quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Retrospectiva Antroposimetrica: rumo a 2012!

Mais um ano se vai e outro está por nascer. A vida é repleta de ciclos, de recomeços e novas partidas. Estamos sempre em movimento, buscando um caminho, uma trilha, um desvio, um retorno, uma curva ou parada circunstancial. Apreendemos com  as pessoas, situações e novos eventos que presenciamos. Enfrentamos novas e velhas dificuldades. Revivemos antigas infelicidades, mas também descobrimos novos sentimentos e alegrias. Conquistamos alguns projetos e abandonamos outros. Perdemos alguns amigos, que se foram (sempre muito cedo), mas vivenciamos o nascimento de outras vidas, outras sementes promissoras. Experimentamos alegrias, mas também grandes tristezas. A vida é uma montanha russa onde o trajeto muda a cada trecho percorrido, nada é igual, apesar dos sentimentos e das sensações se reproduzirem sob novas paisagens. Reclamos dessa instabilidade, é verdade,  mas se não fosse tão eletrizante, tão repleta de curvas sinuosas, descidas e subidas emocionantes, seria tão sem graça que não valeria apena viver. Estar vivo é participar ativamente do ciclo de transformação.

Próxima parada: 2012!

O final do ano também é aquele momento que paramos para pensar um pouco sobre o ano que passou e aquele que está por vir. Para nós, da comunidade 'antroposimetrica', foi um ano movimentado. Talvez seja o momento mais adequado para relembrarmos alguns fatos que marcaram o nosso mundo em 2011 e que foram tema de destaque no blog e em outras redes virtuais.

Assistimos com tristeza o assassinato de lideranças indígenas e ribeirinhas em todo Brasil, um forte ataque as nossas instituições democráticas. A passividade e, muitas vezes, a conivência das autoridades policiais e judiciárias com a bandidagem promovida pelos empresários do agronegócio e da pecuária contra lideranças políticas conta, infelizmente, com o apoio político (e ideológico) de setores dos governos estaduais e federais e de autoridades policiais e judiciárias, o que resulta, na maior parte das vezes, na total impunidade dos culpados. Infelizmente, ainda temos muito o que avançar nesse sentido. Os criminosos precisam ser punidos com rigor e justiça e as lideranças políticas sob ameaça de morte precisam contar com o apoio do Estado, que deve garantir a sua plena segurança e livre exercício da liberdade de expressão política. A consolidação da democracia no Brasil depende fundamentalmente do amadurecimento de nossas instituições políticas e, para isso, é necessário punir os contraventores sem qualquer exceção. O Estado Brasileiro não pode ser conivente com a criminalidade e deve agir com força e idoneidade.

Mas o desrespeito maior vem sendo promovido pelo governo federal e sua ideologia desenvolvimentista. Estamos diante de um retorno a era dos governos militares, com seu autoritarismo de mando e sua ideologia tecnicista, velada por uma 'democracia' centralizadora. Por ironia do destino, parte dos antigos combatentes da ditadura militar reproduzem a mesma mentalidade de caserna de seus inimigos: pelo visto, os rizomas da sociedade passada se transformaram com o tempo em nossas atuais árvores hierárquicas. A ideologia do "PAC" - com seu impacto devastador sobre o meio ambiente e as populações indígenas e tradicionais da Amazônia e de outras regiões do Brasil - conta com o apoio das nossas elites políticas e partidárias (com poucas e boas exceções).

O caso da Usina Hidroelétrica de Belo Monte é o exemplo mais paradigmático do contexto político que enfrentamos atualmente. Ao custo caro da destruição totalitária do meio ambiente e do ataque incondicional aos direitos constitucionais das populações diretamente afetadas por essa e outras obras semelhantes, o governo promove o velho projeto do "progresso a qualquer custo", sem nenhum planejamento estratégico à médio e longo prazo, mobilizado apenas por interesses imediatos de ordem financeira. Nesse processo antropofágico, as vidas de pessoas de 'carne e osso' são transformadas em números, estatísticas e diagramas. Apesar da população brasileira ter dado claras demonstrações da necessidade de se discutir a nossa matriz energética, o governo federal não demonstra qualquer intenção em 'democratizar' o nosso plano energético nacional, mantendo fechada todas as portas para o diálogo produtivo com a sociedade civil, reproduzindo o mesmo esquema 'tecnicista' dos governos militares. Infelizmente, a perspectiva nesse setor é a pior possível, tendo em vista o projeto governamental de construir dezenas de hidroelétricas na Amazônia nos próximos dez anos. Quem mais tem a perder com isso são as populações diretamente afetadas por essas obras, que assistem a destruição do meio ambiente do qual depende a sua sobrevivência.

