sábado, 29 de outubro de 2011

Convenção 169 da OIT

A Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes foi adotada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1989, tendo sido retificada pelo governo brasileiro em 2003.

Através desta convenção, a OIT reconhece os povos indígenas e tribais como sujeitos de direito, passando a defender os direitos territoriais, políticos, econômicos e sociais desses povos. 

Esse documento tem origem na revisão da Convenção 107, adotada pela OIT durante a década de 1950. Essa convenção postulava a necessidade de que os Estados implementassem políticas de caráter integracionista, com o objetivo de inserir os índios na sociedade, de preferência através de políticas públicas na área de educação e trabalho. A ideia era que a única forma de proteger essas populações era oferecendo os meios para que as mesmas fossem integradas nas sociedades nacionais, mesmo que isso resultasse na perda da sua cultura e no abandono do seu modo de vida. O ideal da época consistia em transformar os índios em trabalhadores, de preferência urbanos, modernos e completamente integrados na vida nacional. Essa legislação estava apoiada em uma ideologia tutelar que orientou, em grande parte, as políticas indigenistas brasileiras até o final da década de 1980.

O caráter integracionista da convenção 107 foi combatido pelos povos indígenas e tribais do mundo inteiro, que lutaram pelo reconhecimento dos seus direitos políticos na ONU. Essas mobilizações tiveram impacto no âmbito da OIT, que concordou com a necessidade de revisar o seu posicionamento, o que veio a ocorrer com a adoção da Convenção 169 na 76º Conferência Internacional do Trabalho. Nesse documento, a OIT reconhece o direito dos povos indígenas em manter sua cultura, defendendo a necessidade que os Estados garantam os meios para que isso ocorra de fato. Segue abaixo uma síntese dos principais princípios e diretrizes adotados nesse documento internacional.

O uso da noção de "povos" para caracterizar as sociedades indígenas e tribais

A C169 foi o primeiro documento internacional a adotar o termo "povos" para se referir às sociedades indígenas e tribais como sujeitos de direito, conforme podemos ver no artigo primeiro. Essa noção é usada para caracterizar coletivos com identidade e organização política e social própria, assim como uma cosmologia e uma forma específica de se relacionar com o território. Essa convenção reconhece também o direito dos índios à posse coletiva dos seus territórios tradicionais, orientando os Estados membros a adotarem medidas para garantir esse direito na prática, conforme podemos ver no artigo 2º:

"Promover a plena realização dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando sua identidade social e cultural, seus costumes e tradições e suas instituições" (p. 19).   


A adoção do critério da auto-identificação no reconhecimento dos índios como sujeitos de direito 

A C169 determinou a auto-identidade como único critério legítimo para o reconhecimento dos povos indígenas e tribais como sujeitos de direito pelos Estados membros, conforme podemos ler no artigo primeiro:

"A auto-identificação como indígena ou tribal deverá ser considerada um critério fundamental para a definição dos grupos aos quais se aplicam as disposições da presente Convenção" (p. 18). 
   
O reconhecimento do direito ao Consentimento Informado 

Outra diretriz adota nesse documento consiste em defender a garantia de participação dos povos indígenas e tribais no processo de desenvolvimento, determinando que os Estados consultem essas populações antes de decidir sobre medidas executivas e legislativas que os afetem direta ou indiretamente. Essa questão é abordada logo no artigo 6, que determina o dever dos Estados em "consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, por meios de suas instituições representativas, sempre que se tenham em vista medidas legislativas ou administrativas capazes de afetá-los diretamente".

Ainda sobre o processo de consulta, a C169 determina:

"As consultas realizadas em conformidade com o previsto na presente Convenção deverão ser conduzidas de boa-fé e de uma maneira adequada às circunstâncias, no sentido de que um acordo ou consentimento em torno das medidas propostas possa ser alcançado" (p. 22-3). 

No que se refere expressamente às políticas públicas desenvolvimentistas (como o PAC), a C169 determina no artigo 7º:

"Os povos interessados terão o direito de definir suas próprias prioridades no processo de desenvolvimento na medida em que afete sua vida, crenças, instituições, bem-estar espiritual e as terras que ocupam ou usam para outros fins, e de controlar, na maior medida possível, seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, eles participarão da formulação, implementação e avaliação de planos e programas de desenvolvimento nacional e regional que possam afetá-los diretamente" (p. 23).  

Sobre a análise e estudo dos impactos provocados por obras de desenvolvimento e infra-estrutura, a C169 determina no artigo 7º:

"Sempre que necessário, os governos garantirão a realização de estudos, em colaboração com os povos interessados, para avaliar o impacto social, espiritual, cultural e ambiental das atividades de desenvolvimento planejadas sobre eles. Os resultados desses estudos deverão ser considerados critérios fundamentais para a implementação dessas atividades" (p. 24). 

A adoção da força para garantir ações políticas que estejam em desacordos com as diretrizes da convenção 169 é expressamente proibida no artigo 3º (p. 20).

O documento também explicita que as "medidas especiais" adotadas para salvaguardar os direitos dos povos indígenas e tribais não devem contrariar a sua livre vontade, sendo necessário garantir a sua participação na elaboração dessas medidas através dos procedimentos adequados de consulta prévia.

Sobre o tratamento, por parte dos Estados Nações, das demandas dos povos indígenas e tribais, a C169 determina no seu artigo 5º: 

"Os valores e práticas culturais e sociais desses povos deverão ser reconhecidos e a natureza dos problemas que enfrentam, como grupo ou como indivíduo, deverá ser devidamente tomada em consideração" (p. 21).     

Sobre a relação com a terra, a C169 determina no seu artigo 13º:

"(...) os governos respeitarão a importância especial para as culturas e valores espirituais dos povos interessados, sua relação com as terras ou territórios, ou ambos, conforme o caso, que ocupam ou usam para outros fins e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação" (p. 28).

A C169 também instruiu os Estados membros a implementar as medidas necessárias para promover o reconhecimento dos territórios tradicionalmente ocupados pelos povos indígenas e tradicionais, garantindo a essas populações os meios necessários a sua subsistência. 

O documento também determinada que os povos sujeito da C169 não poderão ser retirados dos territórios que ocupam tradicionalmente, sendo que tal procedimento só poderá ser realizado (como medida excepcional) com o livre consentimento desses povos.

Existem outras questões abordadas na Convenção, que pode ser acessada na íntegra no link abaixo:


    

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Ocupação de Belo Monte

Já comentei diversas vezes no blog as controvérsias e ilegalidades associadas à construção da Usina Hidroelétrica de Belo Monte. A obra foi aprovada pelo senado sem a realização do devido processo de consentimento informado com as populações locais direta e indiretamente afetadas pela construção, constituindo um claro desrespeito à Convenção 169, ratificada pelo governo brasileiro. Entre outras coisas, essa convenção determina a realização de consulta prévia com as comunidades indígenas em caso de realização de obras com impacto previsto sob seu modo de vida. No caso de Belo Monte, o governo desrespeitou os direitos indígenas, fato reconhecido pela OEA, que vem exigindo um posicionamento sobre essa questão. O caso é permeado por controvérsias jurídicas e políticas, sendo objeto de várias ações públicas conduzidas pelo Ministério Público e pelos advogados dos povos indígenas e ribeirinhos que vivem no local que será impactado pela construção da obra. A situação política na região vem sendo acompanhada pela Associação Brasileira de Antropologia, que reiterou em notas o seu apoio ao movimento.

