidade, o acesso universal à saúde, o combate à corrupção, o alto custo de vida,  a criminalidade, os altos gastos públicos com a copa do mundo e outros problemas vivenciados pela sociedade brasileira, como a homofobia e a intolerância religiosa.

As manifestações também refletem a insatisfação popular diante de inúmeros projetos de lei que circulam atualmente no congresso nacional e que colocam em sério risco direitos civis, políticos e humanos conquistados via processo constituinte, em meados da década de 1980. Com isso, a adesão foi imediata e em grande escala: em poucas horas cidadãos comuns foram mobilizados por uma rede de ativistas anônimos. O 'efeito cascata' de informações transmitidas pela internet e pela própria grande mídia foi responsável pela amplitude das manifestações.

No distrito federal, por exemplo, os manifestante fizeram um ato histórico em frente ao Congresso Nacional, subindo a rampa da esplanada entoando o hino nacional e conclamando a liberdade de expressão.


No Rio de Janeiro,enquanto  milhares de pessoas vestidas de branco em sinal de paz se reuniam na Avenida Rio Branco em defesa da educação, do transporte público e da saúde de qualidade, grupos isolados ocuparam a Assembleia Legislativo do RJ e entraram em conflito direto com os policiais, encenando cenas dignas de uma rebelião popular.


Outras manifestações foram organizadas em Porto Alegre, Curitiba, Fortaleza, Belém e outras cidades brasileiras, a maior parte de forma pacífica e sem maiores confrontos com a polícia. Em Belo Horizonte, no entanto, após um conflito geral com a polícia militar, que tentava impedir a passeata de se aproximar do estádio de futebol que sediará a copa do mundo, uma parte dos manifestantes tentou ocupar o Palácio de Governo e foi reprimida veementemente pela polícia militar.


Se, em um primeiro momento, os atos políticos visavam unicamente a questão do acesso ao transporte público, as manifestações subsequentes ampliaram ainda mais os propósitos do movimento, incluindo a defesa da educação pública, do acesso à saúde e o combate à corrupção e ao mau uso do dinheiro público. Inclusive, muitas ações voltara-se também contra os gastos do governo federal  com a Copa do Mundo em detrimento de maiores investimentos, por exemplo, na educação e na saúde pública. A rápida adesão popular às manifestações é um sinal claro de insatisfação da sociedade com a qualidade dos serviços públicos, os altos gastos com obras públicas em geral e a corrupção em todos os setores do governo. Se existe uma palavra que possa descrever com sucesso o sentimento compartilhado pelo conjunto dos manifestantes é a palavra "indignação", que expressa claramente uma insatisfação geral com a lógica eleitoreira da política partidária e com a corrupção no poder público. A população já percebeu que os holofotes da copa do mundo funcionam como uma excelente e poderosa caixa de ressonância para os protestos da sociedade civil brasileira.

A incapacidade do governo, da grande mídia, da polícia e dos principais partidos políticos de direita e esquerda em lidar com a forma de fazer política inaugurada pelos 'novos caras pintadas' revela uma crise profunda da representatividade política nas democracias ocidentais contemporâneas, onde a lógica e a razão oculta do neoliberalismo orientam, de fato, as escolhas governamentais, em detrimento das razões sociais, ideológicas e políticas, gerando uma divergência entre as decisões tecnicistas tomadas pelos governantes e as demandas políticas colocadas pela sociedade civil. Apesar da magnitude épica dos atos políticos que acompanhamos nos últimos dias, os governantes continuam demonstrando que não estão dispostos a dialogar com os manifestantes, principalmente, no que se refere ao aumento das passagens de ônibus em São Paulo e em outras capitais brasileiras. Diante dessa postura autoritária das instituições políticas tradicionais - o que inclui também o estado de total apatia dos principais partidos políticos frente à ação de um movimento a-partidário e de caráter civil - cabe aos manifestante dar continuidade as suas ações de mobilização até que os governos resolvam retroceder e dialogar de fato em torno de suas demandas políticas. O argumento utilizado pelo prefeito de São Paulo de que não há recursos para subsidiar o preço das passagens de ônibus é uma contradição, principalmente, diante dos altos lucros da máfia do transporte público.  