Infelizmente, diante de tal situação, a maior parte dos habitantes das grandes metrópoles da faixa litorânea mantem uma atitude insensível em relação ao destino dos índios e ribeirinhos. Mentiras são publicadas na internet e vídeos comprados pelas construtores de Belo Monte (que vão lucrar bilhões com a hidroelétrica) são colocados a circular. Mais preocupados em garantir a 'liberdade' dos campus universitários ou suas bolsas de estudo, parte de nossos universitários continua passiva diante da destruição e do descaso governamental. Pior do que isso, sem conhecer a realidade das populações afetadas, sem nunca ter colocado o pé na Amazônia ou em qualquer outro lugar fora do eixo sul-sudeste, esses estudantes foram transformados, da noite para o dia, em agentes da antropofagia interna. Sob slogans ultrapassados e desatualizados que relembram o estilo da ideologia da "Segurança Nacional", alguns estudantes precisam urgentemente rever seus conceitos e pesquisar um pouco melhor antes de sair por aí fazendo falsas denúncias. Motivados pelos fantasmas do 'nacionalismo tupiniquim', do 'risco do apagão'  e de teorias da conspiração, essas manifestações demonstram o quanto ainda precisamos avançar em termos de educação democrática e cívica.

Mas o problema também perpassa nossas instituições governamentais, aja visto, por exemplo, o 'cerco' que vem sendo feito às ONGs. Devido às denunciais de irregularidades no setor, as 'boas' instituições estão sendo prejudicadas em editais públicos em diferentes setores do governo federal. Um exemplo disso é a atitude do Ministério da Cultura em 'inviabilizar' tecnicamente os projetos de implantação dos pontos de cultura indígena, prejudicando diretamente dezenas de povos indígenas. Outro exemplo negativo é a morosidade da Secretaria de Direitos Humanos e do Ministério da Justiça em agir de forma contundente na captura dos culpados pelos assassinatos a lideranças indígenas no Mato Grosso do Sul e em outras regiões do país. Soma-se a isso a difícil situação enfrentada pelos índios do Santuário dos Pajés, em Brasília, que lutam pelo reconhecimento de seus direitos fundiários, enfrentando a corrupção governamental em torno do valioso mercado imobiliário da capital federal. Uma situação semelhante é vivenciado por outros grupos indígenas 'urbanos', que lutam pelo reconhecimento de seus direitos políticos e territoriais.

Nas grandes metrópoles como o Rio de Janeiro, São Paulo, Manaus, Recife, Porto Alegre etc., enfrentamos a corrupção em todos os níveis de governo (executivo, judiciário e legislativo). A prisão do chefe do tráfico na capital carioca revelou um tenebroso esquema de corrupção policial, demonstrando claramente que a "indústria do tráfico" conta com o apoio de uma rede que perpassa diversos setores governamentais. Mais de 50% do dinheiro arrecadado era repassado aos policiais e governantes corruptos, que forneciam em troca a segurança das operações. Por outro lado, as forças de 'pacificação' também não estão livres da corrupção e dos excessos. Da mesma forma, assistimos inúmeras noticiais denunciando a corrupção em diferentes setores governamentais: desvio de verbas, superfaturamento de obras, roubo e outras tantas irregularidades. Além da corrupção ativa e passiva, também acompanhamos o descaso com a verba pública e o aumento desproporcional dos gastos com os salários dos nossos representantes políticos. O circo formado pela mídia em torno das 'denúncias' também não ajuda a superar a situação, pois ao trabalhar sob a lógica do 'sensacionalismo", os grandes meios de comunicação acabam fortalecendo a manipulação política dos fatos, sem nunca tratar do problema estrutural (e estruturante) que está por trás desses eventos circunstanciais. Enquanto não abordarmos a corrupção como uma instituição social que perpassa diferentes setores do governo e da sociedade civil, nunca vamos conseguir superar o problema a partir de iniciativas concretas e eficientes.

