sexta-feira, 31 de maio de 2013

O eterno retorno em Zaratustra - Nietzsche

"'Alto, anão!, falei eu. 'Ou eu ou tu! Mas eu sou o mais forte de nós dois -: tu não conheces meu pensamento abissal! Esse - tu não poderias carregar!'

Então aconteceu que eu me tornei mais leve: pois o anão saltou-me do ombro, o curioso! E agachou-se sobre uma pedra diante de mim. Mas havia um portal, precisamente ali onde fizemos alto.

'Vê este portal, anão!', continuei a falar: 'ele tem duas faces. Dois caminhos se juntam aqui: ninguém ainda os seguiu até o fim. Este longo corredor para trás: ele dura uma eternidade. E aquele longo corredor para adiante - é uma outra eternidade. Eles se contradizem, esses caminhos; eles se chocam frontalmente: e aqui neste portal é onde eles se juntam. O nome do portal está escrito ali em cima: 'Instante'.

Mas se alguém seguisse adiante por um deles - e cada vez mais adiante e cada vez mais longe: acreditas, anão, que esses caminhos se contradizem eternamente?.'

'Tudo o que é reto mente', murmurou desdenhosamente o anão. 'Toda verdade é curva, o próprio tempo é um círculo.'

'Tu, espírito de peso!', falei, irado, 'não tornes tudo tão leve para ti! Ou eu te deixo agachado aí onde estás agachado, pé coxo - e olha que eu te trouxe bem alto! Vê, continuei a falar, vê este instante! Deste portal Instante corre um longo, eterno corredor para trás: atrás de nós há uma eternidade. Não é preciso que, de todas as coisas, aquilo que pode acontecer já tenha uma vez acontecido, já esteja feito, transcorrido? E, se tudo já esteve aí: o que achas tu, anão, deste Instante? Não é preciso que também este portal - já tenha estado aí? E não estão tão firmemente amarradas todas as coisas, que este Instante puxa atrás de si todas as coisas vindouras? E assim - a si próprio também? Pois, de todas as coisas, aquilo que pode correr: também por este longo corredor para diante - é preciso que corra uma vez ainda!

E esta lenta aranha, que rasteja ao luar, e este próprio luar, e eu e tu no portal, cochichando juntos, cochichando de coisas eternas - não é preciso que todos nós já tenhamos estado aí? - e que retornemos e que percorremos aquele outro corredor, para diante, à nossa frente, esse longo, arrepiante corredor - não é preciso que retornemos eternamente?'

Assim falava eu, e cada vez mais baixo: pois tinha medo de meus próprios pensamentos e dos pensamentos que se escondiam atrás deles. Então, subitamente, ouvi ali perto um cão uivar. Ouvi alguma vez um cão uivar assim? Meu pensamento correu para trás. Sim! Quando eu era criança, na mais longínqua infância: - foi quando ouvi um cão uivar assim. E também o vi, eriçado, com a cabeça voltada para cima, estremecendo, na mais silenciosa meia-noite, na hora em que também os cães acreditam em fantasmas: - tanto que me apiedei. Acabava, com efeito, de aparecer a lua cheia, mortalmente calada, sobre a casa, acabava de parar, uma brasa redonda - parada sobre o teto raso, como sobre propriedade alheia; - com ela assustou-se aquela vez o cão: pois cães acreditam em ladrões e fantasmas. E quando ouvi outra vez uivar assim, isso me apiedou mais uma vez.

Para onde teria ido agora o anão? E o portal? E a aranha? E todo o cochichar? Eu estava sonhando? Acordei? Entre penhascos selvagens fiquei de repente sozinho, ermo, no mais ermo dos luares.

Mas ali jazia um homem! E eis! O cão, saltando, eriçado, ganindo - agora ele me viu chegar - e recomeçou a uivar, e gritou: - ouvi alguma vez um cão gritar assim por socorro?."

Trecho extraído de "Da visão e enigma"
Assim falou Zaratustra, terceira parte (1883-1884)
Tradução de Rubens  R. Torres Filho 

terça-feira, 28 de maio de 2013

O devir, o múltiplo e o eterno Retorno em "Nietzsche" - Deleuze

"O múltiplo já não é justificável do Uno nem o devir, do Ser. Mas o Ser e o Uno fazem melhor do que perder o seu sentido; tomam um novo sentido. Porque, agora, o Uno diz-se do múltiplo enquanto múltiplo (pedaços ou fragmentos); o Ser diz-se do devir enquanto devir. Tal é a inversão nietzscheana, ou a terceira figura da transmutação. Já não se opõe o devir ao Ser, o múltiplo ao Uno (estas mesmas oposições sendo as categorias do niilismo). Pelo contrário, afirma-se o Uno do múltiplo, o Ser do devir. Ou então, como diz Nietzsche, afirma-se a necessidade do acaso. Dionísio o jogador. O verdadeiro jogador faz do acaso um objeto de afirmação: afirma os fragmentos, os membros do acaso; desta afirmação nasce o número necessário, que reconduz o lançamento dos dados. Vemos qual é a terceira figura: o jogo do eterno Retorno. Retornar é precisamente o ser do devir; o uno do múltiplo, a necessidade do acaso.

