Partindo desse pressuposto analítico, podemos identificar ou descrever a existência de "surtos rizomáticos" que percorrem a ontologia naturalista. Isso ocorre, por exemplo, no objetivismo científico sempre que a relação com o "objeto" de conhecimento se desloca para uma relação entre sujeitos (mesmo que esse deslocamento ocorra no campo da informalidade).
Mas será que podemos denominar essas erupções "intersubjetivas" no campo do objetivismo científico e da ontologia naturalista como a emergência de práticas perspectivistas? Acredito que não, pelos menos não sem colocar a criança fora com a água do banho. Ao transformar relações intersubjetivas em relações de caráter perspectivista promovemos, simultaneamente, uma descaracterização da intersubjetividade e do próprio perspectivismo. A meu ver, ao confundir uma coisa com a outra acabamos por perder a potencialidade de ambas.
O perspectivismo ameríndio não parte do pressuposto de que as práticas de sentido envolvem dois sujeitos que compartilham uma única Natureza, mas de subjetividades constituídas a partir de diferentes naturezas . Não se trata, portanto, de afirmar que a relação de conhecimento entra a onça e homem é de natureza intersubjetiva, ou seja, envolve dois sujeitos que entram em relação. A relação não se dá (unicamente) entre duas subjetividades (ou culturas) que entram em relação (o que poderíamos denominar de "interculturalidade"), mas entre corpos distintos do ponto de vista de suas habilidades e afecções, o que acaba resultando em um encontro de diferentes naturezas-culturas. Mas para não me tornar vago ou impreciso, vou recorrer a um pequeno trecho que reflete bastante a ideia descrita aqui:
"A teoria perspectivista ameríndia está de fato supondo uma multiplicidade de representações sobre o mesmo mundo? Basta considerar o que dizem as etnografias, para perceber que é o exato inverso que se passa: todos os seres vêem ('representam') o mundo da mesma maneira - o que muda é o mundo que eles vêem. (...) Só poderia ser assim, pois, sendo gente em seu próprio departamento, os não-humanos vêem as coisas como 'a gente' vê. Mas as coisas que eles vêem são outras: o que para nós é sangue, para o jaguar é cauim; o que para as almas dos mortos é um cadáver podre, para nós é mandioca pubando. (...) O perspectivismo não é um relativismo, mas um multinaturalismo. O relativismo cultural, um multiculturalismo, supõe uma diversidade de representações subjetivas e parciais, incidentes sobre uma natureza externa, una e total, indiferente à representação; os ameríndios propõe o oposto: uma unidade representativa ou fenomenológica puramente prenominal, aplicada indiferentemente sobre uma diversidade real. Uma só 'cultura', múltiplas 'naturezas'; epistemologia constante, ontologia variável" (Viveiros de Castro, 2002, p. 378-79).
De uma forma um tanto geral (bastante apropriada para este suporte informativo), o perspectivismo não implica o pressuposto de que a relação de conhecimento se dá entre dois sujeitos (ou culturas) que habitam uma única Natureza ("representada" pela linguagem de forma diferente), mas entre diferentes naturezas. O mundo experienciado pelo Jaguar é tão real e possível quanto o mundo vivenciado pelos homens e são esses diferentes mundos que entram em relação de conhecimento através da mediação (enquanto tradução) realizada pelo pajé. O ponto de vista constitui o sujeito e não o contrário. Não se trata do encontro ou confronto entre duas formas de representar uma mesma Natureza, pois, diferente da intersubjetividade, o perspectivismo se encontra para além (ou aquém) do monismo ontológico do naturalismo moderno-ocidental. No lugar de um único mundo (ou Natureza) e múltiplas culturas, o perspectivismo pressupõe a existência de múltiplas naturezas e uma única cultura (ou epistemologia).
Mas se o perspectivismo não pode ser traduzido como "intersubjetividade", esta última também não pode ser apresentada ou descrita como uma espécie de "perspectivismo", pelo menos não sem definirmos que o perspectivismo na ciência assume outro sentido. Afinal, apesar dos pesquisadores - eventualmente e na informalidade - lidarem com animais, plantas e outros fenômenos como "sujeitos" (repare as aspas aqui), eles fazem isso dentro (e não fora) da ontologia naturalista: trata-se de sujeitos que vivem em um único Mundo ou Natureza, mas que representam (na mente) esse mundo de forma diferenciada. Inclusive, é o reconhecimento dessa diferença epistemológica que leva a necessidade de classificarmos ou julgarmos as diferentes "visões de mundo" (humanas e não-humanas) como mais ou menos objetivas (ou subjetivas). O animal de laboratório que recebe um nome e uma história não vive em outro mundo. Apesar dele perceber as coisas de uma forma diferente do pesquisador, essa diferença é pensada pelo cientista como o efeito de uma subjetividade que constitui um determinado ponto de vista sobre uma realidade que é anterior às práticas de sentido. Mesmo quando o cientista transforma o animal em um 'sujeito' (não-humano) que vê o mundo de uma forma diferente (outras lentes, outras percepções), o mundo que ele vê é o mesmo do cientista. Diante disso, a visão do animal pode ser relativizada ou explicada pelo cientista, não importa, pois no máximo será alçada a uma "visão de mundo". O "desvio" da atenção se dá para 'dentro' e não para 'fora' da ontologia naturalista. Neste caso, as diferentes perspectivas ou visões são de ordem epistêmica: um único objeto é abordado a partir de diferentes linguagens epistemológicas. Inclusive, essa forma de entender a alteridade no campo do saber tem sido amplamente criticada pela ontologia política, que parte do pressuposto de que diferentes práticas de conhecimento dão origem a diferentes objetos.