Ao mesmo tempo, a criminalidade nos grandes centros urbanos aumenta cada vez mais: roubos, assaltos, assassinatos etc. se tornaram comuns no cotidiano das grandes cidades. A violência está por toda parte: no trânsito, na escola, na família, nas ruas, nas empresas. Afinal, não poderia ser diferente, pois uma sociedade desigual que estimula a atitude competitiva e individualista produz fenômenos de insensibilidade civil e humana em todos os setores. Por outro lado, a falta de planejamento urbano resulta em um crescimento desordenado, dando origem a alagamentos, congestionamentos e outros males enfrentados pelos habitantes das grandes cidades. As catástrofes ambientais representam um novo desafio para os governos municipais, estaduais e federais, que precisam criar mecanismos de prevenção e amparo das vítimas atingidas. Por outro lado, o governo precisa fiscalizar o uso das verbas concedidas para a recuperação das cidades e regiões atingidas, pois as denunciais de desvios de recursos públicos destinados para a recuperação dos municípios serranos do Rio de Janeiro demonstram que nem mesmo a dor e sofrimento da perda vivenciado pelos moradores dessas localidades consegue sensibilizar os corruptos. A população precisa fiscalizar de perto a aplicação dessas verbas, cobrando de seus representantes políticos o uso desses recursos em projetos de reestruturação da infra-estrutura local e de apoio direto as famílias atingidas.

A crise ambiental está diretamente associada ao chamado "aquecimento global", ocasionado um processo de mudanças climáticas com grande impacto sobre o meio de vida das populações do mundo inteiro. O desmatamento do meio ambiente na Amazônia Brasileira, ocasionado pelo avanço da 'frente desenvolvimentista', também conhecida como o 'arco do desmatamento', contribui sensivelmente para a crise climática vivenciada nas grandes metrópoles.

No que se refere à conservação da biodiversidade de nossas florestas e rios, infelizmente, assistimos a um verdadeiro retrocesso com a aprovação do Novo Código Florestal. Isso demonstra que a maior deficiência dos governantes brasileiros esteja exatamente em perceber que esses dois pólos estão interligados: os desastres ambientais urbanos e a devastação do meio ambiente são as duas faces de uma única e mesma moeda. Vivemos em rede, tudo está interligado. As ações promovidas no norte do país resultam em danos para as populações das grandes cidades da faixa litorânea. Infelizmente, as ações governamentais nessa área têm sido desastrosa, permitindo o cancelamento de multas e a modificação da lei em benefício dos desmatadores.

Mas a vida, neste último ano, também nos beneficiou com algumas flores. Apesar do contextos hostil vivenciado por uma parte da população indígena e ribeirinha brasileira, muitas foram as conquistas alcançadas em 2011. A maior de todas elas, certamente, é o amadurecimento dos movimentos políticos indígenas e não-indígenas em todo Brasil, com o fortalecimento de suas redes e a intensificação de suas ações políticas. Uma rede de iniciativas de desenvolvimento sustentável percorre o Brasil inteiro, do sul ao norte, de leste a oeste. Projetos de revitalização cultural e geração de renda se multiplicam em todo país, assim como as iniciativas na área de educação intercultural. Muito se tem avançado - mesmo que a duras custas - na luta pelo reconhecimento dos direitos fundiários dos povos indígenas e tradicionais. O debate sobre os direitos intelectuais dos povos da Amazônia, assim como a discussão sobre mecanismos de defesa de seus bens culturais (materiais e imateriais) e instrumentos de repartição de benefícios e consentimento informado também avançou sensivelmente, com a consolidação de uma rede de extensão nacional.    

