segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Movimento Gota D'água, Cultura e Marketing Político

Tenho acompanhado na internet manifestações "idealistas" de supostos militantes que acusam o movimento "Gota D'água" de marketing, como se o marketing não fizesse parte da vida e da política.
Toda e qualquer cultura ou mentalidade nunca é o simples efeito do raciocínio lógico individual. Para que as pessoas possam se posicionar no mundo da política, elas precisam, fundamentalmente, de informações. Essas informações são fornecidas diariamente, não só nos meios jornalísticos (revistas, tele-jornais etc.), mas também na rede de relações (entre amigos, vizinhos, colegas de trabalho etc.). Mas essa disposição das informações envolve sempre certo grau de tradução, incluindo as diferentes maneiras como 'apresentamos' nossas idéias de forma a atrair a atenção de outras pessoas, possíveis parceiros e colaboradores. Com isso, o que denominamos de "posição política" é, também, o efeito de um processo de marketing e propaganda, mesmo que "velado". Todas as idéias, mentalidades e culturas são, até certo ponto, "inventadas" ou "fabricadas" em uma rede de produção, tradução e circulação de informações, que envolve também estratégias mais ou menos sutis de marketing e propaganda.

Essa observação também é válida para a mentalidade desenvolvimentista, construída com muito marketing político, boa parte dele de caráter 'velado' (filmes, documentários, novelas etc.). Idéias como "a energia hidroelétrica é limpa", "o Brasil precisa se desenvolver a qualquer custo" etc., são construídas em sociedade e não refletem, de forma alguma, um posicionamento "neutro". Coisas que você cresceu ouvido e que apreendeu a "naturalizar" como "deduções lógicas de caráter universal" (do tipo "basta ser inteligente para entender") são, de fato, construções sociotécnicas. Por trás de idéias simples como "os índios são manipulados por ONGs estrangeiras", existe toda uma rede social e tecnológica de produção, tradução e circulação de informações com grande poder de infiltração nos mais diferentes setores de nossa sociedade. A eficácia do ideário desenvolvimentista não provêm de uma suposta "neutralidade", seja ela de ordem moral, científica ou técnica, mas de uma ampla rede de "marketing" político que atua em diferentes setores da sociedade: nas escolas, nas artes, nas igrejas etc.

Quem nunca ouviu falar em "slogans" políticos como "Pra frente Brasil", "Cinqüenta anos em cinco", "Avança Brasil" etc.? O próprio PAC está baseado em uma visão do Brasil que foi construída durante séculos de marketing político...  Mas existem 'propagandas' mais veladas, como a edição das notícias em tele-jornais: após retratar as controvérsias em torno da construção de Belo Monte, os jornalistas apresentam uma reportagem sobre o "risco de apagão" em cidades do interior de São Paulo; os filmes e documentários que apresentam os índios como 'habitantes da floresta', 'bárbaros' ou simplesmente 'primitivos'... A sobreposição ou correlação de notícias ou fatos é uma arte sútil de marketing político presente no nosso cotidiano jornalístico...

E o uso do marketing nunca foi uma exceção 'diabólica', pois também sempre esteve presente entre as chamadas "forças do bem". Afinal, o que seria do ambientalismo sem "slogans", "cartazes", "campanhas" e outros instrumentos de propaganda? O que seria do socialismo sem as estátuas, imagens e santinhos? O que seria do comunismo sem os "chavões" ou "bandeiras de luta"? Enfim, o que seria da política sem o uso de símbolos? Somente os demagogos acham que política e marketing são coisas completamente opostas. Marketing enquanto instrumento de propaganda é um fato da política de todos os tempos, mas esse marketing não pode ser traduzido - necessariamente - como 'mentira' ou 'ilusão', mas como um instrumento de tradução de idéias.  

O mundo da política é, essencialmente, um campo permeado por batalhas de interpretações infinitas. Nesse campo não existe posição neutra, pois basta estar vivo para estar posicionado. Numa democracia, a arte de convencimento é fundamental para a aprovação de uma lei, ação estatal ou política pública, seja ela qual for. Para aprovar um projeto de lei, por exemplo, é preciso ter uma base de sustentação política e, para isso, é necessário muito marketing. O argumento "purista" de que existe política sem marketing é de um idealismo perigoso, pois completamente contraditório com as "regras" do jogo político vigentes em nossa sociedade. E isso por um motivo muito simples: numa democracia, as idéias precisam ser traduzidas para circularem em amplos setores da população. Em outras palavras, em um regime onde é a "maioria" numérica que decide, a arte de traduzir projetos específicos para uma grande e diversificada massa de seres humanos é fundamental para o exercício do poder político. O fato é que, no que se refere à tradução de idéias, o marketing exerce uma função importante. Mas isso não significa que todo marketing resulta sempre em "ilusionismo", apesar de toda tradução envolver necessariamente uma transformação de um sentido anterior (que não deve ser confundido com a verdade). No campo do marketing, existem diversas estratégias de tradução, algumas mais imaginativas, outras literárias, 'veladas' ou extremamente 'técnicas'...

Mas não devemos partir do pressuposto de que todo marketing é, necessariamente, 'mentiroso', pois essa dedução parte do pressuposto que existe "uma única verdade" a ser revelada (científica ou técnica). Todo marketing é de fato uma tradução e toda 'tradução' tem um tanto de 'traição', mais isso não transforma toda forma de marketing numa forma de mentira (seja ela velada ou explícita). Pois para que um discurso ou imagem seja considerada "mais verdadeira" ou "genuína" é preciso desalojar/deslocar outros discursos, considerados 'mentirosos', algo que faz parte da batalha de interpretações mencionada por Nietzsche (comentando em outro post deste blog). Mas se partirmos do pressuposto de que todas as interpretações são formas de tradução, começamos a entender que as práticas de conhecimento são construções culturais. Com isso, idéias e práticas não surgem do nada, ou 'naturalmente', nem mesmo são o efeito do raciocínio lógico universal (como gostaria Kant), mas são forjadas em sociedade, através de instrumentos como, por exemplo, o marketing social e político (entre outros).

