quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Os "Acumuladores": reflexões sobre a sociedade de consumo


A série de TV "Os Acumuladores" aborda pessoas obcecadas em acumular objetos. A cada semana são apresentados dois casos "críticos" de "acumuladores" que vivem no meio de milhares de objetos adquiridos durante a vida: presentes de amigos, utensílios de uso diário, roupas, documentos, revistas, livros, calçados, carros, eletrodomésticos, e tudo que pode ser acumulado durante dezenas de anos. A quantidade e variedade de coisas que são acumuladas é tão grande que os próprios acumuladores não sabem tudo que possuem. Os objetos se misturam de maneira caótica e desordenada, formando montanhas intransponíveis de bugigangas de toda espécie. A situação é tão grave que, após certo tempo, os próprios acumuladores já não conseguem encontrar suas coisas. Os objetos vão ficando uns por cima dos outros, formando divisórias em quartos e salas, invadindo o banheiro, a garagem, a cozinha e até mesmo o quarto de dormir. Em algumas situações, fica difícil alcançar certos lugares do ambiente, que deixam de ser habitados, tornando-se verdadeiros depósitos.  

Segundo os psicólogos que estudam o fenômeno, esse comportamento tem origem numa espécie de "bloqueio psicológico" que impede os acumuladores de se desfazer de coisas adquiridas durante a vida. Em sociedades de alto consumo, como os Estados Unidos (todos os casos apresentados no documentário são de norte-americanos), as pessoas geralmente adquirem centenas de objetos todos os anos. Na maioria dos casos, esses objetos são dispensados quando outros são adquiridos, passando a circular por redes informais até acabarem esquecidos no fundo de algum lixão urbano. O problema dos "acumuladores" é que eles rompem com essa dinâmica, pois são incapazes de se livrar das coisas adquiridas, acumulando-as durante uma vida inteira.

O mais interessante é que o programa mostra a incapacidade dessas pessoas de se livrarem de suas coisas, mesmo quando contam com a ajuda de um psicólogo que busca conscientizá-las dessa necessidade. Quando a vítima passa a selecionar, classificar e distribuir os objetos de forma a poder se livrar de alguns deles, podemos ver o seu sofrimento e perplexidade diante da necessidade de escolher o que é ou não descartável. Algumas vivem em casas ou apartamentos completamente abarrotados de objetos de todos os tipos, de forma a impossibilitar ou dificultar a circulação no ambiente. Quando o hábito de acumular atinge solteiros ou casais, a situação pode ser manejada por certo tempo. Mas quando a "doença" ataca apenas uma pessoa, o hábito de acumular acaba afetando a relação com familiares e amigos. "Todos acabam se afastando assim que descobrem", disse um dos acumuladores retratados no programa. Em um dos casos mostrados na TV, por exemplo, a esposa acabou se separando do marido por não conseguir mais lidar com a situação. E olha que eles já haviam tentado de tudo, como morar em casas diferentes e etc. Em situações como essa, o sofrimento e a incapacidade de se livrar dos objetos fica mais evidente ainda, pois as vítimas tentam se livrar das coisas sem obter qualquer sucesso. Elas simplesmente não conseguem se livrar de nada. Tudo pode ter utilidade algum dia, nunca se sabe. Outros artefatos possuem um valor sentimental: um presente que relembra um aniversário; uma carta que marca um período específico da vida; o terno usado no primeiro dia de trabalho e outras tantas razões semelhantes. Essas pessoas se acostumam de tal forma a conviver com esses bens, que a ideia de se separar deles se torna inconcebível. Alguns acumuladores chegam a adoecer quando se livram dos objetos.    

O caso mais conhecido é de dois irmãos que foram encontrados mortos em um apartamento do Harlem, em Nova Iorque, em 1947. Os homens foram soterrados por milhares de objetos acumulados durante décadas. Havia tanta coisa no apartamento, que os objetos formavam divisórias, dando origem a túneis subterrâneos usados para se deslocar no local. A situação foi manejada até o desmoronamento de uma das tantas divisórias "artificiais", quando eles foram soterrados e morreram asfixiados. O fato só foi descoberto dias depois, quando os vizinhos notaram o mal cheiro que provinha do apartamento devido à decomposição dos corpos.