Tendo em vista a intransigência do governo em permitir uma ampla discussão da questão com os povos indígenas e ribeirinhos e com o restante da sociedade, os membros do movimento resolveram promover um evento na região para debater a questão. Com isso, entre os dias 25 e 27 de outubro, foi realizado, em Altamira (PA), o "Seminário Mundial contra Belo Monte", reunindo especialistas, simpatizantes do movimento e representantes dos povos indígenas e dos ribeirinhos, com a finalidade de discutir as problemáticas ambientais, econômicas e sociais envolvendo tal empreendimento.

Nesse evento, entre outras ações, os participantes decidiram ocupar o canteiro de obras da Usina, exigindo a presença de um representante governamental para discutir a questão com os indígenas e ribeirinhos. A ação foi concluída com sucesso e cerca de 600 indígenas e ribeirinhos da Bacia do Rio Xingu estão acampados pacificamente no local. A rodovia transamazônica também foi interditada pelos manifestantes.

Segue abaixo a nota do seminário e do movimento de ocupação:

Declaração da Aliança do Xingu contra Belo Monte

"Nós, os 700 participantes do seminário "Territórios, Ambiente e Desenvolvimento na Amazônia: a luta contra os grandes projetos hidroelétricos na bacia no Xingu"; nós, guerreiros Araweté, Assurini, Assurini do Tocantins, Kayapó, Kraó, Apinajés, Gavião, Munduruku, Guajajara do Pará, Guajajara do Maranhão, Arara, Xipaya, Xicrin, Juruna, Guarani, Tupinambá, Tembé, Ka'apór, Tubinamba, Tapajós, Arapyun, Maytapeí, Cumaruara, Awa-guajá e Karajas, representando populações indígenas ameaçadas por Belo Monte e por outros projetos hidroelétricos na Amazônia; nós, pescadores, agricultores, ribeirinhos e moradores das cidades, impactados pela Usina; nós, estudantes, sindicalistas, lideranças sociais, e apoiadores da luta destes povos contra Belo Monte, afirmamos que não permitiremos que o governo crie esta Usina e quaisquer outros projetos que afetem as terras, as vidas, e a sobrevivência das atuais e futuras gerações da Bacia do Xingu.

Durante os dias 25 e 26 de outubro de 2011, nos reunimos em Altamira para reafirmar nossa aliança e o firme propósito de resistirmos juntos, não importam as armas e as ameaças físicas, morais e econômicas que usaram contra nós, ao projeto de barramento e assassinato do Xingu.

Durante esta última década, na qual o governo retomou e desenvolveu um dos mais nefastos projetos da ditadura militar na Amazônia, nós, que somos todos cidadãos brasileiros, não fomos considerados, ouvidos e muito menos consultados sobre a construção de Belo Monte, como nos garante a Constituição e as leis de nosso país, e os tratados internacionais que protegem as populações tradicionais, dos quais o Brasil é signatário. 

Escorraçadas de suas terras, expulsas das barrancas do rio, acuadas pelas máquinas e sufocadas pela poeira que elas levantam, as populações do Xingu vem sendo brutalizadas por parte do consórcio organizado pelo Governo a derrubar as florestas, plantações de cacau, roças, hortas, jardins e casas, destruir a fauna do rio, usurpar os espaços na cidade e no campo, elevar o custo de vida, explorar os trabalhadores e aterrorizar as famílias com a ameaça de um futuro tenebroso de miséria, violência, drogas e prostituição. E repetindo, assim, os erros, o desrespeito e as violências de tantas outras hidroelétricas e grandes projetos impostos à força à Amazônia e suas populações.

Armados apenas de nossa dignidade e dos nossos direitos, e fortalecidos pela nossa Aliança, declaramos aqui que formalizamos um pacto de luta contra Belo Monte, que nos torna fortes acima de toda humilhação que nos foi imposta até então. Firmamos um pacto que nos manterá unidos até que este projeto de morte seja varrido do mapa e da história do Xingu, com quem temos uma dívida de honra, vida e, se a sua sobrevivência nos exigir, de sangue. 

Diante da intransigência do governo em dialogar, e da insistência em nos desrespeitar, ocupamos a partir de agora o canteiro de obras de Belo Monte e trancamos o seu acesso pela rodovia transamazônica. Exigimos que o governo envie para cá um representante comandado para assinar um termo de paralisação e desistência definitiva da construção de Belo Monte.

Altamira, 27 de outubro de 2011".


FORÇA, XINGU VIVO!!

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Movimento "Occupy Wall Street" II

O movimento "Occupy Wall Street" teve início a partir de uma manifestação de caráter local, mas se disseminou pelo mundo em poucas semanas. Seus membros são pessoas comuns, pais, jovens, avós, mães, enfim, cidadãos preocupados com a atual situação de desemprego e crise econômica que atingiu os Estados Unidos e países europeus como a Espanha, a Inglaterra e a França. Eles têm contado com o apoio de personalidades famosas, como músicos, atores, lideranças políticas e intelectuais, que se manifestaram a favor do movimento. O alvo dos ataques é a elite financeira mundial - os grandes bancos e multinacionais - cuja irresponsabilidade e ganância conduziu as economias mundiais à crise em que se encontram atualmente, gerando efeitos negativos na vida do restante da população.

O fato é que os protestos de ordem rizomática que se espalharam por todo o Oriente Médio produziram ramificações no mundo ocidental, influenciando um movimento que tem como principal bandeira de luta restaurar a democracia. No "Occupy Wall Street", as mobilizações políticas estão sendo organizadas conforme táticas e estratégias utilizadas nos movimentos políticos da chamada "primavera Árabe", com ampla utilização da internet e das redes sociais para organizar as atividades de protesto de forma descentralizada. As decisões do movimento são tomadas em "assembleias populares", onde todos possuem o direito de se manifestar e decidir sobre o futuro do coletivo. Diferente de outras mobilizações políticas, no movimento "Occupy Wall Street" não existe uma estrutura hierárquica de comando centralizado, mas células ativistas que gozam de certa autonomia política.

Maiores informações podem ser encontradas no site:

http://occupywallst.org/

O Movimento no tempo:

13 de julho - O grupo anti-consumista "Adbusters" incentiva as pessoas a irem até Manhattan e permanecerem  lá, 'ocupando' Wall Street.