Os protestos realizados no Brasil, no dia 17 de junho, inauguram uma nova era na política mundial, somando-se a outras manifestações civis que ocorreram nos últimos anos, como o Movimento de ocupação de Wall Street e as manifestações políticas no norte da África, na Grécia, no oriente médio e em outros países europeus.

Viva a liberdade de expressão popular e o poder de mobilização política e de ação direta da sociedade civil organizada!                

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Anões, antropólogos e cabeças de bacalhau existem?

O post "Coisas que você nunca viu: cabeça de bacalhau, enterro de anão e antropólogo que faz laudo", publicado no blog de Reinaldo Azevedo, é um bom exemplo de desinformação popular. No texto, que faz referência a um suposto laudo da Embrapa sobre 15 processos de reconhecimento de Terras Indígenas no Paraná, o autor pergunta porque a população não sabe nada, ou quase nada, sobre os procedimentos de reconhecimento de terras indígenas no país. Além de desconsiderar o trabalho dos antropólogos que fazem laudos, Azevedo utiliza como referência um estudo da Embrapa sem esclarecer como foi produzido, o que é, certamente, uma contradição evidente com o seu próprio argumento. Nesse caso, sim, vale questionar: quem fez os estudos? Especialistas de que área do conhecimento foram consultados? Quais procedimentos foram utilizados? A Embrapa é, realmente, a instituição mais apropriada para fazer esse tipo de trabalho?

Mas é pela descontextualização da informação que o texto se torna um dispositivo de desinformação. Afinal,  os processos de reconhecimento de terras indígenas seguem preceitos e regras legais, instituídas através de dispositivos jurídicos internos à FUNAI e previstos na legislação (Decreto 1.775/1996; Portaria 14/1996; Portaria 116/2012; e Instrução Normativa 02/2012). Essas regras estão embasadas em um marco legal constitucional e reproduzem princípios e diretrizes anunciadas na CF de 1988 e no Estatuto do Índio (1973). De fato, os procedimentos de pesquisa envolvidos nos processos de demarcação de terras são de conhecimento público, podendo ser facilmente acessados no próprio site da FUNAI, no link sobre "legislação", onde também podem ser acessados outras leis e dispositivos jurídicos associados aos direitos indígenas e à regulamentação do funcionamento deste órgão indigenista (www.funai.gov.br). Inclusive, lá encontramos o "Manual do Antropólogo", documento que reúne orientação para a elaboração de laudos.
Ao que parece, Azevedo não quer se informar e informar o seu público, pois não faz qualquer referência à legislação existente, apesar de não se furtar em fazer alegações maldosas sobre os antropólogos.

Mais uma vez, também no que se refere à antropologia, é a desinformação que prevalece sobre o conhecimento. Apesar de Azevedo se questionar sobre a existência de "antropólogos que fazem laudo" (será que eles existem? Alguém já viu um?), o seu texto não informa nada sobre a antropologia ou sobre os profissionais que atuam na Funai. Ficamos sem saber como são formados os antropólogos e, mais especificamente, como se dá a aplicação do conhecimento antropológico na elaboração de laudos jurídicos.
Se formos julgar pelas alegações levianas de pessoas como Azevedo, o raciocínio antropológico seria reduzido a um conhecimento "místico" produzido por profissionais de formação duvidosa, que agem nos bastidores do poder como dispositivos "ideológicos" ocultos.