Assim é preciso evitar fazer do eterno Retorno um Retorno do mesmo. Isto seria desconhecer a forma da transmutação  e a mudança na relação fundamental. Porque o Mesmo não preexiste ao diverso (salvo na categoria do niilismo). Não é o Mesmo que volta, já que voltar é a forma original do Mesmo, que apenas se diz do diverso, do múltiplo, do devir. O Mesmo não volta, é o voltar apenas que é o Mesmo daquilo que devém.

(...) O segredo de Nietzsche é que o eterno Retorno é seletivo. E duplamente seletivo. Primeiro, como pensamento. Porque nos dá uma lei para a autonomia da vontade desgarrada de toda a moral: o que quer que eu queira (a minha preguiça, a minha gulodice, a minha covardia, o meu vício como a minha virtude) 'devo' querê-lo de tal maneira que lhe queira o eterno Retorno. Encontra-se eliminado o mundo dos 'semi-quereres', tudo o que queremos com a condição de dizer: uma vez, nada senão uma vez. Mesmo uma covardia, uma preguiça que quisesse o seu eterno Retorno torna-se-ia outra coisa diferente de uma preguiça, de uma covardia: torna-se-iam ativas e potências de afirmação.


E o eterno Retorno não é só o pensamento seletivo, mas também o Ser seletivo. Só volta a afirmação, só volta aquilo que pode ser afirmado, só a alegria volta. Tudo o que pode ser negado, tudo o que é negação é expulso pelo próprio movimento do eterno Retorno. (...) O eterno Retorno é a Repetição; mas é a Repetição que seleciona, a Repetição que salva. Segredo prodigioso de uma repetição libertadora e selecionante".

Fonte: G. Deleuze, "Nietzsche" (Edições 70)      

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Kabengele Munanga - Aula Magna 2013 INCIS/UFU

Nesta segunda-feira, dia 28 de maio de 2013, Kabengele Munanga irá ministrar aula magna no Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia. O professor Kabengele - que nasceu no Congo e cursou doutorado no Brasil - é Livre-docente da Universidade de São Paulo, atuando na área de antropologia das populações afro-brasileiras e relações raciais.




sexta-feira, 17 de maio de 2013

O caso "Feliciano" e Marina Silva: os usos políticos da alteridade

Não sou contra Feliciano porque ele é Evangélico! Isso seria racismo religioso e a CF é clara nesse ponto: a opção religiosa é um direito civil. Apesar de não ser evangélico, defendo a liberdade de expressão religiosa e a boa convivência entre membros de religiões diferentes no âmbito de um Estado laico. Mesmo sabendo que muitos pastores evangélicos incitam o ódio contra membros de outras religiões, pregando que as mesmas são expressões diabólicas ou coisas do gênero - atitude, diga-se de passagem, compartilhada por católicos conservadores - também sei que essas noções, por mais etnocêntricas que sejam, integram suas cosmologias. E conforme reza o ditado popular, religião não se discute. Ora, enquanto eles se limitarem a expressar essas opiniões no âmbito do culto de suas igrejas, não vejo problema nisso. Certamente, não faltam vozes contrárias no cenário político contemporâneo. Agora, quando esse etnocentrismo é transformado em intolerância e gera ações de violência, deve ser tratado como um desrespeito à alteridade ideológica ou religiosa, algo inaceitável e proibido em lei. As pessoas que incitam a violência contra a opinião alheia devem ser presas, não por terem esta ou aquela religião, mas devido ao teor racista de suas ações e por desrespeitarem um preceito constitucional extremamente importante: a liberdade de expressão.


Sou contra Feliciano porque ele incita o ódio, fazendo uso da moral religiosa para se promover e promover o preconceito de gênero e a homofobia. Mas essa atitude não reflete sua opção religiosa, mas a intolerância de certos setores da sociedade civil para com a alteridade, seja ela qual for. A censura da alteridade (de gênero, raça, religião, etc) é um fenômeno mais amplo do que a homofobia e revela traços herdados de uma história de arbitrariedades políticas  promovidas por ditaduras e governos civis.

No entanto, mesmo diante do etnocentrismo autoritário, a censura e o totalitarismo ideológico ou religioso não é a solução. Assim como não podemos exigir que todos os políticos sejam ateus ou argumentar que tal descrença em Deus (ou entidades similares) é ou já foi indicio de uma política coerente ou justa, também não podemos partir do pressuposto que política e religião são coisas completamente distintas e divergentes, principalmente, quando a história demonstra exatamente o contrário. Existe algo de religioso em todo pensamento político, assim como há algo político em toda atitude religiosa. Acreditar que o culto de lideranças políticas é completamente diferente do culto religioso de santos e outras entidades significa compartilhar de outra crença, essa sim, muito mais destrutiva e anti-humanista: a crença de que o exercício da política pode ser reduzido aos seus aspectos racionais e técnicos.    