O próprio objetivismo científico não se constitui a partir de uma anulação da subjetividade dos pesquisadores, mas a partir da 'educação' dessa subjetividade, permitindo que ela se manifeste de forma ordenada e disciplinada ou então em momentos específicos (os "diários biográficos", por exemplo). Afinal, as ciências moderno-ocidentais não se caracterizam unicamente pelas práticas de purificação, mas também pelo ordenamento e distribuição das práticas de mistura e hibridização. Esses dois movimentos, de fato, não são contraditórios ou conflituosos, mas complementares. O objetivismo enquanto prática de conhecimento não pressupõe a anulação do sujeito de conhecimento, mas a constituição (através do treinamento disciplinar) de uma determinada subjetividade.
Quando abordamos o fenômeno do "objetivismo científico" não como um reflexo da retórica oficial da ciência, mas como um conjunto de pressupostos ontológicos que orientam as prática de conhecimento dos cientistas (o aspecto oficioso do objetivismo), percebemos que a objetividade não se dá a partir de uma anulação ou neutralização da subjetividade dos pesquisadores, mas, sim, a partir do treinamento de sujeitos constituídos por essas práticas de conhecimento. Não existe, portanto, um Grande Divisor que coloca sujeitos de um lado e objetos de outro. Sujeitos só existem devido a sua relação com objetos (e vice-versa). O objetivismo (na prática) envolve desde sempre a disciplinarização do sujeito que conhece e, através desta "educação da atenção" (no sentido que James Gibson dá a esse termo), constitui sua subjetividade científica. Sobre isso, inclusive, é importante citar os estudos na área de epistemologia e ontologia histórica, como os escritos de Ian Hacking, Daston e Galison.
Afinal, o que ganhamos ou perdemos ao traduzir as práticas intersubjetivas do pesquisador como "perspectivismo"? Perdemos a oportunidade de entender a potencialidade dessas duas modalidades ontológicas de conhecimento, descaracterizando-as a partir de um compromisso com um ideal de "simetria" que, de fato, tem muito pouco haver com a antropologia simétrica. Afinal, a simetria é um princípio epistemológico que é anterior à análise: trata-se, em linhas gerais, de levar a sério tanto o objetivismo científico como o perspectivismo ameríndio, mas sem diluir as diferenças existentes entre essas duas formas de conhecer a alteridade. Além do mais, ao traduzir a "intersubjetividade" sob a lente do perspectivismo fazemos exatamente aquilo que um etnógrafo da ciência não deveria fazer, ou seja, neutralizar a fala e o pensamento dos seus nativos ao interpretar o que eles 'realmente' estão dizendo quando dizem o que estão dizendo. A mesma afirmação pode ser feita em relação ao etnólogo que interpreta a fala dos índios pelo viés de seus próprios pressupostos, traduzindo suas afirmações a partir de um contexto semântico e conceitual que lhe é inteiramente externo, descrevendo suas práticas de conhecimento como "intersubjetivas". Afinal, ao invés de "interpretarmos" a intersubjetividade dos cientistas como uma forma muito específica de perspectivismo - ou o perspectivismo como uma forma específica de intersubjetividade - deveríamos levar as afirmações e pressupostos dos nativos (sejam eles cientistas ou não-cientistas) até as últimas conseqüências, experimentando a sua linguagem conceitual como uma forma de evocação de um mundo possível e não como uma forma de representação de uma Natureza anterior às práticas de conhecimento.
Deixar-se afetar pelos pressupostos ontológicos do perspectivismo implica em conceber a ideia de que existem múltiplas verdades, da mesma forma que existe múltiplos mundos lá fora. O segundo passo seria projetar esse princípio de multiplicidade ontológica (que surge de uma desestabilização provocada por práticas de conhecimento que estão além do grande divisor moderno entre Natureza e Cultura) para as práticas de conhecimento científicas, um caminho aberto recentemente nos estudos da ciência pela abordagem da ontologia política. Mas, neste caso, não se trata de entender a "intersubjetividade" enquanto "perspectivismo científico", mas de abordar as múltiplas práticas de objetivação científica como "multiplicidade ontológica", o que resulta em abandonar de vez o paradigma da linguagem enquanto representação, adotando uma perspectiva que entende a fala como prática de evocação. Com isso, a palavra deixa de representar um Mundo anterior às práticas de sentido, e passa a indicar a sua presença enquanto modo de enunciação.
De fato, ao colocar em relação a intersubjetividade e o perspectivismo, precisamos reconhecer as diferenças existentes entre essas formas distintas de Ser-no-Mundo, explorando os contrastes existentes entre linguagens conceituais e pressupostos ontológicos diferenciados. É somente com o reconhecimento explícito dessa "Alteridade Ontológica" que poderíamos projetar um cenário onde o perspectivismo e o objetivismo científico se deixam afetar, transformando-se mutuamente. Esse 'deixar-se afetar" não pode ser confundido com 'tornar igual' coisas diferentes, pois estamos diante de um movimento que permite iluminar as particularidades que constituem a diferença na relação.
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