Mas aqui também a intenção do autor é mais 'ocultar' do que 'revelar', pois não só a antropologia tem uma história centenária, como também é regida por um código de ética comum e pela convivência de paradigmas epistemológicos coletivos, compartilhados publicamente e que mudam ao longo do tempo, pois são discutidos em eventos científicos nacionais e internacionais. Os critérios metodológicos de produção do conhecimento antropológico - incluindo aqueles associados a laudos e outros processos legais - são definidos em um espaço de debate e discussão. Da mesma forma, os resultados das pesquisas antropológicas são publicados em artigos, relatórios e livros e, desta forma, passam pela avaliação dos pares, como em qualquer outra disciplina científica. O profissional da área passa por um extenso processo de formação teórico-metodológica e certamente está preparado para enfrentar os desafios contemporâneos, atuando na academia e em instituição públicas e civis. Não há nada de oculto na antropologia e os antropólogos podem ser encontrados em laboratórios, universidades e outras instituições científicas brasileira e internacionais.

Temos que começar a campanha: "Azevedo, acredite, antropólogos existem!"  

Ora, o fato de pessoas desinformadas não irem em busca de informações sobre a antropologia, os antropólogos que fazem laudo e os procedimentos legais de reconhecimento de TI's, não atesta qualquer qualidade 'obscura' ou 'velada' do processo em si, mas apenas o descaso de determinados setores da sociedade brasileira com os preceitos legais e constitucionais vigentes no país.

Como sempre, os porta-vozes da direita fazem uso de fatos isolados e descontextualizados para deslegitimar os direitos indígenas e, com isso, ajudam a proclamar o descaso para com as ações da FUNAI. Promovem, desta forma, o pior (de)serviço que um jornalista pode oferecer: a produção da desinformação. É isso que tem feito, incessantemente, a revista "Veja", que expressa claramente um vínculo carnal com os interesses das classes latifundiárias. Ali também a descontextualização e o ocultamento explícito e implícito de informações produz a desinformação sobre fatos e eventos da política nacional.

Por outro lado, a retórica da revelação messiânica assumida pelo tom de denúncia do texto de Azevedo é desmentida, na prática, pelo seu trabalho constante de velamento e distorção de informações. Em nenhum momento Azevedo revela os procedimentos utilizados pela Embrapa para produzir as suas conclusões. Ficamos sem saber como que uma instituição sem qualquer histórico de realização de estudos de reconhecimento de TI's produziu afirmações assim tão contundentes e afinadas com os interesses dos ruralistas? Também ficamos sem saber quem são os pesquisadores ou autores do laudo, sua formação e especialidade? Também ficamos impossibilitados de decifrar as entrelinhas de suas afirmações, cuja mensagem subliminar está inscrita na breve menção feita à ministra da casa civil e aos usos que a paranaense estaria dando a tal 'relatório' da Embrapa nos bastidores do governo federal.

Aqui, sim, navegamos em um mar de ocultismo explícito, onde, como em uma mágica, o autor retira da sua cartola afirmações gerais, ambíguas e imprecisas, ao mesmo tempo em que oculta as relações libidinosas que interligam ministros do governo Dilma aos interesses da classe latifundiária.

Diferente do que afirma Azevedo, os antropólogos que emitem laudos também atestam sua autoria. Com isso, podem ser facilmente consultados. Isso ocorre porque esses antropólogos existem, estão vivos, possuem residência e profissão notória, podendo falar por si próprios, esclarecendo ou se defendendo de acusações e denuncias.

O mesmo não ocorre com os técnicos responsáveis pelo laudo da Embrapa, figuras anônimas cujas conclusões são afirmadas por Azevedo sem qualquer esclarecimento sobre os procedimentos técnicos utilizados para fabricá-las. Se, por um lado, os laudos da Funai devem seguir preceitos jurídicos de conhecimento público instituídos através do devido processo legal, produzindo laudos de acesso livre; por outro, os estudos realizados pela Embrapa representam uma verdadeira caixa-preta.