2 de agosto - Os manifestantes realizam a sua primeira reunião, na estátua de Wall Street, em Manhattan.

1 de outubro - Uma passeata na ponte Brooklyn  para o tráfego na região. A polícia faz 700 prisões e o evento tem alta repercussão na mídia internacional.

14 de outubro - Um coletivo de manifestantes tenta aderir ao movimento e são reprimidos pela polícia.

15 de outubro - O "dia de ação global" acaba em uma ocupação da Times Square por mais de cinco mil pessoas. Mais de 200 mil manifestantes protestam em mais de 900 cidades, localizadas em 82 países.

Outros números do movimento:

Entre 200 a 500 pessoas permanecem no Parque Zuccotti dia e noite. Esse coletivo de pessoas é sustentado por uma rede de apoiadores do mundo inteiro.

Oito mil refeições são preparadas e servidas diariamente, sustentando o movimento nas ruas e parques da cidade.

Só no primeiro mês de protestos, foram mais de mil prisões realizadas pelo departamento de polícia de Nova Iorque.

Algumas propostas e bandeiras de luta do Movimento (tradução livre):

"Nós precisamos de mais transparência nas campanhas políticas e precisamos educar as pessoas sobre uma cultura que coloca as pessoas acima dos lucros" - Sam Mcbee, New Jersey.

"Traga as nossas tropas para casa e use o dinheiro que estamos gastando na guerra para construir industrias  onde os desabrigados possam trabalhar" - Janet Kobren, 68, Oakland.

"Os nossos sistemas político, econômico e ecológico estão sob o controle de um pequeno grupo de pessoas que não atuam em nosso interesse. Nós precisamos criar uma nova forma de democracia participativa, assim todos teremos voz" - Aron Fischer, 31, Brooklyn.

Algumas imagens do Movimento:




          

sábado, 22 de outubro de 2011

Tese - Redes Sociotécnicas, Práticas de Conhecimento e Ontologias na Amazônia

Tendo em vista a demanda de amigos e colegas interessados no tema, estou disponibilizando a versão final da minha tese de doutorado - Redes Sociotécnicas, Práticas de Conhecimento e Ontologias na Amazônia: tradução de saberes no campo da biodiversidade - para download via "4Shared".

O link para download está disponível na página ao lado.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Gregory Bateson: uma figura interdisciplinar

"O mais interessante dos jovens forasteiros ingleses nos anos entre as duas grandes guerras, porém, foi Gregory Bateson (1904-1980). Ele vinha de uma família acadêmica, de classe média alta. Seu pai, o famoso biólogo William James, deu esse nome ao filho em homenagem a Gregor Mendel, criador da genética. Bateson estudava biologia quando Haddon, em conversa com ele num trem com destino a Cambridge, o converteu para a antropologia, e ele logo partiu para pesquisas de campo na Nova Guiné. Depois de uma tentativa fracassada de trabalho de campo entre os bainings, Bateson estudou os iatmuls, um povo das terras baixas cujo ritual naven formou a espinha dorsal da primeira (e única) monografia etnográfica de Bateson, Naven (1936).

Na Nova Guiné, e ao que parece numa viagem de canoa no Rio Sepik, Bateson encontrou Reo Fortune e sua esposa, Margaret Mead, que realizava trabalho de campo na mesma região. A descrição desse encontro se tornou um clássico da antropologia. O encontro foi intenso sob todos os aspectos. Os três falaram sobre antropologia e a vida em geral, discutiram sobre as diferenças entre os povos que estavam estudando e analisaram corajosamente suas próprias relações pessoais. Quando a situação se acalmou, Fortune e Mead se divorciaram, Bateson se casou com Mead e em 1939 ambos de mudaram para os Estados Unidos.

O encontro de Mead com Bateson ilustra a relação entre a antropologia inglesa e americana nesses anos. A admiração de Bateson pelo intelectualismo elegante de Radcliffe-Brown foi posta à prova pela intuição de Benedict com relação à psicologia e às emoções. Qual era o papel específico do antropólogo: descobrir princípios sociológicos gerais ou descrever as sutilezas da comunicação humana? Um excluía o outro? Ou existia uma linguagem comum que podia abranger a ambos? A monografia de Bateson é uma expressão desses dilemas. No ritual naven, homens iatmul se vestem de mulher e representam o desejo homossexual por seus sobrinhos jovens. Bateson analisou esse ritual a partir de três perspectivas analíticas distintas. A primeira foi 'sociológica e estrutural', inspirada por Radcliffe-Brown. À segunda ele chamou de eidos (um estilo cognitivo e intelectual da cultura) e à terceira de ethos (de Benedict). Ele achou muito difícil conciliar, para não dizer sintetizar, esses três enfoques, e acabou desistindo da tarefa. Como foi publicado originalmente em 1936, Naven se constitui assim num enigma não solucionado. Só em 1958 apareceu uma segunda edição do livro, com um longo apêndice em que Bateson procurou amarrar as várias pontas soltas.

A monografia de Bateson foi uma obra ambígua, com pouca influência sobre a antropologia da época. Seus contemporâneos ingleses não sabiam o que fazer com ela (Kuper 1996), mas seu prestígio foi aumentando à medida que se tornava claro que ela antecipava várias mudanças que ocorreram na disciplina a partir da década de 1950. Assim, Bateson critica a ideia de 'função' que, do ponto de vista dele, é teleológica. As explicações funcionalistas devem ser sempre examinadas com todo rigor, para verificar se elas de fato especificam todos os encadeamentos pelos quais os 'propósitos' e 'necessidades' do todo são comunicados ao ator individual. Esse exame nos levará a concentrar-nos no processo e na comunicação, e não na função e na estrutura.

Bateson foi um intelectual excepcional que ainda inspira comentários de admiração. Depois da guerra, seu interesse pela comunicação e pelo processo o aproximaria de estudiosos brilhantes em muitos campos: psiquiatras, psicólogos, etólogos, matemáticos, ecólogos, biólogos, etc. Ele logo se tornou uma figura interdisciplinar que fez contribuições importantes para campos como o da psicologia e da teoria das comunicações e foi pioneiro no uso de modelos cibernéticos na explanação antropológica. Mesmo antes da II Guerra Mundial, seu trabalho de campo fotográfico com Mead sobre Bali mostrou sua disposição de explorar os limites da antropologia. Durante a guerra Bateson contribuiu com os estudos de Mead sobre o 'caráter nacional' e trabalhou numa teoria da comunicação que influenciou muitos estudiosos, antropólogos ou não".

ERIKSEN, T. H. e NIELSEN, F. S. História da Antropologia. RJ: Editora Vozes, 2007.