Esse movimento tem sido acompanhado, em parte, por um aumento considerável das mobilizações políticas de setores da população urbana, principalmente, de trabalhadores e estudantes. Esse movimento representa um lento processo de consolidação da mentalidade democrática, mesmo diante de um contexto institucional consideravelmente autoritário.


Inclusive, é importante notar que essa intensificação das mobilizações e manifestações políticas da população civil é uma tendência 'mundial'. Afinal, neste ano, acompanhamos a emergência do movimento de ocupação de "Wall Street" e outras tantas ações semelhantes em cidades do mundo inteiro. A "Primavera Árabe" revelou a força da comunidade árabe mobilizada, fato que teve grande influência na emergência de movimentos políticos civis no mundo interior, inclusive no coração do mundo financeiro, em Nova Iorque. A crise econômica mundial atingiu as grandes economias do mundo interior, levando fenômenos que até pouco tempo eram praticamente uma exclusividade dos chamados 'países do terceiro mundo' - desemprego, pobreza e desigualdade - para as grandes potências mundiais. Ainda fica difícil visualizar o novo contexto político que está emergindo lentamente dessas manifestações, mas, certamente, estamos diante de um fortalecimento da sociedade civil diante dos abusos cometidos por nossos representantes políticos.



Por último, é importante destacar que o projeto do blog "Antropologia Simétrica" - apesar das limitações circunstanciais (finalização do doutorado etc.), avançou significativamente. A nossa comunidade quase dobrou de tamanho no último ano, assim como o número de acesso. Estamos inseridos em redes virtuais de grande extensão, contribuindo - ao lado e em parceria com outros blogs e colaboradores - para a circulação de informações e notícias que não recebem o devido destaque na grande mídia. Acredito que esse seja o maior e principal objetivo deste blog: disponibilizar, para o grande público, informações diferenciadas sobre fatos e eventos que estão ocorrendo no mundo, privilegiando a nossa linha editorial, que consiste em buscar romper com o Grande Divisor entre 'modernidade' e 'tradição', tentando atuar para além dessas fronteiras, abordando uma multiplicidade de temas sob uma perspectiva antropológica. Nesse sentido, o blog representa uma ferramenta de ativismo político à disposição dos coletivos com os quais estamos em contato. Afinal, uma parte importante do material publicado no blog tem sua origem em sugestões de membros da comunidade ou em notícias ou comentários que circulam nas redes em que estamos inseridos. E olha que essa rede não aumentou apenas em tamanho, mas também em termos de extensão geográfica. O blog recebe acesso do mundo inteiro e de centenas de cidades brasileiras, que chegam até nós por uma infinidade de caminhos. Muitos desses internautas passam e nunca mais retornam, outros, no entanto, tornam-se parte de nossa comunidade, seja como membros formais, colaboradores ocasionais ou leitores assíduos. Sem esse apoio, certamente, o projeto não teria continuidade.      

Mas ainda resta muito o que melhorar. Espero que o ano de 2012 seja tão ou mais produtivo quanto o de 2011. Estamos comprometidos em dar continuidade ao nosso trabalho nesse novo ciclo que está por nascer. Mas, nos próximos dias (até o início de janeiro), o blog vai entrar em recesso. Afinal, todo mundo precisa de férias para renovar as energias. Eu, pessoalmente, após um ano de trabalho exaustivo, mal consigo esperar para entrar em férias e curtir com meus amigos e familiares esta virada de ano. O ano de 2012 promete novas revelações e desafios. Apesar das dificuldades enfrentadas, também existe muita coisa para comemorar. O término do doutorado e o início de uma nova etapa é uma delas.

Vamos em frente, sem nunca perder a esperança e com muito perseverança. A vida está aí para ser vivida com intensidade. Não nascemos para sermos telespectadores passivos e precisamos agir sempre e estar atentos, ativos, mobilizados, comprometidos, engajados em mudar o mundo e colocar nossas ideias em movimento. A luta que enfrentamos ao lado dos nossos companheiros e amigos não é nada fácil. O trabalho é exaustivo e diário, exigindo de nossa parte sacrifícios e doações constantes. Mas o retorno é talvez o melhor que a vida pode nos dar: dignidade humana, esperança e a capacidade de imaginar uma sociedade melhor, mais justa, sustentável e igualitária.