Por último, mas não menos importante, vale notar o tremendo preconceito do autor do blog com os anões, sugerindo que os mesmos não são enterrados. Ora, não é pelo fato do senhor nunca ter comparecido ao enterro de um anão que esses eventos não ocorrem, da mesma forma que não precisamos ir até o sol para saber que ele existe. Basta sair numa manha ensolarada e fria para sentir a sua presença, revelada a partir dos  efeitos dos raios solares sobre os nossos corpos, que são afetados e, desta forma, se aquecem.  Os anões são seres vivos, homens de carne e osso e, por isso, morrem e são sepultados conforme a sua crença. Além do mais, o tom jocoso da afirmação visa projetar uma imagem negativa sobre os anões, representados no post como figuras exóticas e enigmáticas, uma injustiça com um setor tão importante da sociedade brasileira.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado também às cabeças de bacalhau, afinal, é um erro acreditar que um peixe poderia viver sem uma cabeça. Não é porque não vemos a cabeça ao comer o bacalhau que ela não existe. Os pescadores da Noruega não só conhecem a cabeça como o peixe ainda vivo, seus hábitos de vida, preferências alimentares e outros tantos detalhes sobre o mundo aquático e seus segredos. Inclusive, se Azevedo fosse uma pessoa minimamente informada sobre a vida do bacalhau e seus usos culinários saberia que em alguns lugares as cabeças desses peixes são especiarias disputadas com fervor.

Mas o pior de tudo é que esse tipo de jornalismo superficial e preconceituoso conta com uma ampla legião de comentadores, cujas opiniões conseguem ser mais absurdas do que aquelas pronunciadas por Azevedo. Uma breve leitura dos comentários publicados no post sobre o tal estudo enigmático da Embrapa - encomendado pela ministra da casa civil - revela uma mentalidade racista, preconceituosa e desumana. A palavra mais apropriada diante da mentalidade expressa nessas manifestações cegas de apoio revela algo muito mais sinistro e nefasto: a permanência e a reprodução mais ou menos velada de uma mentalidade política fascista e autoritária, regida, por um lado, pela tranquilidade que só a ignorância dá aos fracos de espírito, por outro, pela violência própria aos bárbaros, que só sabem destruir e roubar a sociedade brasileira.

terça-feira, 4 de junho de 2013

A face ruralista do Governo Dilma e os movimentos sociais

Dois artigos jornalísticos publicados recentemente revelam de forma clara a vinculação do Governo Dilma com a "classe ruralista".

No primeiro deles, "Agenda de Dilma revela opção do governo", publicado no jornal "Brasil de Fato" (30/05), Cleber Buzatto descreve em detalhes a agenda de reuniões da presidenta, que em pouco menos de uma semana, recebeu diversas lideranças diretamente associadas aos interesses dos latifundiários, como é o caso, por exemplo, da audiência particular com a maior representante do agronegócio brasileiro, a senadora Kátia Abreu (PSD/TO). Além de homenagens recebidas recentemente, Dilma mantem um canal aberto com os latifundiários brasileiros por intermédio da sua ministra da casa civil,  Gleise Hoffmann, que tem atuado como "porta-voz" dos ruralistas no planalto. Da mesma forma, por diversas vezes Dilma compareceu em eventos patrocinados pelo agronegócio, que tem um lugar de destaque na agenda política do seu governo. Essa aliança conservadora tem reflexos no plano econômico, como podemos notar pela recente concessão de R$ 112 bilhões para o "Plano Agrícola e Pecuário", voltado para financiar a produção do agronegócio. Da mesma forma, os "aliados" da base governamental de Dilma, como diversos deputados e senadores do PMDB, têm fortes vínculos com os ruralistas, barganhando apoio político em troca de um favorecimento presidencial à sua causa.

Por outro lado, Dilma tem se negado a conceder audiência para os índios e seus representantes. Apesar dos diversos conflitos envolvendo povos indígenas brasileiros, as portas do planalto estão fechadas para os habitantes originais do Brasil. Conforme aponta o artigo de Cleber, Dilma é a única presidente brasileira - desde a ditadura militar - que ainda não se reuniu com os índios.