Por mais que eu não concorde com o pensamento de Feliciano, defendo sua liberdade de expressão, desde que essas opiniões não resultem em ações violentas e ataques às pessoas que pensam diferente e também têm o direito de se pronunciar. Afinal, outro preceito constitucional do Estado de Direito é a convivência pacífica entre múltiplas perspectivas políticas, religiosas, literárias, jornalísticas e científicas. Em uma democracia, não podemos simplesmente censurar todas as vozes contrárias, o que parece ser a vontade política de muito militante, seja de esquerda ou de direita. Quanto ódio já não foi disseminado em nome de ideologias e pensamentos políticos? Quantas atrocidades já não foram cometidas em nome da técnica e da razão?

No caso de Feliciano, a polêmica maior se dá pelo fato de uma pessoa que defende tais ideias estar presidindo uma comissão de direitos humanos, essa é a questão fundamental e o que gerou e ainda gera a indignação coletiva nas redes sociais e nos meios de comunicação. Devido ao histórico de luta por direitos humanos no Brasil - marcado pelo compromisso com os direitos políticos e civis das minorias - é uma contradição inaceitável que uma pessoa que dá declarações fascistas, homofóbicas e preconceituosas, presida uma comissão que foi fundada exatamente para combater esse tipo de discurso.

E é exatamente isso que Marina Silva vem dizendo desde que surgiu a polêmica, basicamente, "ele não está no lugar certo, não por ser evangélico, mas por defender o que defende". Marina tem se esforçado para ponderar que o problema não é a religião de Feliciano, mas o uso que ele faz da religião para incitar o ódio e o preconceito para com toda e qualquer alteridade. A questão é que ele está em um lugar historicamente ocupado por pessoas que pensam e defendem ideias exatamente opostas às suas e está despreparado para exercer a função que essa comissão tem exercido desde que foi instituída: lutar pelos direitos das minorias. Ou seja, estamos diante de uma situação onde os representados se rebelaram contra um porta-voz, que, de fato, não os representa adequadamente. Mas isso não tem nada haver com a sua religiosidade (ou pelo menos não deveria ter).  

Agora, o fato dos governistas fazerem uso deste ponderamento para tentar deslegitimar uma provável candidatura da Marina é anti-ético e injusto (ver matéria publicada recentemente na Carta Capital). Ainda mais vindo de quem vem. Afinal, foi a 'política de alianças' do Governo Dilma que levou Feliciano a ocupar a presidência da Comissão de Direitos Humanos: negociar cargos públicos como se fossem 'bens partidários' dá no que dá.

Mas esse discurso de "denúncia" em relação à opção religiosa da Marina Silva - que é evangélica por opção de vida - revela, de fato, um preconceito subliminar que nos remete às nossas heranças católicas. Afinal, nunca vi ninguém reclamar do fato de um candidato ser "católico", por exemplo, apesar da nossa história estar repleta de presidentes católicos. O fato de um crucifixo ter lugar de destaque no STF e em outros ambientes governamentais não parece gerar a mesma polêmica.

Aliás, não foi Dilma que, nas últimas eleições, retrocedeu no debate sobre o aborto para não enfrentar os eleitores cristão (sejam eles evangélicos ou católicos)?


Ora, não entendo porque um católico assumido - seja ele praticante ou não - pode exercer o mandato de presidente sem ter sua religiosidade questionada enquanto membros de outras religiões são perseguidos devido à sua opção religiosa?

Marina, por diversas vezes, já declarou que será presidente de todos e não apenas dos evangélicos. De fato, em nenhum momento, ela se colocou como representante desse setor da sociedade. Inclusive, sua trajetória pessoal demonstra claramente que as suas raízes políticas não residem no movimento evangélico, mas no movimento dos seringueiros do Acre, nas alas mais à esquerda do antigo PT e no socioambientalismo. Basta analisar sua trajetória política para perceber esse fato.

Quem promove o discurso 'alarmista' sobre uma possível eleição de Marina Silva como presidenta do Brasil pelo simples fato dela ser evangélica está sendo preconceituoso (ou partidário), o que é, de fato, algo bastante previsível diante de um ambiente político extremamente intolerante para com toda e qualquer alteridade.  

terça-feira, 14 de maio de 2013

Machu Picchu, Cusco - Peru

Estive recentemente em Cusco, no Peru, conhecendo de perto os vestígios arqueológicos do Império Inca e outras sociedades pré-incas. O lugar é especial, único, belo em todos os sentidos. Apesar da altitude - que produz efeitos como o 'soroche', também conhecido como 'mal estar das alturas' - o ambiente local ainda respira a história andina pré-colonização espanhola, presente nos centros arqueológicos e nas manifestações culturais dos campesinos e povos indígenas da região. Além dos passeios realizados no entorno da cidade, existem dezenas de sítios arqueológicos localizados em pequenos povoados e vilas dos arredores, que podem ser acessados com apenas algumas horas de viagem. O povo é hospitaleiro e simpático e a infra-estrutura local oferece inúmeras opções de lazer, incluindo trilhas ecológicas, festas populares, restaurantes, museus, cafés e feiras de artesanato.