Isso significa que opiniões ou posicionamentos políticos são construídos em sociedade, mas é importante observar aqui que, por 'sociedade', entendo também os elementos técnicos ou tecnológicos (não-humanos), como as redes de computadores, os transmissores, microfones, câmeras... Enfim, todo um conjunto de aparatos tecnológicos que atuam na divulgação e circulação de idéias. A opinião, assim como a crítica e o posicionamento político, são fenômenos construídos em redes sociotécnicas que envolvem uma diversidade de coletivos humanos e não-humanos..   

O fato é que, em um ambiente realmente democrático, não podemos definir o que seria uma 'razão válida' ou não para tomar uma decisão política. Tem gente, por exemplo, que é 'contra Belo Monte" por ter lido textos científicos que comprovam o quanto a obra é inviável do ponto de vista técnico; mas também existem pessoas que são contra por outros motivos, alguns deles supostamente menos 'nobres'.O fato é que as razões, sejam elas quais forem, são sempre políticas. Numa democracia, não podemos definir a priori 'o que é uma razão válida' para tomar uma decisão'. Porque a democracia não diz respeito unicamente à universalização dos direitos de escolha, mas também à aceitação das diferentes motivações ou razões pelas quais as pessoas escolhem. Ora, na era das eliminações "online" do "Big Brother", as pessoas escolhem seus candidatos pelas razões mais diversas possíveis: por gosto pessoal, por origem étnica, pela forma como se vestem ou falam, e também pelas seus posicionamentos religiosos ou ideológicos em questões específicas e pontuais. As motivações para escolher este ou aquele candidato, este ou aquele argumento, são as mais variadas possíveis. Exatamente por isso, para que as idéias possam circular por extensas redes sociotécnicas, elas precisam ser constantemente traduzidas. Não existe circulação sem tradução, assim como não existe tradução sem circulação. O marketing e a propaganda são instrumentos historicamente usados para disseminar idéias e posições, sejam elas políticas, religiosas ou científicas.  

Por isso, não consigo entender o posicionamento dos 'puristas', sejam eles de esquerda ou de direita, em relação ao movimento Gota D'água. Pior, vejo nessas manifestações um traço marcante de intolerância, etnocentrismo e, em alguns casos, algo muito próximo ao autoritarismo fascista. Afinal, todos sabemos que a temática socioambiental precisa ser traduzida para amplos setores da população que não possuem um entendimento técnico da questão, algo fundamental em uma sociedade democrática. Realizar essa tradução é um dos principais objetivos do movimento Gota D'água, que tem a proposta de 'traduzir' as questões socioambientais para o grande público. Trata-se, sem dúvida nenhuma, de um instrumento de marketing político. Mas não se trata de 'qualquer' estratégia de propaganda, pois a proposta consiste em atrair atores, artistas e músicos 'simpatizantes' com as causas socioambientais, no estilo "depoimento". Daí as pessoas colocarem em dúvida o quanto essas pessoas estão 'realmente engajadas' na defesa dos povos indígenas e do meio ambiente. Ora, o importante aqui é que esses artistas participaram voluntariamente e isso indica a sua vontade de contribuir com a causa. E depois, colocar em dúvida o engajamento dos atores globais não seria também outra forma de marketing político?

O fato é que, em uma democracia capitalista como a brasileira, torna-se necessário traduzir a temática socioambiental de uma forma que pessoas de diferentes origens sociais (e com diferentes culturas) possam agenciá-las em suas vidas, apropriando-se delas de diversas formas e por diversos motivos. No mundo da política real (quem quiser mudar a política, vai precisar antes mudar o mundo), o pragmatismo pressupõe tradução, e a tradução pressupõe marketing. Com isso, se quisermos - realmente - impedir ou parar a construção de Belo Monte de forma democrática (caso contrário, poderíamos pegar em armas, como fez a Dilma na época da ditadura militar e, diga-se de passagem, por razões menos nobres) é preciso apreender a jogar sob as regras do jogo, fazendo uso das estratégias da democracia que está aí, fruto de escolhas históricas que fizemos no passado, e continuamos fazendo no presente.

Existe, sim, uma batalha de interpretações em andamento no que se refere à construção de Belo Monte. Essas interpretações ou traduções não são, de forma alguma, neutras, pois refletem interesses econômicos e políticos específicos. Não estamos diante de uma situação onde a ciência ou a tecnologia possa tomar decisões por nós. Não existe nada como uma "verdade universal" (e inquestionável) sobre Belo Monte. As batalhas também atingem os universos da ciência e da técnica, onde também existem controvérsias sobre Belo Monte, assim como no campo conturbado da política.

O fato é que Belo Monte exige de nós um posicionamento político sobre a questão, de caráter existencial, pois está diretamente associada à vida que queremos viver, ao mundo que queremos deixar para os nossos filhos. A ciência nada pode fazer por nós, muito menos a 'verdade'. A escolha, neste caso como em outros, é de caráter existencialista: basta estar vivo para estar posicionado deste ou daquele lado do rio (Xingu).  

Por isso, fazer política consiste, entre outras coisas, em estabelecer uma boa estratégia de marketing e propaganda. O movimento Gota D'água tem o mérito de ter percebido que a pragmática política produz mais resultados do que a retórica idealistas dos radicais, sejam eles de esquerda ou de direita.

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