Em outro artigo, "Os movimentos sociais e a queda da popularidade de Dilma", publicado no site "Luis Nassif online", Emanuel Cancella chama atenção para a recente queda da popularidade do governo Dilma e associa esse fenômeno à crescente insatisfação dos movimentos sociais e ambientais com os fortes vínculos existentes entre o Governo Dilma e o que há de mais conservador na política brasileira. Soma-se a essa insatisfação a total ausência de uma política de reforma agrária no Brasil, os constantes desrespeitos aos direitos humanos, o apoio fornecido ao cartel hidroelétrico formado em torno da figura do senador José Sarney e seus aliados e fenômenos criados pela "política da aliança", como é o caso "Feliciano". Segundo Emanuel, a recente queda da popularidade de Dilma não está unicamente associada ao aumento da inflação, mas também à insatisfação dos movimentos sociais organizados, sindicatos e outros setores da sociedade com o rumo que o governo Dilma tem tomado nos últimos dois anos.

Diante da aproximação das próximas eleições presidenciais, Dilma se vê em uma encruzilhada: ou busca retomar o vínculo com os movimentos sociais, sindicais, ambientais e indígenas que ajudaram a elegê-la (principalmente, no segundo turno), ou solidifica ainda mais o estreito vinculo que tem mantido com o agronegócio e a elite ruralista, descendentes da antiga UDR e do que há de mais conservador no cenário político brasileiro. O acirramento dos conflitos políticos, indígenas e fundiários expressa claramente a divergência entre essas duas agendas políticas e seus interesses, além de demonstrar a existência de visões diferenciadas sobre o "desenvolvimento" que se quer para o Brasil: de um lado o "neodesenvolvimenstismo conservador" das elites rurais; do outro, o "desenvolvimento sustentável" proposto pelos índios, camponeses, ambientalistas e demais setores populares.

Infelizmente, a descrição da agenda política de Dilma revela que, até o presente o momento, a sua opção tem sido em favor das forças ruralistas e sua visão conservadora de desenvolvimento.    

Link para os artigos de Buzatto e Cancella:

Agenda de Dilma revela opção do governo
Os movimentos sociais e a queda da popularidade de Dilma                

sábado, 1 de junho de 2013

Assassinato de índio terena no Mato Grosso do Sul

O assassinato do índio terena Oziel Gabriel por forças policiais, em Mato Grosso do Sul, expressa claramente a omissão e o despreparo do governo federal diante dos conflitos fundiários na região centro-oeste. Oziel foi morto por ocasião da reintegração de posse da fazenda Buriti, ação que contou com o apoio da polícia federal. Essa fazenda está em situação de litígio judicial por ocupar um território da etnia terena, conforme aponta um denso laudo antropológico produzido por Jorge Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira, ambos professores da Faculdade Federal da Grande Dourados. Além de apresentarem um levantamento arqueológico e antropológico extremamente denso, fornecendo indícios inquestionáveis da presença dos terenas na região do conflito desde meados do século XIX  - reconhecendo, desta forma, a legitimidade constitucional das suas demandas por terra - o documento também traz informações sobre o histórico das forças de repressão no estado do Mato Grosso do Sul e a sua vinculação direta com o poder público local.

O atual governador, André Puccinelli (PMDB), é fortemente vinculado com a elite rural do estado. Além de ser acusado de coordenar um audacioso plano de pagamento de propina para parlamentares e corrupção ativa e passiva, o governador ficou famoso por conclamar, em maio de 2010, todos os setores "ricos" do MS a "serem mais nacionalistas e se unirem na luta contra os sem terra e os povos originais". Se, por um lado, Puccinelli tem se utilizado de contatos em Brasília para garantir a defesa dos interesses dos fazendeiros, o governo Dilma precisa do atual governador e sua base do PMDB para manter a "governabilidade" do país e viabilizar a sua reeleição em 2014.