Cusco é conhecida como a capital do antigo Império Inca, que, entre os séculos XV e XVI, chegou a dominar uma extensão territorial que ia do Equador até Santiago, atual capital do Chile. Essa sociedade andina ficou conhecida no mundo inteiro pela complexidade da sua cultura material e imaterial, incluindo o seu  sistema filosófico e religioso, os seus conhecimentos agrícolas, cosmológicos, medicinais e técnicos, além de construções gigantescas cujos vestígios ainda são encontrados praticamente intactos e estradas que interligam cidades fortificadas onde viviam milhares de habitantes. Essa civilização andina viveu seu apogeu entre os anos 1430-1530, período em que foi governada por Pachacuteq, imperador Inca responsável pela ampliação do domínio político através da conquista ou integração de outras sociedades andinas regionais, seja através da guerra ou do comércio.

Infelizmente, quando os espanhóis chegaram na América do Sul, no início do século XVI, já encontraram o império Inca fragilizado por uma guerra civil ocasionada pela sucessão política, que levou a uma disputa acirrada pelo poder entre os dois filhos do imperador. Essa cisão interna do império Inca explica como - através de uma série de injustiças, alianças e traições - um exército formado por pouco mais de uma centena de espanhóis foi capaz de conquistar uma legião composta por cerca de 20 mil soldados Incas. O fato é que em algumas centenas de anos as antigas cidades Incas foram praticamente destruídas e reconstruídas pelos 'conquistadores', os últimos membros da linhagem de imperadores foram assassinados e, por muito tempo, qualquer identificação com a cultura Inca - como o uso da língua do antigo império, o quechua, ou o culto aos antigos deuses Incas - foi expressamente proibido. Por muito tempo, as 'ruínas' do antigo império foram mantidas em estado de total abandono, praticamente desaparecendo em meio às matas e montanhas locais. Deviso a esse (des) encontro de civilizações, jamais poderemos saber como teria sido o desenvolvimento desta sociedade andina.

No entanto, a cultura, a língua e a cosmologia dos Incas permanece 'viva' nos campesinos indígenas que habitam regiões como o Vale Sagrado, onde continuam praticando e desenvolvendo técnicas agrícolas herdadas de seus antepassados; nas manifestações folclóricas e culturais do povo cusquenho, cuja boa parte ainda fala a língua quechua; na agrobiodiversidade local, rica em variedades de milho, batata e outros tubérculos e frutas locais; nas danças e músicas típicas; nas histórias e lendas relatadas pelos moradores mais antigos; nos movimentos indígenas, campesinos e populares que predominam na região; além, é claro, de uma culinária local repleta de pratos típicos como o "Cuy ao forno" e o "Ceviche".

Em meados do século XIX, a província de Cusco recebeu a visita de exploradores e comerciantes europeus, que percorreram a região em busca de tesouros minerais e arqueológicos. Assim, os vestígios de ouro e argila ainda existentes nos antigos sítios Incas foram contrabandeados para museus europeus e norte-americanos, finalizando uma história de roubo e violência colonial. Durante muito tempo a região de Cusco foi praticamente abandonada pelo Estado do Peru e, em meados dos anos 1990, estava ocupada por grupos terroristas e movimentos revolucionários.    

Ao final da década de 1990, com as reformas políticas e econômicas, o governo do Peru voltou sua atenção à região de Cusco, fazendo uso político de inúmeros estudos históricos e arqueológicos realizados autonomamente por pesquisadores peruanos e estrangeiros, dando início a um processo histórico de luta pelo reconhecimento da cidade e seus arredores como um sítio arqueológico de valor humanitário.


Após o reconhecimento oficial de Machu Picchu como um patrimônio da humanidade pela Unesco, Cusco passou a receber uma legião de turistas provenientes de países do mundo inteiro. Com isso, boa parte da população local está envolvida direta ou indiretamente com atividades de turismo, retirando daí parte de sua renda. Ao mesmo tempo, teve início um movimento amplo de reconhecimento de identidades e culturas andinas locais, com o incentivo a projetos de 'revitalização cultural' promovidos por agências locais de desenvolvimento, levando à multiplicação, em poucos anos, das iniciativas folclóricas e culturais promovidas pela população local.

Nesta postagem, pretendo mostrar algumas fotos retratando vestígios arqueológicos localizados na cidade de Cusco, em vilas e povoados dos arredores e na antiga cidade Inca de Machu Picchu, reservando para outras postagens um relato fotográfico sobre outros trechos da viagem, como uma festa popular camponesa que tive a oportunidade de acompanhar e as visitas ao Mercado Público local e ao Museu de Plantas Medicinais Andinas.

Chinchero, Cusco - Peru
 



Salineras de Maras, Cusco - Peru
  



Sítio Arqueológico de Moray, Cusco - Peru





Sítio Arqueológico de Pisac, Cusco - Peru




Sítio Arqueológico de Saqsayhuamán, Cusco - Peru




Sítio Arqueológico de Tipon, Cusco - Peru




Templo del Sol, Cusco - Peru




Machu Picchu & Huayna Picchu, Cusco - Peru









Sítio Arqueológico Pikillacta Wari, Cusco - Peru






sexta-feira, 10 de maio de 2013

"Spinoza - Filosofia Prática" - G. Deleuze

A filosofia é a arte de invenção de conceitos. Fazer filosofia, ou 'filosofar', implica experimentar com sistemas ou linguagens conceituais, mas não para reproduzi-los de maneira didática ou para reificá-los como princípios gerais e universais associados a uma doutrina moral, tratado lógico ou racional, mas para romper toda e qualquer estrutura de forma a elevá-la à sua última e derradeira potencia, o que significa corromper sua suposta unidade até que a multiplicidade fundante torne-se explícita e, novamente, produtiva.