As ideias de Bateson foram publicadas em uma série de ensaios, que foram reunidos em três livros:

"Steps to an Ecology of Mind" (1972)
"Mind and Nature: a necessary unity" (1979)
"A Sacred Unity: further steps to an ecology of mind" (1991)

        

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Intersubjetividade e Perspectivismo

Primeiramente, gostaria de explicitar algo fundamental: não tenho a pretensão de "apresentar" (o que não deixa de ser uma forma de representar) o perspectivismo tal qual ele 'realimente' é. Existem 'porta-vozes' mais indicados para tal façanha. O posicionamento expresso neste breve texto é o efeito da minha relação com o perspectivismo, ou seja, já é o efeito de um encontro entre conhecimentos que se deixam afetar. De nada serviria uma teoria se ela não se deixasse transformar por novas práticas de sentido. É claro, por outro lado, que a minha perspectiva sobre o perspectivismo tem um certo compromisso com os aspectos convencionais da teoria, sem os quais esta breve intervenção não faria qualquer sentido. De fato, parto do princípio de que todo perspectivismo (este e outros) são o efeito de uma 'invenção' ou 'ficção' comprometida com certas modalidades de enunciação, certas formas de saber-fazer que se impõem no ato mesmo do entendimento. O mesmo raciocínio se aplica a minha reflexão sobre o que tem se chamado na antropologia de "intersubjetividade" e aquilo que tem se denominado de "objetivismo científico". Tendo feito esta breve observação inicial, posso finalmente seguir meu caminho.

A noção de "intersubjetividade" tem diversos desdobramentos, mas pode ser descrita, de uma forma geral, como uma prática de conhecimento que envolve a relação entre dois sujeitos. O efeito ou resultado dessa relação é de caráter "intersubjetivo", pois se constitui na intersecção entre sujeitos de conhecimento que compartilham uma única Natureza. De fato, a "intersubjetividade" emerge como um aspecto complementar à "objetividade", onde a relação é entre um sujeito que conhece e um objeto de conhecimento. Mas essa intersecção se dá dentro de um mesmo parâmetro de referência: a ontologia naturalista. A crença de que existem práticas de sentido que envolvem a relação entre dois ou mais sujeitos não entra em contradição com a ideia de que esses sujeitos compartilham ou vivem em um único Mundo (a Natureza), muito menos a suposição de que o conhecimento sobre esse Mundo (que é anterior as práticas de sentido) deve implicar na anulação das influências subjetivas sobre o objeto que se conhece. Assim como a "interculturalidade" pressupõe o encontro entre duas culturas no âmbito de uma única Natureza, a intersubjetividade parte do mesmo pressuposto naturalista. Quando afirmamos que dois sujeitos estão em relação, não partimos do pressuposto de que esses sujeitos vivem em mundos diferentes: a diferença entre um e outro é de ordem epistemológica e não, de ordem ontológica.   

Partindo desse pressuposto analítico, podemos identificar ou descrever a existência de "surtos rizomáticos" que  percorrem a ontologia naturalista. Isso ocorre, por exemplo, no objetivismo científico sempre que a relação com o "objeto" de conhecimento se desloca para uma relação entre sujeitos (mesmo que esse deslocamento ocorra no campo da informalidade).

Mas será que podemos denominar essas erupções "intersubjetivas" no campo do objetivismo científico e da ontologia naturalista como a emergência de práticas perspectivistas? Acredito que não, pelos menos não sem colocar a criança fora com a água do banho. Ao transformar relações intersubjetivas em relações de caráter perspectivista promovemos, simultaneamente, uma descaracterização da intersubjetividade e do próprio perspectivismo. A meu ver, ao confundir uma coisa com a outra acabamos por perder a potencialidade de ambas.

O perspectivismo ameríndio não parte do pressuposto de que as práticas de sentido envolvem dois sujeitos que compartilham uma única Natureza, mas de subjetividades constituídas a partir de diferentes naturezas . Não se trata, portanto, de afirmar que a relação de conhecimento entra a onça e homem é de natureza intersubjetiva, ou seja, envolve dois sujeitos que entram em relação. A relação não se dá (unicamente) entre duas subjetividades (ou culturas) que entram em relação (o que poderíamos denominar de "interculturalidade"), mas entre corpos distintos do ponto de vista de suas habilidades e afecções, o que acaba resultando em um encontro de diferentes naturezas-culturas. Mas para não me tornar vago ou impreciso, vou recorrer a um pequeno trecho que reflete bastante a ideia descrita aqui:

"A teoria perspectivista ameríndia está de fato supondo uma multiplicidade de representações sobre o mesmo mundo? Basta considerar o que dizem as etnografias, para perceber que é o exato inverso que se passa: todos os seres vêem ('representam') o mundo da mesma maneira - o que muda é o mundo que eles vêem. (...) Só poderia ser assim, pois, sendo gente em seu próprio departamento, os não-humanos vêem as coisas como 'a gente' vê. Mas as coisas que eles vêem são outras: o que para nós é sangue, para o jaguar é cauim; o que para as almas dos mortos é um cadáver podre, para nós é mandioca pubando. (...) O perspectivismo não é um relativismo, mas um multinaturalismo. O relativismo cultural, um multiculturalismo, supõe uma diversidade de representações subjetivas e parciais, incidentes sobre uma natureza externa, una e total, indiferente à representação; os ameríndios propõe o oposto: uma unidade representativa ou fenomenológica puramente prenominal, aplicada indiferentemente sobre uma diversidade real. Uma só 'cultura', múltiplas 'naturezas'; epistemologia constante, ontologia variável" (Viveiros de Castro, 2002, p. 378-79).

De uma forma um tanto geral (bastante apropriada para este suporte informativo), o perspectivismo não implica o pressuposto de que a relação de conhecimento se dá entre dois sujeitos (ou culturas) que habitam uma única Natureza ("representada" pela linguagem de forma diferente), mas entre diferentes naturezas. O mundo experienciado pelo Jaguar é tão real e possível quanto o mundo vivenciado pelos homens e são esses diferentes mundos que entram em relação de conhecimento através da mediação (enquanto tradução) realizada pelo pajé. O ponto de vista constitui o sujeito e não o contrário. Não se trata do encontro ou confronto entre duas formas de representar uma mesma Natureza, pois, diferente da intersubjetividade, o perspectivismo se encontra para além (ou aquém) do monismo ontológico do naturalismo moderno-ocidental. No lugar de um único mundo (ou Natureza) e múltiplas culturas, o perspectivismo pressupõe a existência de múltiplas naturezas e uma única cultura (ou epistemologia).