[Vale lembrar que o ex-governador, José Miranda dos Santos (também conhecido como "Zéca do PT"), é filho de Orsirio Santos, comandante de uma antiga "Captura"  que, em tese, foi formada para perseguir bandoleiros, mas que também perseguiu e matou índios naquela região, conforme aponta o estudo "Coronéis e Bandidos em Mato Grosso (1889-1943)", de Valmir Correia (1995), mencionado no laudo antropológico dos professores da UFGD. Ao que parece, nessa região, o ofício selvagem e bárbaro de "matador de índios" é transmitido de pai para filho, numa espécie de 'legado familiar maldito'. Mas não é só de manter a "tradição familiar" que o ex-governador é acusado. Constam na justiça vários processos de improbidade administrativa, um amplo histórico de denúncias de crimes contra o poder público, como desvio de recursos, corrupção ativa e passiva, compra de votos de parlamentares e favorecimento dos seus interesses econômicos, assim como de familiares e parentes.]

As alianças políticas que sustentam o atual governo incluem a chamada "ala ruralista", que possui tentáculos em diversos partidos políticos da "base aliada". Esta face sinistra e obscura do Governo Dilma tem produzido uma das maiores contradições da história política brasileira: o fato de um governo que se diz de esquerda estar diretamente vinculado às forças de repressão que dominam a política regional no interior do país. Em situações de conflito aberto, são as vozes da antiga UDR que reemergem com força no cenário político nacional. Vale mencionar que isso se deve, em grande parte, à aliança governista com o PMDB e seus aliados, muitos deles representantes do que há de pior na política brasileira.

Mas essas redes partidárias e governamentais também revelam que o  desenvolvimentismo da era PAC está estruturado em bases extremamente conservadoras, alimentado-se do que existe de mais arcaico no cenário político brasileiro. Inclusive, os dados macroeconômicos recentemente revelados reafirmam que o 'progresso', no Brasil, continua sendo conduzido pela aristocracia latifundiária e, em grande parte, à favor dos seus interesses econômicos, agora traduzidos sob a alcunha do "agronegócio", responsável pelo pouco de crescimento que terá o PIB brasileiro em 2013. Uma economia que se quer desenvolver em bases próprias e autônomas não pode ser conduzida pelos setores mais conservadores do país, sob o risco de ser reduzida pelas forças da história a um "desenvolvimentismo neoconservador".

Não quero, com isso, ser injusto com o atual governo, que tem, em outros aspectos, conduzido ações importantes. No entanto, não podemos deixar de visualizar uma agenda política extremamente conservadora no campo dos direitos indígenas e demasiadamente insensível às questões sociais e étnicas. Reuniões e ações emergenciais convocadas sob o saber amargo da polêmica e do conflito aberto revelam a total ausência de um planejamento e de uma ação preventiva nos principais focos de conflito socioambiental no Brasil. Conforme aponta estudo realizado pela FUNAI, existem hoje mais de 50 pontos de conflito fundiário envolvendo índios e ruralistas. Apesar da realização desse mapeamento inicial, o governo federal não possui um planejamento efetivo para enfrentar o problema, muito menos uma ação coordenada. Por outro lado, a recente exclusão do controverso caso "Belo Monte" da agenda política da secretaria de direitos humanos da presidência da república revela também um despreparo técnico no tratamento de temas mais emergentes associados aos direitos humanos e ambientais coletivos.

Infelizmente, não se trata da primeira tragédia envolvendo lideranças indígenas. Outros conflitos estão ocorrendo todos os dias em outras regiões do país. No mesmo estado, em Dourados, índios da etnia Guarani-Kaiowá enfrentam diariamente os abusos e as violências cometidas por agentes do agronegócio, que contam com o total apoio policial e judicial da elite política local e seus representantes governamentais.

No Pará, na região de Altamira, índios de diversas etnias - entre eles os Kayapó e os Munduruku - ocuparam o canteiro de obra da Usina Hidroelétrica Belo Monte. Eles exigem que o governo federal respeite os seus direitos de 'livre consentimento' em caso de obras com impacto direto em suas vidas, conforme prevê a OIT 169, assinada pelo governo brasileiro.