Em 2012, venha você também fazer parte desta comunidade de ativistas e seja mais um anônimo trabalhando para colocar em prática o nosso projeto!

Com isso, nós da comunidade antroposimetrica gostaríamos de desejar a todos:

Um Feliz Natal e um Próspero 2012!

   

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

"O Preço do Progresso" - Desenvolvimento e Antropofagia

O título da reportagem é bem sugestivo, O Preço do Progresso. Uma frase que, para nós, brasileiros,  assume um sentido mitológico, como um caminho inevitável prescrito em nossa história. O tema da matéria é bastantes atual, aborda o provável impacto da hidroelétrica São Luiz no rio Tapajós, uma das 22 hidroelétricas que o governo federal pretende construir na região norte até 2019. O tom nostálgico da notícia parte de um pressuposto considerado inevitável, o Brasil precisa se desenvolver e, para isso, é necessário gerar novas fontes de energia. Mas a construção de grandes hidroelétricas ocasiona efeitos ambientais e sociais extremamente destrutivos. Apesar dos jornalistas lamentarem essa destruição, o título da reportagem indica uma mensagem subliminar: "se quisermos continuar nosso caminho em direção ao progresso, esse é o preço que teremos de pagar". A questão é apresentada como um fato consumado, prescrito, agendado, programado, um caminho do qual não podemos escapar.

E olha, que esse preço é bastante caro, de fato, de valor inestimável: a extinção de peixes, pássaros, árvores, insetos e animais que só existem na região; a remoção de comunidades indígenas e ribeirinhas; e a inundação de um patrimônio arqueológico inestimável. Ou seja, em nome do "progresso" - esse emblema totêmico inscrito em nossa bandeira - vamos destruir o nosso patrimônio ambiental, cultural e arqueológico. Ao que parece, estamos diante de um "progresso antropofágico".

Mas o que a reportagem não questiona é a própria ideia do 'progresso'. Desde sempre crescemos ouvindo que o Brasil precisa se desenvolver economicamente e tecnologicamente. Mas será que o problema do Brasil é realmente a necessidade de aumentar o tamanho do bolo? Sim, porque tudo indica que o nosso grande problema não é, por assim dizer, o tamanho do bolo, mas a divisão extremamente desigual do mesmo. Afinal, temos um coeficiente de Gini que está entre os mais altos do mundo: 0,540 (2007). Esse índice mede o grau de concentração de renda em determinada economia, onde o "0" corresponde a uma situação onde a renda se encontra igualmente distribuída e o "1" a uma situação onde toda a renda está concentrada na mão de uma única pessoa. Ao que parece, o grande problema brasileiro é a desigualdade radical. Não adianta continuar o caminho do 'progresso', se os dividendos não são nunca distribuídos e compartilhados. O resultado inevitável dessa fórmula política é o enriquecimento cada vez maior das nossas elites financeiras e dos nossos políticos, que se aproveitam das "mega-obras" do setor hidroelétrico para saquear os tesouros nacionais.    

Ao invés de nos preocuparmos tanto com a crescimento econômico, deveríamos usar a mesma energia para pensar formas de distribuir melhor  a renda entre nossos cidadãos. Isso sem falar, é claro, na concentração de terra, que também é medida pelo mesmo coeficiente, chegando a assustadora marca de 0,90. Nem é preciso lembrar que, até hoje, ainda estamos aguardando o governo federal implementar de fato uma política de reforma agrária séria e eficiente.

A nossa fixação obsessiva  no "progresso" nos impede de pensar e refletir sobre a forma como esse progresso vem ocorrendo nas últimas décadas. Afinal, a ideia de 'desenvolvimento nacional' não é nenhuma novidade, trata-se de uma fórmula governamental que já vem sendo aplicada no Brasil há séculos pelas nossas elites nacionais (talvez seja melhor adjetivá-las de "regionais"). Quem não se lembra do slogan de JK, "50 anos em 5" ou o "milagre econômico" dos militares, na década de 1970? O resultado dessas políticas desenvolvimentistas foi o pior possível: aumentamos o bolo sem dividi-lo.