Mas se o perspectivismo não pode ser traduzido como "intersubjetividade", esta última também não pode ser apresentada ou descrita como uma espécie de "perspectivismo", pelo menos não sem definirmos que o perspectivismo na ciência assume outro sentido. Afinal, apesar dos pesquisadores - eventualmente e na informalidade - lidarem com animais, plantas e outros fenômenos como "sujeitos" (repare as aspas aqui), eles fazem isso dentro (e não fora) da ontologia naturalista: trata-se de sujeitos que vivem em um único Mundo ou Natureza, mas que representam (na mente) esse mundo de forma diferenciada. Inclusive, é o reconhecimento dessa diferença epistemológica que leva a necessidade de classificarmos ou julgarmos as diferentes "visões de mundo" (humanas e não-humanas) como mais ou menos objetivas (ou subjetivas). O animal de laboratório que recebe um nome e uma história não vive em outro mundo. Apesar dele perceber as coisas de uma forma diferente do pesquisador, essa diferença é pensada pelo cientista como o efeito de uma subjetividade que constitui um determinado ponto de vista sobre uma realidade que é anterior às práticas de sentido. Mesmo quando o cientista transforma o animal em um 'sujeito' (não-humano) que vê o mundo de uma forma diferente (outras lentes, outras percepções), o mundo que ele vê é o mesmo do cientista. Diante disso, a visão do animal pode ser relativizada ou explicada pelo cientista, não importa, pois no máximo será alçada a uma "visão de mundo". O "desvio" da atenção se dá para 'dentro' e não para 'fora' da ontologia naturalista. Neste caso, as diferentes perspectivas ou visões são de ordem epistêmica: um único objeto é abordado a partir de diferentes linguagens epistemológicas. Inclusive, essa forma de entender a alteridade no campo do saber tem sido amplamente criticada pela ontologia política, que parte do pressuposto de que diferentes práticas de conhecimento dão origem a diferentes objetos.

O próprio objetivismo científico não se constitui a partir de uma anulação da subjetividade dos pesquisadores, mas a partir da 'educação' dessa subjetividade, permitindo que ela se manifeste de forma ordenada e disciplinada ou então em momentos específicos (os "diários biográficos", por exemplo). Afinal, as ciências moderno-ocidentais não se caracterizam unicamente pelas práticas de purificação, mas também pelo ordenamento e distribuição das práticas de mistura e hibridização. Esses dois movimentos, de fato, não são contraditórios ou conflituosos, mas complementares. O objetivismo enquanto prática de conhecimento não pressupõe a anulação do sujeito de conhecimento, mas a constituição (através do treinamento disciplinar) de uma determinada subjetividade.

Quando abordamos o fenômeno do "objetivismo científico" não como um reflexo da retórica oficial da ciência, mas como um conjunto de pressupostos ontológicos que orientam as prática de conhecimento dos cientistas (o aspecto oficioso do objetivismo), percebemos que a objetividade não se dá a partir de uma anulação ou neutralização da subjetividade dos pesquisadores, mas, sim, a partir do treinamento de sujeitos constituídos por essas práticas de conhecimento. Não existe, portanto, um Grande Divisor que coloca sujeitos de um lado e objetos de outro. Sujeitos só existem devido a sua relação com objetos (e vice-versa). O objetivismo (na prática) envolve desde sempre a disciplinarização do sujeito que conhece e, através desta "educação da atenção" (no sentido que James Gibson dá a esse termo), constitui sua subjetividade científica. Sobre isso, inclusive, é importante citar os estudos na área de epistemologia e ontologia histórica, como os escritos de Ian Hacking, Daston e Galison.

Afinal, o que ganhamos ou perdemos ao traduzir as práticas intersubjetivas do pesquisador como "perspectivismo"? Perdemos a oportunidade de entender a potencialidade dessas duas modalidades ontológicas de conhecimento, descaracterizando-as a partir de um compromisso com um ideal de "simetria" que, de fato, tem muito pouco haver com a antropologia simétrica. Afinal, a simetria é um princípio epistemológico que é anterior à análise: trata-se, em linhas gerais, de levar a sério tanto o objetivismo científico como o perspectivismo ameríndio, mas sem diluir as diferenças existentes entre essas duas formas de conhecer a alteridade. Além do mais, ao traduzir a "intersubjetividade" sob a lente do perspectivismo fazemos exatamente aquilo que um etnógrafo da ciência não deveria fazer, ou seja, neutralizar a fala e o pensamento dos seus nativos ao interpretar o que eles 'realmente' estão dizendo quando dizem o que estão dizendo.  A mesma afirmação pode ser feita em relação ao etnólogo que interpreta a fala dos índios pelo viés de seus próprios pressupostos, traduzindo suas afirmações a partir de um contexto semântico e conceitual que lhe é inteiramente externo, descrevendo suas práticas de conhecimento como "intersubjetivas". Afinal, ao invés de "interpretarmos" a intersubjetividade dos cientistas como uma forma muito específica de perspectivismo - ou o perspectivismo como uma forma específica de intersubjetividade - deveríamos levar as afirmações e pressupostos dos nativos (sejam eles cientistas ou não-cientistas) até as últimas conseqüências, experimentando a sua linguagem conceitual como uma forma de evocação de um mundo possível e não como uma forma de representação de uma Natureza anterior às práticas de conhecimento.

Deixar-se afetar pelos pressupostos ontológicos do perspectivismo implica em conceber a ideia de que existem múltiplas verdades, da mesma forma que existe múltiplos mundos lá fora. O segundo passo seria projetar esse princípio de multiplicidade ontológica (que surge de uma desestabilização provocada por práticas de conhecimento que estão além do grande divisor moderno entre Natureza e Cultura) para as práticas de conhecimento científicas, um caminho aberto recentemente nos estudos da ciência pela abordagem da ontologia política. Mas, neste caso, não se trata de entender a "intersubjetividade" enquanto "perspectivismo científico", mas de abordar as múltiplas práticas de objetivação científica como "multiplicidade ontológica", o que resulta em abandonar de vez o paradigma da linguagem enquanto representação, adotando uma perspectiva que entende a fala como prática de evocação. Com isso, a palavra deixa de representar um Mundo anterior às práticas de sentido, e passa a indicar a sua presença enquanto modo de enunciação.

De fato, ao colocar em relação a intersubjetividade e o perspectivismo, precisamos reconhecer as diferenças existentes entre essas formas distintas de Ser-no-Mundo, explorando os contrastes existentes entre linguagens conceituais e pressupostos ontológicos diferenciados. É somente com o reconhecimento explícito dessa "Alteridade Ontológica" que poderíamos projetar um cenário onde o perspectivismo e o objetivismo científico se deixam afetar, transformando-se mutuamente. Esse 'deixar-se afetar" não pode ser confundido com 'tornar igual' coisas diferentes, pois estamos diante de um movimento que permite iluminar as particularidades que constituem a diferença na relação.        

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Violência e Conflito no Setor Noroeste

A especulação imobiliária em Brasília é uma das maiores do Brasil. O metro quadrado na capital federal é o mais caro de todo território nacional, chegando próximo à faixa dos R$ 8 mil. Um fator peculiar associado ao mercado imobiliário local é a sua associação com o poder público, tendo em vista que o valioso território federal é comercializado por uma empresa estatal. Não é preciso ser vidente para imaginar a histórica troca de interesses entre o governo e as construtoras e empresas imobiliárias. Só para se ter uma ideia, o ex-vice-governador do DF é um dos maiores empresários do setor imobiliário, sem falar que a TERRACAP sempre foi utilizada como instrumento de capitalização política e eleitoral. A conivência entre poder público e mercado imobiliário é um fato reconhecido por todos, até mesmo pelos próprios governantes.

