Outro dia estava folhando o livro "Reflexões sobre o exílio e outros ensaios", de Edward Said, e encontrei uma passagem sobre Nietzsche que me chamou atenção, sobre a "batalha de interpretações". O trecho é mencionado por Said em um ensaio onde ele compara a filosofia desse autor com a literatura de J. Conrad (autor de Corações das Trevas).
"Assim, tudo que é pronunciado interpreta algo que foi dito antes, é uma interpretação de uma interpretação que não serve mais. De modo ainda mais premente, Nietzsche via a história humana como uma batalha de interpretações, pois, uma vez que o homem existe sem a esperança de chegar ao primeiro elo da cadeia de interpretações, ele deve apresentar sua própria interpretação como se fosse um significado seguro, em vez de uma mera versão da verdade. Ao fazer isso, ele forçosamente desaloja outra interpretação, a fim de colocar a sua no lugar. Nietzsche considerava que a luta entre interpretações percebida historicamente era o tema da genealogia da moral. Quanto à função da interpretação num mundo em crescente vir-a-ser, Nietzsche tinha isto a dizer em 1885-86:
'Interpretação, a introdução de sentido - não 'explicação' (na maioria dos casos, uma nova interpretação em cima de uma antiga que se tornou incompreensível, que é agora apenas um signo). Não há fatos, tudo está em fluxo, incompreensível, esquivo; o que é relativamente duradouro são nossas opiniões'.
As reflexões apresentadas por Nietzsche em Para além do bem e do mal (1885-86) e Para a Genealogia da Moral (1887) dão continuidade à crítica a pretensão de alguns filósofos em definir a verdade sobre o Homem (com "H" maiúsculo, o Homem enquanto ente universal) a partir da moral e da linguagem do seu próprio tempo. Em contraposição a isso, que o autor denomina de "defeito hereditário dos filósofos", Nietzsche propõe a necessidade de um filosofar histórico, em contraposição à saga de buscar a determinação da coisa em si (a verdade universal de Aristóteles). O autor de Assim falou Zaratustra denúncia os filósofos legisladores devido à sua pretensão em definir a verdade filosófica sobre o mundo em contraposição às interpretações, consideradas versões mais ou menos aproximadas dessa verdade (sombras na caverna platônica).
Em relação a essa pretensão de seus colegas, Nietzsche rejeita tal projeto em nome de uma visão histórica da moral e do homem, onde a prerrogativa do conhecimento filosófico e científico sobre as interpretações é negligenciada, como podemos ver nesse breve trecho de A gaia ciência, citado por Said no mesmo ensaio:
"Mas penso que hoje, pelo menos, estamos distanciados da ridícula imodéstia de decretar, a partir de nosso ângulo, que somente dele pode-se ter perspectivas. [Nietzsche rejeita aqui a posição que toma todas as outras posições como meras interpretações e a conseqüência implícita de que uma é verdadeira, e não interpretação.] O mundo tornou-se novamente 'infinito' para nós: na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações".
Essas reflexões foram importantes no desenvolvimento da abordagem de Said do fenômeno do Orientalismo, como podemos ver no seguinte trecho: "as idéias, as culturas e as histórias não podem ser seriamente compreendidas ou estudadas sem que sua força ou, mais precisamente, suas configurações de poder também sejam estudadas" (Orientalismo, p. 32).
A relação de Nietzsche com a obra de Conrad reside na maneira como a linguagem é percebida por esses dois autores: "essa visão da linguagem como perspectiva, interpretação, pobreza e excesso é a primeira das três maneiras de unir Conrad e Nietzsche".
Não existe linguagem neutra - enquanto conhecimento objetivo e universal de uma Natureza em si - pois todas as linguagens (inclusive as matemáticas) estão enraizadas na história e na cultura. Por outro lado, não podemos negligenciar que as ciências ocidentais - conforme argumenta Heidegger - buscam fundamentar a sua prerrogativa epistemológica na eleição do conhecimento quantitativo como índice da verdade. A questão, portanto, não é ser contra ou a favor da matemática, mas, sim, em analisar o uso que tem sido feito dessa linguagem no pensamento ocidental científico. Segundo essa abordagem, a matemática (assim como as demais linguagens humanas) deve ser entendida mais como uma interpretação (entre outras) do que como uma 'explicação' do mundo. Segundo Nietzsche (questão apropriada posteriormente por autores como Heidegger e Foucault) não existe prerrogativa epistemológica (seja ela filosófica ou científica), mas uma luta constante entre as múltiplas (e infinitas) interpretações possíveis.
Ao mesmo tempo, devemos reconhecer - como Said na questão do orientalismo - de que o imaginário objetivista associado ao conhecimento quantitativo produz efeitos pragmáticos, ou seja, de que o objetivismo matemático nas ciências ocidentais é um 'corpo elaborado de teoria e prática em que, por muitas gerações, tem-se feito um considerável investimento material' (Ver Orientalismo, p. 33). O fato, portanto, é que o objetivismo enquanto um sistema de conhecimento pode ser entendido como uma 'grade' usada para filtrar a "experiência humana" na consciência ocidental, uma forma de enquadrá-la e discipliná-la, produzindo-a enquanto um sistema de relações de poder com grande capacidade de infiltração na sociedade como um todo, modo pelo qual consegue desalojar as demais linguagens como "meras" interpretações.
O objetivismo, neste caso, não se dá a partir de uma anulação da subjetividade humana, mas como um modo específico (e histórico) de subjetivação. Esse sistema de conhecimento pode, portanto, ser abordado enquanto prática histórica (para além do seu efeito retorico), a partir de uma etnografia das ciências realmente preocupada em entender o pensamento e a prática científica nos seus próprios termos (ao invés de desautorizá-la a partir de uma autoridade etnográfica concentrada em revelar o que os cientistas estão realmente fazendo quando estão 'fazendo o que pensam estar fazendo').
Nenhum comentário:
Postar um comentário