A questão portanto não é ter que optar entre preservar a natureza e os índios ou continuar o caminho inevitável em direção ao progresso nacional. Mas, sim, refletir qual a melhor forma de desenvolvimento, a maneira mais sustentável e eficaz de nos tornarmos uma sociedade melhor, mais igualitária e justa. Pelo menos, em tese, deveria ser assim.

Mas, de fato, não é. O que temos é um processo histórico de colonialismo interno de caráter antropofágico, baseado em uma percepção do Brasil como fonte de riqueza privada. As análises antropológicas e sociológicas sempre apontaram para essa mistura ou sobreposição entre o público e o privado no Brasil.  Mal compreendemos o valor inestimável da biodiversidade e já estamos elaborando formas de comercializá-la ao melhor preço. Estamos diante de um novo "El dorado". No imaginário da elite financeira e política - não raro traduzido como "imaginário nacional" - a Amazônia é uma fonte de energia e enriquecimento pessoal, sem qualquer outro valor. O que importa é aniquilar tudo o quanto antes, retirar dali o máximo que for possível, mesmo que isso resulte, a médio e longo prazo, em uma total extinção da 'sociobiodiversidade amazônica'. O "progresso" é apresentado como um caminho inevitável e sem volta, mesmo que para isso seja necessário levar adiante o genocídio programado contra os povos indígenas e comunidades ribeirinhas, que sempre levaram a pior nessa história de desenvolvimento.

Conforme mostra a reportagem, diante do inevitável 'preço do progresso', cabe aos cientistas contabilizar as perdas e, aos jornalistas, registrar a tragédia 'ao vivo'. Qual será o nosso papel nesse enredo? Telespectadores passivos de uma narrativa cinematográfica? Vítimas de   um caminho irreversível? Testemunhas do percurso "inevitável" da história? Qual será o papel de nossos filhos? Herdeiros ou vítimas do progresso?

Nos escritórios e gabinetes de Brasília, as decisões governamentais são tomadas com base unicamente em cálculos, números, estatísticas, previsões e análises de conjuntura. Diante dos números, os seres humanos de carne e osso desaparecem. Os burocratas estatais estão imersos em um labirinto de documentos, normas, editais, projetos e programas. O tecnicismo burocrático nunca esteve tão em moda. O cronograma conturbado da política partidária - alimentado pelo sensacionalismo superficial e anti-ético da grande mídia - não dá espaço para a reflexividade. E o "progresso" é uma dessas categorias do pensamento que parecem estar por toda parte, absorvido e transformado por redes diversificadas de coletivos, que traduzem essa ideia a partir de seus interesses políticos e existenciais. A sensação é que estamos percorrendo um caminho prescrito em nossa mitologia 'moderna', uma via de mão única, sem desvios ou alternativas. O estilo apocalíptico da reportagem transmite e expressa muito bem esse sentido de 'inevitabilidade'.

Mas para além das torres do Castelo - imagem usada por Kafka para descrever a máquina estatal, com seus labirintos, surtos rizomáticos e eventos surreais - existe o mundo da vida. Abaixo dos nossos pés entramos em contato direto com a terra que habitamos diariamente, onde encontramos as pessoas que vivem ao nosso lado, as coisas que chamam a nossa atenção, os ritmos locais, os desafios, a vontade existencial de persistir. As pessoas continuam buscando alternativas, criticando, defendendo ideias e questionando o nosso caminho (aparentemente inevitável) em direção ao progresso antropofágico. Mesmo diante do autoritarismo totalitário - camuflado sob o véu de 'democracia representativa' - a voz das minorias (políticas) clama por justiça e por reconhecimento existencial e político.