O Setor Noroeste está localizado dentro de uma área de proteção ambiental, com rica fauna e flora local. Essa área foi cedida pelo governo do distrito federal para a construção de um luxuoso bairro de classe média, evidenciando uma situação de total irregularidade jurídica.

Para piorar ainda mais a situação, nas proximidades da região existe uma comunidade indígena habitada por índios da etnia Fulni-ô, pelo menos desde o final da década de 1950. O fundador da comunidade veio para Brasília para contribuir para a sua construção e acabou ficando por aqui, como muitos outros trabalhadores. A partir da década de 1970, índios das etnia Tuxá e Fulni-ô foram morar no local, estabelecendo com os primeiros moradores uma comunidade multiétnica, conforme aponta o laudo antropológico. Além de manter um valioso trabalho de cultivo e uso de plantas medicinais do cerrado, os índios que vivem no local têm uma intensa vida cerimonial, reproduzindo seus costumes tradicionais em festas e outras atividades correlatas. Eles também colaboram para a preservação do meio ambiente e recebem índios de outras etnias de passagem por Brasília. O território já foi reconhecido pelo parecer de um antropólogo, que evidenciou a área como de ocupação tradicional indígena.

Com isso, há alguns anos teve início uma fervorosa disputa judicial entre a Emplavi, empresa responsável pela construção da obra, e a comunidade indígena que vive na área. Apesar do processo ainda estar tramitando na justiça - o que implica na paralisação da obra até que a questão seja julgada - no último dia 03 as empreiteiras tentaram dar início à construção das habitações. Esse fato deu origem a um conflito aberto entre os seguranças da empreiteira e os índios e seus aliados (estudantes, advogados, jornalistas e antropólogos). A situação no local está tensa e a comunidade indígena corre sério risco de vida diante dos constantes ataques de milicianos e seguranças contratados pelas empresas.

O link abaixo é de um documentário que esclarece o contexto do conflito em detalhes, uma realização do Centro de Mídia Independente (CMI).

http://vimeo.com/28597529

Acesse neste link a nota da Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de antropologia, que esclarece em detalhes a situação do laudo antropológico da área:

http://www.abant.org.br/news/show/id/158

O vídeo abaixo reproduz a gravação de uma entrevista com o antropólogo José Jorge de Carvalho (UnB), que tem acompanhado de perto o conflito na região:


Como o acontecimento tem sido ignorado pelos meios de comunicação de Brasília, espero que este post contribua para divulgar a irregularidade jurídica e os interesses econômicos por trás de uma situação de conflito criada pela ganância e irresponsabilidade dos nossos governantes. Se você vive em Brasília e é contrário à construção do Setor Noroeste, manifeste sua opinião, divulgue o fato entre amigos e familiares, entre em contato com seus representantes políticos e exija deles um posicionamento sobre a questão.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O 'Povo" Vs. Wall Street

Homens e mulheres de todas as idades, profissionais liberais e trabalhadores desempregados - vítimas do investimento do alto capital de risco e da especulação imobiliária que deu origem à crise econômica norte-americana - acamparam no centro econômico mundial para protestar contra as injustiças de um sistema econômico e político que tem gerado desemprego e sofrimento para a maior parte da população. O movimento centralizou suas forças em um lugar localizado a poucos metros do "Marco Zero", onde barracas e barricadas foram levantadas e comitês foram formados, tudo de forma autônoma. Eles são provenientes de diferentes regiões do país, pessoas comuns que perderam tudo devido à irresponsabilidade de uma dezena de empresários e especuladores financeiros: professores universitários e estudantes das mais diferentes áreas do conhecimento, trabalhadores, músicos, ativistas, políticos e artistas. Nas praças e ruas de Nova Iorque encontramos gente 'comum', cidadãos de uma sociedade em crise, pessoas que não suportam mais viver em um mundo que não oferece qualquer perspectiva positiva. O grito de 'ocupação de Wall Street" é o efeito político de um contexto de inversão de valores éticos, onde as pessoas já começam a perceber que a 'crise' econômica é, de fato, o reflexo de uma crise moral de caráter estrutural (e estruturante). No mundo das grandes corporações e multinacionais do setor financeiro, os valores humanos e sociais são submetidos aos efeitos da ganância de uma uma elite de magnatas que "jogam" diariamente com as vidas de milhões de pessoas.    

O movimento teve origem nas redes sociais, a partir de uma convocatória para um protesto contra Wall Street, denominado de "Occupy Wall Street". Mobilizados por interesses comuns, coletivos civis foram estabelecidos da noite para o dia, transformando-se rapidamente em células autônomas de grande mobilidade política. Sem um centro de dispersão ou hierarquia de mando instituída, as pessoas simplesmente começaram a ocupar praças e ruas, trazendo consigo cartazes e bandeiras, preparados para ficar "o tempo necessário". Em poucos dias a notícia se espalhou e o protesto recebeu o apoio de intelectuais famosos, artistas e outras personalidades públicas, que se manifestaram na internet a favor do movimento. O que era para ser uma pequena e passageira manifestação se transformou rapidamente em uma mobilização política de grandes proporções, que encontrou adeptos em outras metrópoles, como Tóquio, Londres e Paris. As pessoas ocuparam as ruas com seus cartazes, denunciando o desmando e a irresponsabilidade das elites  financeiras mundiais e dos governantes.

Em pouco tempo, uma ação política localizada deu origem a múltiplos focos descentralizados de manifestação no mundo inteiro, formando nódulos em redes de protesto de extensão global. Seguindo a mesma lógica de organização das mobilizações políticas que varreram o oriente médio a poucos meses atrás, a internet forneceu o suporte de comunicação que permitiu a rápida dispersão das informações em diferentes regiões dos Estados Unidos e do mundo. Sem necessidade de organização planejada e estrutura hierárquica, as células se multiplicam com rapidez impressionante. Os rizomas brotaram e se multiplicaram a partir de uma crise generalizada que atingiu hastes duras e tradicionais, como a família e o emprego.            

E não se trata de uma mobilização partidária, apesar de todos possuírem seus respectivos partidos e opções políticas, muitas vezes divergentes. Mas apesar das diferenças entre os manifestantes, todos concordam que a crise econômica mundial é o resultado da ganância e da irresponsabilidade de uma elite econômica que tem gerado grandes prejuízos às pessoas "comuns", que sustentam o capitalismo no dia a dia enquanto consumidores de produtos e bens de consumo.  