Por isso, para Deleuze, experimentar filosofias não consiste em abordá-las como uma unidade - uma obra, um autor, uma teoria - que deve ser refutada ou admitida em sua totalidade. Para experimentar conceitos ou ideias não precisamos firmar compromisso com todo o castelo conceitual no qual estão imersas e com o qual formam um todo ou uma estrutura sistemática mais ou menos coerente. Não é preciso ser spinozista para experimentar algumas ideias sugeridas ou expressas na filosofia de Spinoza, apesar dessa 'experiência' ter um efeito em nossa vida. Cada autor tem sua própria caixa de ferramentas, que pode ser justaposta ou colocada em ação de forma completamente inovadora, compondo com outras ideais, autores e teorias. Afinal, é isso que torna possível colocar em relação preceitos teóricos e conceitos provenientes de filosofias 'opostas' ou supostamente incomensuráveis.

É exatamente por que os campos ideacionais estão sempre abertos ao mundo da vida - da mesma forma que o sujeito e a subjetividade - que eles podem sofrer deslocamentos, rupturas e desvios, assumindo novas formas ao serem incorporados em novos sistemas ideacionais. A filosofia deve ser sempre libertadora.

Não é preciso, portanto, tornar-se um 'spinozista' para fazer uso mais ou menos alternativo de algumas de suas ideias e conceitos. Esse seria, por assim dizer, o modo deleuzeano de se relacionar com a filosofia de Spinoza: uma experimentação com alguns de seus conceitos ou ideias, sem maior compromisso em defender didaticamente o seu sistema filosófico como um todo, mas sempre elevando essa relação com conceitos à última potência, retirando dela o maior número de possibilidades, sem nunca alcançar concretamente a sua multiplicidade virtual.

No que refere à abordagem de autores, obras e teorias, só existe uma única regra: deixem o pensamento exercer a sua função libertadora!

Mas voltando à leitura deleuziana de Spinoza, ou melhor, à minha leitura dessa leitura (o que temos são sempre interpretações de interpretações), não sejamos assim tão 'puristas'. Nesta breve postagem, gostaria apenas de esboçar anotações para uma futura reflexão sobre alguns pontos que são, por assim dizer, fundamentais para a minha (atual) relação com a filosofia deleuziana (perpassada pela sua apropriação de Spinoza). Essas anotações foram escritas a partir da leitura paralela de dois livros: "Espinoza: filosofia prática", de Gilles Deleuze (Editora Escuta); e "Ética", de Spinoza (edição bilíngue, Autêntica). Com isso, não tenho a menor pretensão em descrever o sistema filosófico de Spinoza, mas de apresentar algumas notas sobre a equação:   "Deleuze + Spinoza/X = uma filosofia prática".


[A delimitação em sub-títulos dos itens aqui expostos não reflete uma pretensão de didatismo, mas busca expressar a noção subjacente de multiplicidade presente em todo e qualquer sistema conceitual, apontando para o fato dessas notas não formarem um todo "Uno" - sistema coerente de coordenadas ideacionais com latitude e longitude bem delimitadas - mas um mosaico de elementos cuja ordem pode ser invertida ou corrompida, possibilitando que cada ideia possa ser destacada individualmente e explorada enquanto um campo de problematização próprio, ou até mesmo colocado em composição com elementos ausentes].  

O 'filosofar' enquanto experiência existencial de ordem prática

A primeira observação diz respeito à abordagem deleuziana de alguns conceitos e pressupostos teóricos retirados de Spinoza. Essa abordagem não deve ser meramente didática, mas um experimento de ordem prática que tem um reflexo inevitável na própria forma como vivemos e pensamos a nossa relação com o mundo. Não se trata, portanto, de reproduzir um conjunto estável de definições mais ou menos precisas de conceitos ou de repetir uma determinada linguagem conceitual, mas de retirar desses conceitos uma nova possibilidade de viver a vida. No lugar de uma aventura epistemológica e linguística, estamos diante de uma jornada ontológica:

"(...) uma única Natureza para todos os corpos, uma unica Natureza para todos os indivíduos, uma Natureza que é ela própria um indivíduo variando de uma infinidade de maneiras. Não é mais a afirmação de uma substância única, é a exposição de um plano comum de imanência em que estão todos os corpos, todas as almas, todos os indivíduos. Esse plano de imanência ou de consistência não é um plano no sentido de um desígnio no espírito, projeto, programa, é um plano no sentido geométrico, seção, intersecção, diagrama. Então, estar no meio de Spinoza é estar nesse plano modal, ou melhor, instalar-se nesse plano; o que implica um modo de vida, uma maneira de viver. Em que consiste esse plano e como construí-lo? Pois é ao mesmo tempo completamente plano de imanência, e todavia deve ser construído, para que se viva de maneira espinosista" ("Spinoza: filosofia prática" - G. Deleuze, p. 127).

