sexta-feira, 17 de maio de 2013

O caso "Feliciano" e Marina Silva: os usos políticos da alteridade

Não sou contra Feliciano porque ele é Evangélico! Isso seria racismo religioso e a CF é clara nesse ponto: a opção religiosa é um direito civil. Apesar de não ser evangélico, defendo a liberdade de expressão religiosa e a boa convivência entre membros de religiões diferentes no âmbito de um Estado laico. Mesmo sabendo que muitos pastores evangélicos incitam o ódio contra membros de outras religiões, pregando que as mesmas são expressões diabólicas ou coisas do gênero - atitude, diga-se de passagem, compartilhada por católicos conservadores - também sei que essas noções, por mais etnocêntricas que sejam, integram suas cosmologias. E conforme reza o ditado popular, religião não se discute. Ora, enquanto eles se limitarem a expressar essas opiniões no âmbito do culto de suas igrejas, não vejo problema nisso. Certamente, não faltam vozes contrárias no cenário político contemporâneo. Agora, quando esse etnocentrismo é transformado em intolerância e gera ações de violência, deve ser tratado como um desrespeito à alteridade ideológica ou religiosa, algo inaceitável e proibido em lei. As pessoas que incitam a violência contra a opinião alheia devem ser presas, não por terem esta ou aquela religião, mas devido ao teor racista de suas ações e por desrespeitarem um preceito constitucional extremamente importante: a liberdade de expressão.


Sou contra Feliciano porque ele incita o ódio, fazendo uso da moral religiosa para se promover e promover o preconceito de gênero e a homofobia. Mas essa atitude não reflete sua opção religiosa, mas a intolerância de certos setores da sociedade civil para com a alteridade, seja ela qual for. A censura da alteridade (de gênero, raça, religião, etc) é um fenômeno mais amplo do que a homofobia e revela traços herdados de uma história de arbitrariedades políticas  promovidas por ditaduras e governos civis.

No entanto, mesmo diante do etnocentrismo autoritário, a censura e o totalitarismo ideológico ou religioso não é a solução. Assim como não podemos exigir que todos os políticos sejam ateus ou argumentar que tal descrença em Deus (ou entidades similares) é ou já foi indicio de uma política coerente ou justa, também não podemos partir do pressuposto que política e religião são coisas completamente distintas e divergentes, principalmente, quando a história demonstra exatamente o contrário. Existe algo de religioso em todo pensamento político, assim como há algo político em toda atitude religiosa. Acreditar que o culto de lideranças políticas é completamente diferente do culto religioso de santos e outras entidades significa compartilhar de outra crença, essa sim, muito mais destrutiva e anti-humanista: a crença de que o exercício da política pode ser reduzido aos seus aspectos racionais e técnicos.    

Por mais que eu não concorde com o pensamento de Feliciano, defendo sua liberdade de expressão, desde que essas opiniões não resultem em ações violentas e ataques às pessoas que pensam diferente e também têm o direito de se pronunciar. Afinal, outro preceito constitucional do Estado de Direito é a convivência pacífica entre múltiplas perspectivas políticas, religiosas, literárias, jornalísticas e científicas. Em uma democracia, não podemos simplesmente censurar todas as vozes contrárias, o que parece ser a vontade política de muito militante, seja de esquerda ou de direita. Quanto ódio já não foi disseminado em nome de ideologias e pensamentos políticos? Quantas atrocidades já não foram cometidas em nome da técnica e da razão?

No caso de Feliciano, a polêmica maior se dá pelo fato de uma pessoa que defende tais ideias estar presidindo uma comissão de direitos humanos, essa é a questão fundamental e o que gerou e ainda gera a indignação coletiva nas redes sociais e nos meios de comunicação. Devido ao histórico de luta por direitos humanos no Brasil - marcado pelo compromisso com os direitos políticos e civis das minorias - é uma contradição inaceitável que uma pessoa que dá declarações fascistas, homofóbicas e preconceituosas, presida uma comissão que foi fundada exatamente para combater esse tipo de discurso.

E é exatamente isso que Marina Silva vem dizendo desde que surgiu a polêmica, basicamente, "ele não está no lugar certo, não por ser evangélico, mas por defender o que defende". Marina tem se esforçado para ponderar que o problema não é a religião de Feliciano, mas o uso que ele faz da religião para incitar o ódio e o preconceito para com toda e qualquer alteridade. A questão é que ele está em um lugar historicamente ocupado por pessoas que pensam e defendem ideias exatamente opostas às suas e está despreparado para exercer a função que essa comissão tem exercido desde que foi instituída: lutar pelos direitos das minorias. Ou seja, estamos diante de uma situação onde os representados se rebelaram contra um porta-voz, que, de fato, não os representa adequadamente. Mas isso não tem nada haver com a sua religiosidade (ou pelo menos não deveria ter).  

Agora, o fato dos governistas fazerem uso deste ponderamento para tentar deslegitimar uma provável candidatura da Marina é anti-ético e injusto (ver matéria publicada recentemente na Carta Capital). Ainda mais vindo de quem vem. Afinal, foi a 'política de alianças' do Governo Dilma que levou Feliciano a ocupar a presidência da Comissão de Direitos Humanos: negociar cargos públicos como se fossem 'bens partidários' dá no que dá.

Mas esse discurso de "denúncia" em relação à opção religiosa da Marina Silva - que é evangélica por opção de vida - revela, de fato, um preconceito subliminar que nos remete às nossas heranças católicas. Afinal, nunca vi ninguém reclamar do fato de um candidato ser "católico", por exemplo, apesar da nossa história estar repleta de presidentes católicos. O fato de um crucifixo ter lugar de destaque no STF e em outros ambientes governamentais não parece gerar a mesma polêmica.

Aliás, não foi Dilma que, nas últimas eleições, retrocedeu no debate sobre o aborto para não enfrentar os eleitores cristão (sejam eles evangélicos ou católicos)?


Ora, não entendo porque um católico assumido - seja ele praticante ou não - pode exercer o mandato de presidente sem ter sua religiosidade questionada enquanto membros de outras religiões são perseguidos devido à sua opção religiosa?

Marina, por diversas vezes, já declarou que será presidente de todos e não apenas dos evangélicos. De fato, em nenhum momento, ela se colocou como representante desse setor da sociedade. Inclusive, sua trajetória pessoal demonstra claramente que as suas raízes políticas não residem no movimento evangélico, mas no movimento dos seringueiros do Acre, nas alas mais à esquerda do antigo PT e no socioambientalismo. Basta analisar sua trajetória política para perceber esse fato.

Quem promove o discurso 'alarmista' sobre uma possível eleição de Marina Silva como presidenta do Brasil pelo simples fato dela ser evangélica está sendo preconceituoso (ou partidário), o que é, de fato, algo bastante previsível diante de um ambiente político extremamente intolerante para com toda e qualquer alteridade.  

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