Infelizmente, no entanto, os gritos da resistência não são ouvidos por aqueles que governam e fazem as leis em nosso nome, os nossos representantes políticos. De fato, já faz algum tempo que há algo errado com a nossa democracia, outra ideia que importamos rapidamente e traduzimos conforme o sabor dos trópicos. Mas algo está se perdendo no caminho. A corrupção é apenas o indício mais significativo de uma crise muito mais ampla, de qualidade, por assim dizer, 'estrutural' (e estruturante). Enquanto não nos dermos a chance e o tempo para refletir de forma crítica sobre as tradições políticas que herdamos nos últimos séculos, nunca seremos capazes de avançar e realmente progredir, no sentido de atingir um 'lugar' no tempo e no espaço que nunca conquistamos antes. Quando não há tempo para a reflexividade, o progresso se dá em círculos; temos a sensação de estar nos movendo sem nunca sair do lugar que ocupamos na história.

Apesar de todo esse sensacionalismo romântico em torno da ideia de 'progresso', o que vemos por toda parte é como esse pensamento se traduz em 'reprodução' de um plano ou projeto arbóreo de caráter predatório e eficácia duvidosa (para não dizer desastrosa). Enquanto nossos antigos colonizadores buscam por alternativas para superar os efeitos nefastos gerados por um modelo insustentável, nós insistimos em refazer o mesmo caminho em direção ao 'progresso' destrutivo da humanidade e do humano. Ao que parece, a mentalidade colonizada é um 'espelho' de vaidades privadas e, com isso, reflete apenas a posição subordinada que lhe é projetada do exterior.

sábado, 3 de dezembro de 2011

A Linguagem em Heidegger e Gadamer

"Talvez a melhor forma de mostrar isso seja a partir da interpretação heideggeriana da aletheia. Heidegger traduz aletheia por 'desvelamento'. A partir do uso linguístico grego, talvez fosse mais correto dizer com Humboldt e outros: 'desocultamento'. (...) A linguagem 'arranca' do 'velamento', traz para o desvelamento, para a palavra e para o risco do pensamento. (...) É quase desnecessário dizer como resultou daí facilmente para Heidegger a passagem para o 'morar'. Pois 'morar' também é efetivamente uma palavra para designar o fato de não nos encontrarmos diante dos objetos para dominá-los. Nós habitamos no habitual. No interior desse habitual também se acha a linguagem, algo em que vivemos, moramos e nos sentimos em casa. (...) Palavra e língua são aquilo com o que lidamos uns com os outros e com o mundo no estamos em casa - essa moral do qual Hegel já estava consciente ao empregar a bela expressão 'encontrar sua moradia' para descrever a tarefa humana. De maneira similar, Heidegger mostrou junto ao morar que a palavra não possui em torno de si um círculo daquilo que é dominado, mas um círculo daquilo que é familiar. É um espaço próprio que se abre aí - e um espaço no qual nunca estamos sozinhos. Não apenas porque estamos aí tão frequentemente com outros homens. Sempre estamos antes de tudo envolvidos pelos rastos da própria vida e preenchidos pela totalidade de nossas lembranças e esperanças".

Fonte: "Hermenêutica em Retrospectiva" - Hans-Georg Gadamer    

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

"Gentileza gera Gentileza", uma filosofia da dádiva

A frase do século XX: "Gentileza gera gentileza". A lógica da dádiva em linguagem-grafite, no muro da grande metrópole, propõe a imersão e o envolvimento com tudo aquilo que está ao nosso lado, que exige nossa atenção e cuidado. Estamos todos conectados em um único sistema "vivo". 'Cuidar', fazer a dádiva circular, dar atenção, envolver-se no mundo, eis o grande segredo da vida tão bem resumido por esse nobre filósofo das ruas.