Não se trata, portanto, de interpretar, explicar ou compreender Spinoza, mas de viver e experimentar (com) o seu pensamento.

Spinoza propõe o corpo como modelo para pensar o pensamento 

Estamos diante de um 'Spinoza Materialista', mas não se trata de inverter a assimetria histórica entre alma e corpo, onde o fortalecimento de um implica na anulação do outro (e vice-versa, como nos 'perigos da carne ao bem estar espiritual'), mas em defender um 'paralelismo' entre corpo e espírito.

"Trata-se de mostrar que o corpo ultrapassa o conhecimento que dele temos, e o pensamento não ultrapassa menos a consciência que dele temos. (...) Procuramos adquirir um conhecimento das potências do corpo para descobrir paralelamente as potências do espírito que escapam à consciência, e poder compará-los" (Idem, p. 24).

Na "Ética", de Spinoza, o que é ação na alma é também ação no corpo. As ideias possuem extensão corporal, assim como todo corpo possui um caráter ideacional: "(...) que a mente e o corpo são uma só e mesma coisa, a qual é concebida ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão. Disso resulta que a ordem ou a concatenação das coisas é uma só, quer se conceba a natureza sob um daqueles atributos, quer sob o outro e, consequentemente, que a ordem das ações e das paixões de nosso corpo é simultânea, em natureza, à ordem das ações e das paixões da mente" ("Ética" - Spinoza, terceira parte, p. 100).

"Assim, a própria experiência ensina, não menos claramente que a razão, que os homens se julgam livres apenas porque estão conscientes de suas ações, mas desconhecem as causas pelas quais são determinados. Ensina também que as decisões da mente nada mais são do que os próprios apetites: elas variam, portanto, de acordo com a variável disposição do corpo. (...) Sem dúvida, tudo isso mostra claramente que tanto a decisão da mente, quanto o apetite e a determinação do corpo são, por natureza, coisas simultâneas" (Ibidem, p. 102-3).

O corpo como o efeito da dinâmica de múltiplas singularidades ou forças que entram em composição 

Os corpos são definidos por Spinoza de duas formas: a) "todo corpo comporta uma infinidade de partículas: são as relações de repouso ou movimento, de velocidades e de lentidões entre partículas que definem um corpo, a individualidade de um corpo" (Deleuze, idem, p. 128); b) "um corpo afeta outros corpos, ou é afetado por outros corpos: é este poder de afetar e ser afetado que também define um corpo em sua individualidade" (Ibidem). "O importante é conceber a vida, cada individualidade de vida, não como uma forma, mas como uma relação complexa entre velocidades diferenciais, entre abrandamento e aceleração de partículas. (...) Concretamente, se definirmos os corpos e os pensamentos como poderes de afetar e ser afetado, muitas coisas mudam. Definiremos um animal, ou um homem, não por sua forma ou por seus órgãos e suas funções, e tampouco como sujeito: nós o definiremos pelos afetos de que ele é capaz" (ibidem).

Primeira observação: todo corpo é composto por forças ou singularidades que entram em relação de associação, formando um sistema dinâmico e múltiplo. Esse sistema possui um certo grau de intensidade, marcado por um ritmo de composição e expressão de partículas menores. O corpo é, portanto, uma unidade que não anula a multiplicidade, mas se compõe através dela, uma multiplicidade em potencial (virtual), viva e atuante. Um conjunto de órgãos que estão em relação de associação entre si, que estabelecem um ritmo de composição, que se colocam em movimento de convergência e divergência, formando um coletivo mais amplo, uma individualidade.

Segunda observação: a tese do paralelismo. Toda ideia é composta por forças ou singularidades que entram em relação de associação, formando um sistema dinâmico e múltiplo... (idem). As ideias existem como forças que entram em relação de associação ou dissociação, formando sistemas mais amplos, configurando novos campos de problematização. Se o corpo é coletivo, a mente também é. O pensamento implica a multiplicidade, constituindo-se através dela, alimentando-se de sua potencialidade virtual.

Os corpos são conjuntos dinâmicos de afetos e afecções e não podem ser avaliados a partir da sua forma ou função, mas a partir da sua potência de afetar e ser afetado por outros corpos

"Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções. Explicação. Assim, quando podemos ser a causa adequada de alguma dessas afecções, por afeto compreendo, então, uma ação; em caso contrário, uma paixão. Postulados: 1. O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, enquanto outras tantas não tornam sua potência de agir nem maior nem menor" (Ética, Spinoza, p. 99).      

Desvalorização de todos os valores e sobretudo do bem e do mal (Spinoza, o imoralista) 

Se todos os corpos são caracterizados, por um lado, pelo ritmo e intensidade das forças que entram em composição e, por outro lado, pela capacidade de afetar e ser afetado, deduzi-se daí que todo e qualquer corpo possui sua integridade demarcada pela sua potência (afecções + afetos, que dizem respeito a sua relação com outros corpos) e pela sua dinâmica (certo ritmo ou intensidade de movimentos que demarca a sua individualidade), isso significa que a continuidade de um corpo depende da manutenção dessas duas variáveis em limites aceitáveis.