Nos Estados Unidos, conforme ouvi de amigos que vivem lá, existe um sentimento compartilhado por todos de que "as coisas não estão indo bem", principalmente, devido a uma crise ética que domina a política e a economia desse país. As altas taxas de desemprego atingiram um nível insuportável. A crise abalou um dos pilares fundamentais do sistema capitalista: o círculo existente entre trabalho, liberdade e consumo. Diante de um contexto político tenso, marcado pela aproximação das próximas eleições presidenciais, as pessoas começam a perceber que as lideranças partidárias estão mais preocupadas em garantir seus domínios eleitorais do que em buscar soluções para superar a crise econômica. As expectativas projetadas sobre Obama não surtiram os resultados esperados e o sentimento geral é de que alguma coisa se perdeu no caminho. Por outro lado, os republicanos buscam, mais uma vez, impor sobre a sociedade um "clima de terror", baseado na desinformação. Ao analisarmos a história econômica e política mais recente dos Estados Unidos, é fácil perceber que a crise financeira e o desemprego são heranças de um regime 'terrorista' representado na figura de G. Bush, cuja base de sustentação sempre foi a elite financeira nacional (e internacional). A situação econômica norte-americana deve ser analisada sob a perspectiva histórica e não-imediatista, sem sensacionalismo e revanchismos partidários.

Diante de um contexto tão negativo, onde o prisma político não oferece alternativas promissoras de mudança, a solução que o povo encontrou foi sair as ruas para protestar contra uma situação que parece 'fora de controle'. O improviso e a descentralização do processo decisório foram fundamentais para a rápida dispersão das mobilizações em diferentes regiões. Essa multiplicação das manifestações políticas acabou por romper com o 'velamento' midiático que estava sendo imposto sobre os primeiros protestos.

Em uma cena que circulou as redes sociais do mundo inteiro, uma menina de dez anos segura um cartaz onde é possível ler: "devolva ao povo o poder de mudar o mundo!". Apesar de muitas pessoas criticarem o movimento "Occupy Wall Street" pela falta de clareza no que se refere às demandas e propósitos da manifestação (uma de suas principais potencialidades), não resta dúvida que o cidadão comum está insatisfeito com os rumos que a política e a economia norte-americana tomou nas últimas décadas e julga que uma das principais razões que deram origem a essa deplorável situação foi a total irresponsabilidade da elite financeira, preocupada unicamente em garantir suas altas taxas de lucro, mesmo que para isso seja necessário levar o restante da nação à falência.

O ato de ir as ruas protestar reflete o sentimento geral de indignação diante da atitude dos governantes, que privilegiam às brigas partidárias em detrimento da busca por soluções concretas. Enquanto os republicanos acusam os democratas de não conseguir superar a crise econômica nacional (apesar de não terem colaborado nem um pouco para tal propósito), os democratas buscam relembrar a população que a "crise" foi uma herança maldita da política republicana, que sempre privilegiou o "Grande Capital" em detrimento da 'economia popular'. Diante da guerra de acusações republicanas e democratas, o povo vai as ruas sem ver qualquer perspectiva positiva de superação da atual crise através do meio eleitoral.

Diante deste contexto, é saudável imaginar que estamos diante dos primeiros focos de emergência de um novo estilo de fazer política, identificado com os princípios de uma 'democracia direta' e com valores como autonomia, descentralização e liberdade de expressão civil e a-partidária.

"O Povo Vs. Wall Street" é um clássico dos tempos atuais e parece refletir essa tendência global.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Os "Acumuladores": reflexões sobre a sociedade de consumo


A série de TV "Os Acumuladores" aborda pessoas obcecadas em acumular objetos. A cada semana são apresentados dois casos "críticos" de "acumuladores" que vivem no meio de milhares de objetos adquiridos durante a vida: presentes de amigos, utensílios de uso diário, roupas, documentos, revistas, livros, calçados, carros, eletrodomésticos, e tudo que pode ser acumulado durante dezenas de anos. A quantidade e variedade de coisas que são acumuladas é tão grande que os próprios acumuladores não sabem tudo que possuem. Os objetos se misturam de maneira caótica e desordenada, formando montanhas intransponíveis de bugigangas de toda espécie. A situação é tão grave que, após certo tempo, os próprios acumuladores já não conseguem encontrar suas coisas. Os objetos vão ficando uns por cima dos outros, formando divisórias em quartos e salas, invadindo o banheiro, a garagem, a cozinha e até mesmo o quarto de dormir. Em algumas situações, fica difícil alcançar certos lugares do ambiente, que deixam de ser habitados, tornando-se verdadeiros depósitos.  

Segundo os psicólogos que estudam o fenômeno, esse comportamento tem origem numa espécie de "bloqueio psicológico" que impede os acumuladores de se desfazer de coisas adquiridas durante a vida. Em sociedades de alto consumo, como os Estados Unidos (todos os casos apresentados no documentário são de norte-americanos), as pessoas geralmente adquirem centenas de objetos todos os anos. Na maioria dos casos, esses objetos são dispensados quando outros são adquiridos, passando a circular por redes informais até acabarem esquecidos no fundo de algum lixão urbano. O problema dos "acumuladores" é que eles rompem com essa dinâmica, pois são incapazes de se livrar das coisas adquiridas, acumulando-as durante uma vida inteira.

O mais interessante é que o programa mostra a incapacidade dessas pessoas de se livrarem de suas coisas, mesmo quando contam com a ajuda de um psicólogo que busca conscientizá-las dessa necessidade. Quando a vítima passa a selecionar, classificar e distribuir os objetos de forma a poder se livrar de alguns deles, podemos ver o seu sofrimento e perplexidade diante da necessidade de escolher o que é ou não descartável. Algumas vivem em casas ou apartamentos completamente abarrotados de objetos de todos os tipos, de forma a impossibilitar ou dificultar a circulação no ambiente. Quando o hábito de acumular atinge solteiros ou casais, a situação pode ser manejada por certo tempo. Mas quando a "doença" ataca apenas uma pessoa, o hábito de acumular acaba afetando a relação com familiares e amigos. "Todos acabam se afastando assim que descobrem", disse um dos acumuladores retratados no programa. Em um dos casos mostrados na TV, por exemplo, a esposa acabou se separando do marido por não conseguir mais lidar com a situação. E olha que eles já haviam tentado de tudo, como morar em casas diferentes e etc. Em situações como essa, o sofrimento e a incapacidade de se livrar dos objetos fica mais evidente ainda, pois as vítimas tentam se livrar das coisas sem obter qualquer sucesso. Elas simplesmente não conseguem se livrar de nada. Tudo pode ter utilidade algum dia, nunca se sabe. Outros artefatos possuem um valor sentimental: um presente que relembra um aniversário; uma carta que marca um período específico da vida; o terno usado no primeiro dia de trabalho e outras tantas razões semelhantes. Essas pessoas se acostumam de tal forma a conviver com esses bens, que a ideia de se separar deles se torna inconcebível. Alguns acumuladores chegam a adoecer quando se livram dos objetos.    