Para estar 'vivo' não basta ter um corpo com órgãos, é preciso muito mais do que isso. Para estar 'vivo' realmente é preciso ter uma atitude existencial e saber estar-conectado, deixar-se levar pelo fluxo da vida... Desde o momento em que nascemos, já no primeiro grito de vida, anunciamos a nossa presença. A partir daí, jamais ficamos sozinhos, nem mesmo na morte. Estar 'vivo', habitar o mundo, tudo isso já pressupõe estar-com-os-outros, deixar-se afetar e afetar os demais. A presença exige a atenção e a atenção exige o cuidado. O gabinete da mente e do indivíduo enquanto célula autônoma é uma grande ilusão. O Ser enquanto presença é sempre um Ser-no-mundo. Mesmo as atividades mais abstratas como escrever, pensar, compor, fazem parte do fluxo da vida e do constante exercício de imersão no mundo. Viver é sempre conviver. Mesmo quando cultivamos nossos pensamentos mais íntimos sem revelá-los, mesmo quando mantemos os nossos segredos longe da curiosidade dos outros, mesmo assim, ainda é com-os-outros (ou em relação aos outros) que fazemos silêncio ou mantemos segredo. Não importa o quanto sejamos individualistas, a reciprocidade e a dádiva é um efeito do estar-vivo-e-conectado com o mundo.

Quando agimos com gentileza, recebemos em troca mais gentileza (mesmo que não seja na mesma proporção), num circuíto virtuoso de "cuidado" e "atenção" que torna o viver lado a lado um exercício sensível de compaixão. Mesmo quando não somos correspondidos, essa postura, quando acompanhada de uma disposição feliz, segura e sincera, gera incomodo e inquietude mesmo naqueles que respondem com violência ou ignorância. Talvez esteja aí o ponto de partida para uma nova jornada: a oportunidade de uma conscientização e de uma sensibilidade física de estar em contato, de estar vivo, de afetar e ser afetado pelos outros, de compartilhar e ser compartilhado, de modificar e ser modificado.  

"Gentileza gera Gentileza", dizia o poeta das ruas, com sua barba branca e seu olhar sincero.

Existe uma verdade nessa sentença que não é de ordem racional, mas emocional. Essa frase sintetiza uma filosofia-vida que emerge da experimentação do cotidiano e da convivência com os outros. Uma filosofia mundana baseada simultaneamente no entendimento da lógica da reciprocidade como base da sociedade e na projeção subsequente desse entendimento na forma de "um saber-viver-com-os-outros". Uma proposição solidária e altruísta como esta é facilmente interpretada como "romântica", "idealista" ou qualquer coisa do gênero, quando de fato se trata quase de uma tese fisiológica.

De fato, o pressuposto de que o indivíduo é auto-suficiente e auto-gestionável e de que o cogito se basta a si mesmo parece partir de um racionalismo messiânico, pois tudo na vida mostra o quanto estamos genuinamente conectados, entrelaçados em associações, inseridos em extensas redes sociotécnicas, sempre em relação aberta com a "finitude" e a "materialidade" dos conhecimentos. O fato é que desde o primeiro grito e da primeira palavra pronunciada, estamos sempre em relação com um mundo de coisas e pessoas com os quais nos encontramos essencialmente envolvidos. Mesmo quando buscamos 'ignorar o outro', existe algo no ignorar que leva em conta o ser ignorado como parte da facticidade do "Ser-no-mundo".

O filósofo Gentileza percebeu isso desde sua infância. Mas foi a partir de um acontecimento trágico que ele recebeu o "chamado" para a missão de pregar a "gentileza" como uma atitude diante da vida: o trágico incêndio de um circo, em Niterói, em 1961, onde morreram 500 pessoas. Diante da tristeza imensurável diante da perda de amigos e familiares, o profeta 'percebeu' uma 'verdade' fundamental da existência: a essência da vida é ser-com-outros. Infelizmente, só percebemos o sentido mais profundo desse enunciado quando perdemos alguém importante, quando sentimos que 'algo de nós' se foi também.O poeta Gentileza abandonou carreira e família para pregar sua mensagem nas ruas e muros do Rio de Janeiro. Deixou de viver-com-os-seus, para viver-com-todos, numa ação paradigmática que deu origem a um mito urbano. Reza a lenda que Gentileza se tornou um renunciante após perder a família no incêndio. Ele mesmo, no entanto, afirmava que era pai de cinco filhos. Seja como for, sua história é conhecida por todos e inspira poetas e artistas até hoje.

O enunciado "Gentileza gera Gentileza" pode ser encontrado na rua, em murais, mas também em camisetas e adesivos. A marca do profeta se tornou imortal, sobreviveu a própria morte física de José Datrino.

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