O capitalismo é um "fato social total", no sentido que Mauss dá a essa noção. Um dos seus efeitos é criar subjetividades (ou sujeitos) constituídos "em extensão" com os artefatos que conseguem acumular durante uma vida inteira de consumo cotidiano. É claro que todos nós, certamente, somos constituídos através da relação que estabelecemos, entre outras coisas, com artefatos e aparelhos com os quais convivemos durante nossa vida (além de pessoas, eventos e etc.). Independentemente da forma como esses objetos são adquiridos ou utilizados, eles possuem um valor em nossas vidas. A questão é que esse valor é renovado quando colocamos os objetos velhos e mofados para circular, obtendo outros em seu lugar. Existem coisas que são substituíveis por outras da mesma ordem. Quando compramos um sapato novo é muito comum nos livrarmos daquele calçado velho que já não usamos mais. O mesmo ocorre com outros bens de consumo, como automóveis, roupas e outros objetos pessoais. Sem falar nas coisas que consumimos diariamente, como alimentos e produtos de higiene pessoal. Essa substituição implica no ato de "livrar-se" das coisas que já não servem mais. Mas esse desfazer-se das coisas velhas nem sempre é assim tão simples, pois as pessoas criam vínculos sentimentais com suas coisas. Mas, na maioria das vezes, esse vinculo é projetado apenas em objetos "especiais", que são guardados com "carinho". Os demais são constantemente descartados e passam a circular por outras redes, até o momento em que são abandonados definitivamente e viram "lixo".

Mesmo nessa etapa final da "vida" das coisas, elas ainda podem ser reaproveitadas ou transformadas em outros artefatos, como ocorre com o papel, o plástico e o vidro reciclável. Outras coisas que não são recicladas, no entanto, se decompõem embaixo da terra durante séculos ou milênios. Inclusive, um dos maiores problemas ambientais dos grandes centros urbanos é a quantidade de lixo gerada por uma população de consumidores compulsivos. As substâncias químicas presentes nesses dejetos se infiltram no solo, atingindo os lenções freáticos ou percorrendo canais em direção aos rios e lagos. Mas engana-se quem acredita que o problema do lixo é uma questão unicamente terrestre. A NASA está investindo bilhões de dólares para desenvolver uma tecnologia que possibilite a eliminação do "lixo espacial": dezenas de satélites e outros artefatos tecnológicos  que foram abandonados e que circulam em velocidades altíssimas em torno do planeta.      

Nas sociedades capitalistas o consumo é mais intenso e, com isso, a circulação assume uma dinâmica distinta, criando uma "tensão" entre a vontade de adquirir novos produtos e a necessidade de se livrar de outros devido à limitação de espaço. Muitas vezes, o aumento do patrimônio móvel de uma família pode ser a sua principal motivação para adquirir uma casa mais ampla, com mais espaço para armazenar bens de consumo. Mas em países de alta renda, a lógica é aumentar o ritmo de substituição, desfazendo-se mais rápido das coisas. Em alguns países, como os Estados Unidos e o Japão, as pessoas usam as roupas uma única vez e depois se livram delas, como se fossem descartáveis. Há alguns anos atrás li uma notícia sobre os objetos encontrados diariamente no lixo de Tóquio: computadores, televisores, telefones, celulares e outros artefatos tecnológicos. Mas o mais interessante é que não havia nada de errado com os aparelhos, que estavam funcionando perfeitamente. Esse descarte de objetos novos ocorre porque outros produtos são lançados no mercado diariamente. Foi assim com o velho e bom vinil, com o vídeo-cassete, o computador de "última geração", o "carro do ano" (passado) e outros tantos artefatos tecnológicos que foram substituídos por aparelhos mais novos. Essa reprodução dos objetos, inclusive, está se tornando cada vez mais intensa. Mal adquirimos a última geração de "MP3" e o "MP4" já foi lançado no mercado. Conforme demonstrou Sahlins em um artigo clássico sobre esse tema - "La Pensée Bourgeoise: a sociedade ocidental enquanto cultura" - as mercadorias possuem um valor relativo, pois estão integradas em um sistema de objetos mais amplo. Quando novos produtos são lançados no mercado, os antigos são re-valorizados, tornando-se obsoletos.          

O caso dos "acumuladores" é um fenômeno contemporâneo produzido em sociedade. Essas pessoas não são "anomalias" sem sentido, mas produções de uma cultura que possui no consumo de artefatos  sua dinâmica fundamental. As causas ou razões que levam a esse distúrbio não são unicamente 'individuais', como um desvio de conduta ou uma falha cognitiva ou psicológica; mas, sim, fenômenos coletivos que revelam uma lógica subjacente ao uso e a circulação de objetos no mundo do consumo. Ao romper com a dinâmica de circulação de coisas e artefatos vigente em sociedades capitalistas, os "acumuladores" se tornam casos expressivos da lógica vigente nessas mesmas sociedades, onde os objetos constituem os sujeitos tanto quanto os sujeitos constituem os objetos.      

Um comentário:

elaine disse...

ola vc ja encontrou uma pessoa acumuladora aqui no brasil??
eu conheço uma e bem proxima é triste nos sofremos muito

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...