O caso mais conhecido é de dois irmãos que foram encontrados mortos em um apartamento do Harlem, em Nova Iorque, em 1947. Os homens foram soterrados por milhares de objetos acumulados durante décadas. Havia tanta coisa no apartamento, que os objetos formavam divisórias, dando origem a túneis subterrâneos usados para se deslocar no local. A situação foi manejada até o desmoronamento de uma das tantas divisórias "artificiais", quando eles foram soterrados e morreram asfixiados. O fato só foi descoberto dias depois, quando os vizinhos notaram o mal cheiro que provinha do apartamento devido à decomposição dos corpos.

O capitalismo é um "fato social total", no sentido que Mauss dá a essa noção. Um dos seus efeitos é criar subjetividades (ou sujeitos) constituídos "em extensão" com os artefatos que conseguem acumular durante uma vida inteira de consumo cotidiano. É claro que todos nós, certamente, somos constituídos através da relação que estabelecemos, entre outras coisas, com artefatos e aparelhos com os quais convivemos durante nossa vida (além de pessoas, eventos e etc.). Independentemente da forma como esses objetos são adquiridos ou utilizados, eles possuem um valor em nossas vidas. A questão é que esse valor é renovado quando colocamos os objetos velhos e mofados para circular, obtendo outros em seu lugar. Existem coisas que são substituíveis por outras da mesma ordem. Quando compramos um sapato novo é muito comum nos livrarmos daquele calçado velho que já não usamos mais. O mesmo ocorre com outros bens de consumo, como automóveis, roupas e outros objetos pessoais. Sem falar nas coisas que consumimos diariamente, como alimentos e produtos de higiene pessoal. Essa substituição implica no ato de "livrar-se" das coisas que já não servem mais. Mas esse desfazer-se das coisas velhas nem sempre é assim tão simples, pois as pessoas criam vínculos sentimentais com suas coisas. Mas, na maioria das vezes, esse vinculo é projetado apenas em objetos "especiais", que são guardados com "carinho". Os demais são constantemente descartados e passam a circular por outras redes, até o momento em que são abandonados definitivamente e viram "lixo".

Mesmo nessa etapa final da "vida" das coisas, elas ainda podem ser reaproveitadas ou transformadas em outros artefatos, como ocorre com o papel, o plástico e o vidro reciclável. Outras coisas que não são recicladas, no entanto, se decompõem embaixo da terra durante séculos ou milênios. Inclusive, um dos maiores problemas ambientais dos grandes centros urbanos é a quantidade de lixo gerada por uma população de consumidores compulsivos. As substâncias químicas presentes nesses dejetos se infiltram no solo, atingindo os lenções freáticos ou percorrendo canais em direção aos rios e lagos. Mas engana-se quem acredita que o problema do lixo é uma questão unicamente terrestre. A NASA está investindo bilhões de dólares para desenvolver uma tecnologia que possibilite a eliminação do "lixo espacial": dezenas de satélites e outros artefatos tecnológicos  que foram abandonados e que circulam em velocidades altíssimas em torno do planeta.      

Nas sociedades capitalistas o consumo é mais intenso e, com isso, a circulação assume uma dinâmica distinta, criando uma "tensão" entre a vontade de adquirir novos produtos e a necessidade de se livrar de outros devido à limitação de espaço. Muitas vezes, o aumento do patrimônio móvel de uma família pode ser a sua principal motivação para adquirir uma casa mais ampla, com mais espaço para armazenar bens de consumo. Mas em países de alta renda, a lógica é aumentar o ritmo de substituição, desfazendo-se mais rápido das coisas. Em alguns países, como os Estados Unidos e o Japão, as pessoas usam as roupas uma única vez e depois se livram delas, como se fossem descartáveis. Há alguns anos atrás li uma notícia sobre os objetos encontrados diariamente no lixo de Tóquio: computadores, televisores, telefones, celulares e outros artefatos tecnológicos. Mas o mais interessante é que não havia nada de errado com os aparelhos, que estavam funcionando perfeitamente. Esse descarte de objetos novos ocorre porque outros produtos são lançados no mercado diariamente. Foi assim com o velho e bom vinil, com o vídeo-cassete, o computador de "última geração", o "carro do ano" (passado) e outros tantos artefatos tecnológicos que foram substituídos por aparelhos mais novos. Essa reprodução dos objetos, inclusive, está se tornando cada vez mais intensa. Mal adquirimos a última geração de "MP3" e o "MP4" já foi lançado no mercado. Conforme demonstrou Sahlins em um artigo clássico sobre esse tema - "La Pensée Bourgeoise: a sociedade ocidental enquanto cultura" - as mercadorias possuem um valor relativo, pois estão integradas em um sistema de objetos mais amplo. Quando novos produtos são lançados no mercado, os antigos são re-valorizados, tornando-se obsoletos.          

O caso dos "acumuladores" é um fenômeno contemporâneo produzido em sociedade. Essas pessoas não são "anomalias" sem sentido, mas produções de uma cultura que possui no consumo de artefatos  sua dinâmica fundamental. As causas ou razões que levam a esse distúrbio não são unicamente 'individuais', como um desvio de conduta ou uma falha cognitiva ou psicológica; mas, sim, fenômenos coletivos que revelam uma lógica subjacente ao uso e a circulação de objetos no mundo do consumo. Ao romper com a dinâmica de circulação de coisas e artefatos vigente em sociedades capitalistas, os "acumuladores" se tornam casos expressivos da lógica vigente nessas mesmas sociedades, onde os objetos constituem os sujeitos tanto quanto os sujeitos constituem os objetos.      

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Sobre o 3º REACT e Tim Ingold...

Conforme foi relatado por colegas que participaram diretamente do evento, a 3ª Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (REACT), realizada em Brasilia entre os dias 30/09 e 01/10, foi um verdadeiro sucesso. Nesse período, participei de um concurso público e tive que viajar à trabalho . Com isso, infelizmente, não foi possível participar dos debates, assistir a apresentação dos trabalhos e colaborar mais diretamente na organização do encontro. Também não consegui chegar a tempo para apresentar o meu trabalho sobre "pesquisador indígenas no Alto Rio Negro", um tema abordado em um artigo que pretendo enviar para publicação até o final deste ano (sobre esse tema, volto a falar em outra postagem).

De qualquer forma, fico feliz em saber que o encontro foi um sucesso, mérito inquestionável do pessoal que colocou a mão na massa, tornando a ideia do encontro uma realidade. Eventos como este são extremamente importante para ampliar e solidificar as redes de trabalho estabelecidas em torno desta emergente área do saber antropológico e etnográfico: a antropologia da ciência e da tecnologia.

Também perdi a oportunidade de assistir "ao vivo" a palestra de encerramento do evento, proferida pelo antropólogo britânico Tim Ingold. Felizmente, a sua fala foi gravada em vídeo e está disponível no "YouTube" (assistir no link abaixo):

  

 
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