Ao mesmo tempo, tanto os corpos como as ideias (tese do paralelismo) entram constantemente em relação de composição, atraindo-se ou repelindo-se conforme a situação e o contexto relacional, sendo que essas relações podem ser benéficas ou maléficas no que se refere à manutenção dos dois atributos que caracterizam toda e qualquer corporalidade. Isso significa que aquilo que é 'bom' contribui para potencializar ou fortalecer seja a potência de um corpo (sua capacidade de afetar ou ser afetado), seja a dinâmica (ritmo e intensidade das forças que o compõem), sendo 'mal' tudo aquilo que contribui para transformações ou mutações que alteram esse estado individual.

"O bom existe quando um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso, e, com toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa. Por exemplo, um alimento. O mal para nós existe quando um corpo decompõe a relação do nosso, ainda que se componha com nossas partes, mas sob outras relações que aquelas que correspondem à nossa essência: por exemplo, como um veneno que decompõe o sangue. Bom e mau têm pois um primeiro sentido, objetivo, mas relativo e parcial: o que convém a nossa natureza e o que não convém. E, em consequência, bom e mau têm um segundo sentido, subjetivo e modal, qualificando dois tipos, dois modos de existência do homem: será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça, tanto quanto pode, por organizar os encontros, por se unir ao que convém à sua natureza, por compor a sua relação com relações combináveis e, por esse meio, aumentar a sua potência. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, ou insensato, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer as consequências, pronto a gemer e a acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra contrário e lhe revela a sua própria impotência" (Deleuze, Idem, p. 28-9).

Bom e Mau, portanto, não são categorias absolutas, determinadas por uma moral que busca universalizar valores transcendentes, válidos para todos os homens, em todos os tempos, em todas as situações históricas.

Alguns exemplos que me ocorrem neste momento.

Um homem intempestivo e raivoso - cujas forças internas se compõem de determinada forma, caracterizando um ritmo de intensidade e potência - não é, em si mesmo, um homem mau. Ele será (ou poderá) ser mau para uma pessoa pacífica, medrosa e indefesa, quando e se essa pessoa entrar em uma trajetória de conflito com ele - principalmente em situações em que o segredo garante o anonimato da ação ou quando esse homem mau for também ateu, destemido, ladrão, louco ou assassino. Esse encontro (ou desencontro) poderá significar o aniquilamento da pessoa pacífica e medrosa diante da pessoa destemida, aguerrida e raivosa, evento permeado por um conjunto de condicionantes externos (bebidas, paixões, angústias, imagens-afetos). Mas, quando o homem raivoso e destemido é colocado em uma situação de guerra, ali, no campo de batalha, a sua raiva torna-se em elemento de libertação, será o veiculo ou a ferramenta utilizada para libertar o povo da opressão de um ditador. Um exército de homens raivosos pode representar a 'salvação de uma nação', ou a sua redenção (como nas Cruzadas Cristãs). A raiva e o ódio - em ocasiões específicas - são atributos facilmente transformados em ferramentar de libertação 'divina'. Assim como a coragem pode ser o veículo de uma grande tragédia ou a desatenção ser o motivo de um acidente terrível ou de uma grande descoberta científica. Assassinos comuns também são transformados em verdadeiros heróis. 'Salvadores da pátria' podem ser raivosos, opressores e destemidos e, mesmo assim, serem considerados 'benevolentes' ou até mesmo 'divinos'.

O fogo pode entrar em diferentes composições com o meu corpo, algumas delas benéficas (o fogo que esquenta o corpo em uma noite fria), outras extremamente maléficas (o corpo que queima a pele), mas o fogo 'em si' não é bom ou mau. Ele pode, por exemplo, servir para cozinhar alimentos ou para afastar inimigos, mas também ser o veículo da destruição e da tragédia coletiva ao destruir uma floresta ou uma cidade.

A planta é composta por um conjunto de elementos ou substâncias, cada uma definida por um conjunto de afecções e afetos, que entram em relação de associação ou dissociação, formando coletivos bioquímicos maiores, que podem agir de forma sistêmica, produzindo certo número de efeitos ou ações em outros corpos ou seres. Esses elementos ou substâncias que entram em relação de composição podem contribuir para fortalecer ou enfraquecer o corpo ou o espírito, podem compor com outros corpos de diferentes formas e em diferentes ritmos. A planta é um conjunto dinâmico de afetos e afecções, uma multiplicidade virtual associada com outros organismos e seres. Essa associação pode ser benéfica ou maléfica conforme a qualidade da relação, resultando em substração, soma ou multiplicação de potência. A planta pode servir de alimento, medicamento ou até mesmo veneno, produzindo efeitos diferenciados conforme a relação entre suas propriedades ou atributos e as afecções do corpo ou indivíduo com o qual ela entra em associação. Mas a planta, 'em si', não é boa ou má, ela apenas produz associações benéficas ou maléficas para este ou aquele corpo, podendo curar, alimentar ou matar.  

