Hoje dou início a uma série de postagens sobre a história das ciências ocidentais. A ideia surgiu por incentivo de membros da comunidade 'antroposimétrica' e leitores do blog, que mandaram mensagens requisitando textos de caráter ilustrativo e descritivo sobre a história do pensamento científico ocidental. É importante notar, no entanto, que essa história das ideias e práticas científicas não segue um eixo evolutivo ou progressivo, mas é repleta de rupturas, caminhos alternativos, multiplicidade enunciativa e reconfigurações conceituais, epistemológicas e teóricas.
Neste primeiro texto, vamos abordar um aspecto que, segundo Martin Heidegger, constitui uma das principais características do pensamento científico ocidental, conforme esse se desenvolveu a partir do século XVI e XVII: trata-se do papel desempenhado pelo cálculo e pelo raciocínio matemático na interpretação e sistematização do conhecimento nas diferentes disciplinas científicas. Mas vamos abordar essa questão a partir do viés das máquinas ou aparelhos de cálculo que ampliaram a capacidade de processamento das operações aritméticas que formam a base do conhecimento matemático.
Um dos aparelhos de cálculo mais antigos foi o ábaco, usado na Mesopotâmia, por volta de 2700-2300 a.c. Esse aparelho é composto por uma estrutura de madeira com contas presas em arames horizontais, o que permite calcular pequenas cifras, pois cada coluna corresponde a uma posição digital (unidades, dezenas, centenas etc.), facilitando as operações de soma e subtração. O aparelho foi adaptado mais tarde pelos romanos, egípcios, gregos, indianos e chineses (entre outros povos), que construíram versões diferenciadas da máquina. O ábaco forneceu o modelo inicial para o desenvolvimento de outras máquinas de calcular.
Esse é o caso de uma série de aparelhos concebidos pelo escocês John Napier (1550-1617), matemático que concebeu a noção de logaritmos:
"Bastões de Napier" é um aparelho composto por um conjunto de bastões com colunas de números inscritos. Esses bastões permitem a memorização das tabelas de multiplicação ao serem manipulados pelos usuários, que os organizam em um tabuleiro especial de forma a realizar uma série de operações de cálculo.
Mais tarde, foram desenvolvidos diferentes versões do mesmo aparelho, como é o caso dos "Ossos de Napier", uma caixa de madeira com cilindros que desempenham a mesma função dos bastões.
Esses aparelhos serviram de ponto de partida para o desenvolvimento da primeira calculadora, em 1645, denominada de "Calculadora de Pascal", em homenagem ao inventor do artefato, o matemático francês Blaise Pascal:
Alguns anos antes, no entanto, o matemático inglês William Oughtred desenvolveu, a partir de um caminho um tanto diferenciado, um aparelho usado até hoje por engenheiros para realizar operações básicas de cálculo aritmético. Trata-se da "Régua de Cálculo", um conjunto de réguas com diferentes escalas logarítmicas cuja disposição e alinhamento permitem uma série de operações:
De fato, não estamos diante de uma história linear e progressiva, pois os aparelhos mais antigos não foram abandonados com a descoberta de outras máquinas, assim como as novas descobertas nem sempre foram realizadas a partir de um desenvolvimento linear das antigas. Muitos adventos científicos têm origem na exploração de caminhos tecnológicos alternativos.
Um bom exemplo de ruptura na história dos aparelhos de cálculo matemático pode ser exemplificado pelo trabalho de Charles Babbage, matemático inglês que desenvolveu, em 1822, a "Máquina de Diferenças", uma engenhoca mecânica acionada por uma manivela que permitia a realização de uma série de operações matemáticas. Essa máquina representa uma ruptura com os mecanismos mais simples das máquinas de calcular anteriores, fazendo uso de uma série de instrumentos cuja concepção só se tornou possível com o aperfeiçoamento das engrenagens mecânicas. A engenhoca, no entanto, não convenceu a comunidade de engenheiros da época, o que resultou na falta de recursos para desenvolver o projeto. A máquina de diferenças nunca chegou a ser produzida em grande escala, mas um protótipo foi elaborado no Museu de Ciência de Londres, uma homenagem póstuma às contribuições de Babbage.
Mas o grande advento científico na área dos aparelhos de cálculo foi apenas esboçado por Babbage. Trata-se da chamada "Máquina Analítica", um aparelho inspirado em uma ideia retirada da indústria têxtil inglesa: o uso de cartões perfurados para programar padrões para os teares, desenvolvidos pelo francês Joseph-Marie Jacquard, por volta de 1804. A proposta desse aparelho representou uma ruptura radical com os princípios de engenharia utilizados na construção dos aparelhos de cálculo anteriores, motivo pelo qual foi mal recebida pelos engenheiros da época. Com isso, o protótipo deste aparelho de cálculo - que pode ser considerado o primeiro computador programável que se tem conhecimento - jamais foi construído de fato, tendo sido negligenciado pelo governo e pelos cientistas da época. A ideia que estava por trás do aparelho, no entanto, teve grande influência na concepção da lógica binária, que mais tarde tornou possível o desenvolvimento dos primeiros computadores.
Os aparelhos de cálculo matemático fazem parte da história da ciências ocidentais. Uma história repleta de rupturas, desvios e retomadas. Estamos diante daquilo que Law e Callon chamam de "materialidade relacional", isto é, o conjunto de aparelhos utilizados pelos cientistas para visualizar, processar e sistematizar as informações científicas. A agência desses aparelhos e a sua influência no processo de construção dos conhecimentos científicos ocidentais - em grande parte de ordem quantitativa - não pode ser negligenciada. Não se trata de simples 'instrumentos' agenciados pelos cientistas, mas aparelhos que abram um novo campo de ação e visão. Infelizmente, a genealogia arqueológica desses aparelhos científicos ainda está por ser escrita. Retornarei a essa questão em postagens futuras.
3 comentários:
Gostei,amei
Amei
Ajudou muito na tarefa de casa do meu filho
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