Os fortes vínculos político-partidários do Governo Dilma com a elite política do estado do Mato Grosso do Sul - a mesma elite latifundiária que financia e promove violentas ações genocidas contra diversas etnias indígenas e camponeses sem terra que vivem na região - impede que o governo federal, por intermédio da PF, atue como uma força do poder público destinada à resguardar o 'estado de direito' proclamado na Constituição de 1988. Afinal, a nossa carta constitucional prevê, entre os seus princípios estruturais, o dever do governo em garantir e defender os interesses das minorias civis contra toda e qualquer forma de abuso e violência que possa ser cometida por setores com maior poder econômico e político. Toda a nossa legislação trabalhista está baseada no princípio de que "tratar os diferentes de forma diferenciada" é o único instrumento de garantia da igualdade de direitos prevista na constituição. O mesmo pressuposto jurídico ganhou materialidade em diversos artigos da CF de 1988, como é o caso dos artigos 216 e 231, entre outros; na instituição do Ministério Público como órgão destinado a proteger os direitos da sociedade civil contra toda e qualquer forma de abuso de poderes estatais e civis; e na recém editada lei de cotas raciais e sociais na universidade pública. Esses preceitos existem porque  a igualdade em um estado de direito é uma garantia constitucional e não histórica. Trata-se de algo que, para se efetivar na prática, depende em grande parte da ação do poder público, e não de sua omissão ou 'neutralidade'.

Uma breve análise dos dispositivos jurídicos atualmente vigentes - sem falar nos tratados e acordos internacionais assinados pelo governo brasileiro - não deixa dúvida de que caberia ao governo federal, através das instituições competentes, garantir que o processo político e judicial transcorra sem prejudicar ou acarretar em qualquer forma de perseguição ou violência cometida contra grupos diretamente envolvidos no conflito, principalmente, os índios, devido à sua vulnerabilidade frente ao ataque anônimo das forças locais de repressão.

Caberia ao governo federal buscar a assessoria de 'especialistas' que acompanham o conflito na região, pois a CF prevê um tratamento "diferenciado" aos índios, devido aos seus direitos específicos associados ao reconhecimento da sua identidade étnica e cultural diferenciada.  Essa ação policial deveria ser coordenada por uma equipe que incluísse membros do Ministério Público Federal, representantes de entidades civis organizadas, membros da Comissão de Direitos Humanos, jornalistas, organizações internacionais de direitos humanos, organizações indígenas locais e regionais, técnicos e funcionários da FUNAI, além de especialistas em etnologia indicados pela Associação Brasileira de Antropologia.

Nada disso, no entanto, foi feito. Mais preocupada em anunciar a retórica e o profetismo do desenvolvimentismo, o governo Dilma reproduz a mesma mentalidade política autoritária dos militares, que hoje sabemos - através dos trabalhos desenvolvidos pela Comissão da Verdade - perseguiram e violentaram a integridade cultural e física dos povos indígenas brasileiros.

Esse total despreparo e insensibilidade do Governo Dilma e seus mandatários diante dos conflitos fundiários e étnicos que estão ocorrendo em diversas regiões do Brasil - conflitos originados, em grande parte, na política desenvolvimentista da era PAC e nos subsídios governamentais concedidos aos agentes que atuam nas frentes de expansão da sociedade nacional - demonstram uma carência do governo federal no planejamento das ações governamentais associadas ao "desenvolvimento", o que tem resultado em sérios danos aos povos indígenas e à sociedade brasileira como um todo. É um absurdo que o atual governo federal compartilhe com os ruralistas e seus representantes políticos uma mentalidade bárbara, selvagem e primitiva, que poderia ser resumida na insistência desses setores em tratar a questão fundiária e indígena como "uma questão de polícia", e não de 'política'. Após destruir os vestígios do passado com suas máquinas agrícolas, os ruralistas buscam destruir também os vestígios humanos e sociais de um processo de dominação colonial de longa data, hoje sintetizado de forma expressiva em suas ações políticas contemporâneas de perseguição e violência contra os povos indígenas brasileiros.

Para quem tiver interesse em se informar mais sobre a situação dos índios Terena na fazenda Buriti, recomendo a leitura do laudo mencionado aqui, que foi publicado em livro e pode ser acessado na íntegra no site:

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