A crítica das paixões tristes 

Todo individuo é caracterizado pela forma como afeta e é afetado por outros corpos e pela dinâmica das forças que entram em sua composição. Desta forma, a liberdade de ação consiste em buscar 'compor' preferencialmente com outros corpos (ou indivíduos) que agregam vitalidade e potência a nossa existência, seja ampliando a nossa capacidade de afetar e ser afetado, seja fornecendo os elementos necessários para a manutenção da nossa dinâmica individual (certo ritmo ou intensidade que nos caracteriza diante dos demais corpos).

"Temos três componentes: 1º) nossa essência singular eterna; 2º) nossas relações características (de movimento e de repouso), ou nossos poderes de ser afetado; 3º) as partes extensivas que definem a nossa existência na duração e pertencem à nossa essência enquanto efetuam esta ou aquela de nossas relações (do mesmo modo as afecções externas que preenchem a nossa potência de ser afetado). O 'mau' é quando partes extensivas que nos pertenciam sob uma relação são determinadas do exterior a entrar sob outras relações; ou então quando uma afecção nos toca e excede o nosso poder de ser afetado. Nesse caso, dizemos que nossa relação é decomposta, ou que nosso poder de ser afetado foi destruído" (Ibidem, p. 48).

O homem bom é aquele que busca orientar suas ações de forma a compor positivamente com outros corpos (ou ideias). O resultado de uma composição positiva com o mundo da vida, efeito de associações que somam ao invés de subtrair, resulta na alegria que emana naturalmente do homem bom, do homem que orienta suas ações buscando a intensificação da sua potência ou vontade de poder. Isso nem sempre resulta em uma atitude 'justa' ou 'boa' diante de toda e qualquer situação da vida, nem mesmo produz necessariamente 'bondade', apesar de possibilitar a afirmação de uma potência e de uma vida sobre outras vidas. O homem bom, de fato, não é bom para todos ou sempre, mas apenas parcialmente e sempre em um sentido único: a sua bondade potencializa a sua força e, desta forma, a própria Natureza. Como todos os corpos e todas as ideias fazem parte de uma única substância, mesmo o homem bom sabe oferecer-se em sacrifício no momento apropriado e, se for realmente 'bom', saberá também tirar o maior proveito disso que puder. Esse é, afinal, o caminho para a eternidade.

Já o homem mau ou fraco é aquele que se deixa levar por suas paixões e afecções, compondo com outros corpos (ou indivíduos) de maneira a se decompor com o tempo, ou seja, minimizando sua dinâmica individual e sua capacidade de afetar e ser afetados pelos outros. O homem fraco não conhece a si mesmo e aos outros, suas ações são sempre reações ocasionais e oportunistas que o impedem de poder equacionar produtivamente a sua existência. Ele se deixa conduzir pelas suas paixões, afetando-se conforme o acaso e o destino, sem nunca assumir a responsabilidade de conduzir a si próprio e aos outros diante da tormenta. O homem fraco está sempre reclamando da vida, dos infortúnios de outrem e de si mesmo, transformando-se em vítima, justificando seus atos pela fraqueza diante de paixões e desejos que não consegue explicar. O homem mau justifica sua maldade pela fraqueza dos outros, mas sem nunca entender a química que movimenta os corpos, incluindo o seu. Como um louco perdido, o homem fraco vaga sem rumo, trocando alguns segundos de alegria por uma vida de tristeza e amargura existencial.

"O bom e o mau são duplamente relativos, e exprimem-se um em relação ao outro, e ambos em relação a um modo existente. São os dois sentidos da variação de potência de agir: a diminuição desta potência (tristeza) é má, seu aumento (alegria) é bom. Objetivamente, é bom, desde logo, o que aumenta ou favorece nossa potência de ação, e mau o que a diminui ou a impede; não conhecemos o bom e o mau a não ser pelo sentimento de alegria ou de tristeza de que estamos conscientes. Como a potência de agir é o que abre o poder de ser afetado ao maior número de coisas, é com aquilo que dispõe o corpo de tal maneira que possa ser afetado pelo maior número de modos" (Ibidem, 60).

 Spinoza e a filosofia da vida

"Há, efetivamente, em Spinoza, uma filosofia da 'vida': ela consiste precisamente em denunciar tudo o que nos separa da vida, todos esses valores transcendentes que se orientam contra a vida, vinculados às condições e às ilusões de nossa consciência. (...) quando encontramos um corpo exterior que não convém com o nosso (isto é, cuja relação não se compõe com a nossa), tudo ocorre como se a potência de agir é                      
diminuída ou impedida, e que as paixões correspondentes são de tristeza. Mas, ao contrário, quando encontramos um corpo que convém à nossa natureza e cuja relação se compõe com a nossa, diríamos que a sua potência se adiciona à nossa: as paixões que nos afetam são de alegria, nossa potência de agir é ampliada ou favorecida. Esta alegria é ainda uma paixão, visto que tem uma causa exterior; permanecemos ainda separados de nossa potência de agir, não a possuímos formalmente. Esta potência de agir não deixa de aumentar de modo proporcional, 'aproximando-nos' do ponto de conversão, do ponto de transmutação que nos torna-rá senhores dela, e por isso dignos de ação, de alegrias ativas" (Ibidem, 33-4).
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