E olha, que esse preço é bastante caro, de fato, de valor inestimável: a extinção de peixes, pássaros, árvores, insetos e animais que só existem na região; a remoção de comunidades indígenas e ribeirinhas; e a inundação de um patrimônio arqueológico inestimável. Ou seja, em nome do "progresso" - esse emblema totêmico inscrito em nossa bandeira - vamos destruir o nosso patrimônio ambiental, cultural e arqueológico. Ao que parece, estamos diante de um "progresso antropofágico".
Mas o que a reportagem não questiona é a própria ideia do 'progresso'. Desde sempre crescemos ouvindo que o Brasil precisa se desenvolver economicamente e tecnologicamente. Mas será que o problema do Brasil é realmente a necessidade de aumentar o tamanho do bolo? Sim, porque tudo indica que o nosso grande problema não é, por assim dizer, o tamanho do bolo, mas a divisão extremamente desigual do mesmo. Afinal, temos um coeficiente de Gini que está entre os mais altos do mundo: 0,540 (2007). Esse índice mede o grau de concentração de renda em determinada economia, onde o "0" corresponde a uma situação onde a renda se encontra igualmente distribuída e o "1" a uma situação onde toda a renda está concentrada na mão de uma única pessoa. Ao que parece, o grande problema brasileiro é a desigualdade radical. Não adianta continuar o caminho do 'progresso', se os dividendos não são nunca distribuídos e compartilhados. O resultado inevitável dessa fórmula política é o enriquecimento cada vez maior das nossas elites financeiras e dos nossos políticos, que se aproveitam das "mega-obras" do setor hidroelétrico para saquear os tesouros nacionais.
A nossa fixação obsessiva no "progresso" nos impede de pensar e refletir sobre a forma como esse progresso vem ocorrendo nas últimas décadas. Afinal, a ideia de 'desenvolvimento nacional' não é nenhuma novidade, trata-se de uma fórmula governamental que já vem sendo aplicada no Brasil há séculos pelas nossas elites nacionais (talvez seja melhor adjetivá-las de "regionais"). Quem não se lembra do slogan de JK, "50 anos em 5" ou o "milagre econômico" dos militares, na década de 1970? O resultado dessas políticas desenvolvimentistas foi o pior possível: aumentamos o bolo sem dividi-lo.
A questão portanto não é ter que optar entre preservar a natureza e os índios ou continuar o caminho inevitável em direção ao progresso nacional. Mas, sim, refletir qual a melhor forma de desenvolvimento, a maneira mais sustentável e eficaz de nos tornarmos uma sociedade melhor, mais igualitária e justa. Pelo menos, em tese, deveria ser assim.
Mas, de fato, não é. O que temos é um processo histórico de colonialismo interno de caráter antropofágico, baseado em uma percepção do Brasil como fonte de riqueza privada. As análises antropológicas e sociológicas sempre apontaram para essa mistura ou sobreposição entre o público e o privado no Brasil. Mal compreendemos o valor inestimável da biodiversidade e já estamos elaborando formas de comercializá-la ao melhor preço. Estamos diante de um novo "El dorado". No imaginário da elite financeira e política - não raro traduzido como "imaginário nacional" - a Amazônia é uma fonte de energia e enriquecimento pessoal, sem qualquer outro valor. O que importa é aniquilar tudo o quanto antes, retirar dali o máximo que for possível, mesmo que isso resulte, a médio e longo prazo, em uma total extinção da 'sociobiodiversidade amazônica'. O "progresso" é apresentado como um caminho inevitável e sem volta, mesmo que para isso seja necessário levar adiante o genocídio programado contra os povos indígenas e comunidades ribeirinhas, que sempre levaram a pior nessa história de desenvolvimento.
Conforme mostra a reportagem, diante do inevitável 'preço do progresso', cabe aos cientistas contabilizar as perdas e, aos jornalistas, registrar a tragédia 'ao vivo'. Qual será o nosso papel nesse enredo? Telespectadores passivos de uma narrativa cinematográfica? Vítimas de um caminho irreversível? Testemunhas do percurso "inevitável" da história? Qual será o papel de nossos filhos? Herdeiros ou vítimas do progresso?
Nos escritórios e gabinetes de Brasília, as decisões governamentais são tomadas com base unicamente em cálculos, números, estatísticas, previsões e análises de conjuntura. Diante dos números, os seres humanos de carne e osso desaparecem. Os burocratas estatais estão imersos em um labirinto de documentos, normas, editais, projetos e programas. O tecnicismo burocrático nunca esteve tão em moda. O cronograma conturbado da política partidária - alimentado pelo sensacionalismo superficial e anti-ético da grande mídia - não dá espaço para a reflexividade. E o "progresso" é uma dessas categorias do pensamento que parecem estar por toda parte, absorvido e transformado por redes diversificadas de coletivos, que traduzem essa ideia a partir de seus interesses políticos e existenciais. A sensação é que estamos percorrendo um caminho prescrito em nossa mitologia 'moderna', uma via de mão única, sem desvios ou alternativas. O estilo apocalíptico da reportagem transmite e expressa muito bem esse sentido de 'inevitabilidade'.
Mas para além das torres do Castelo - imagem usada por Kafka para descrever a máquina estatal, com seus labirintos, surtos rizomáticos e eventos surreais - existe o mundo da vida. Abaixo dos nossos pés entramos em contato direto com a terra que habitamos diariamente, onde encontramos as pessoas que vivem ao nosso lado, as coisas que chamam a nossa atenção, os ritmos locais, os desafios, a vontade existencial de persistir. As pessoas continuam buscando alternativas, criticando, defendendo ideias e questionando o nosso caminho (aparentemente inevitável) em direção ao progresso antropofágico. Mesmo diante do autoritarismo totalitário - camuflado sob o véu de 'democracia representativa' - a voz das minorias (políticas) clama por justiça e por reconhecimento existencial e político.
Infelizmente, no entanto, os gritos da resistência não são ouvidos por aqueles que governam e fazem as leis em nosso nome, os nossos representantes políticos. De fato, já faz algum tempo que há algo errado com a nossa democracia, outra ideia que importamos rapidamente e traduzimos conforme o sabor dos trópicos. Mas algo está se perdendo no caminho. A corrupção é apenas o indício mais significativo de uma crise muito mais ampla, de qualidade, por assim dizer, 'estrutural' (e estruturante). Enquanto não nos dermos a chance e o tempo para refletir de forma crítica sobre as tradições políticas que herdamos nos últimos séculos, nunca seremos capazes de avançar e realmente progredir, no sentido de atingir um 'lugar' no tempo e no espaço que nunca conquistamos antes. Quando não há tempo para a reflexividade, o progresso se dá em círculos; temos a sensação de estar nos movendo sem nunca sair do lugar que ocupamos na história.
Apesar de todo esse sensacionalismo romântico em torno da ideia de 'progresso', o que vemos por toda parte é como esse pensamento se traduz em 'reprodução' de um plano ou projeto arbóreo de caráter predatório e eficácia duvidosa (para não dizer desastrosa). Enquanto nossos antigos colonizadores buscam por alternativas para superar os efeitos nefastos gerados por um modelo insustentável, nós insistimos em refazer o mesmo caminho em direção ao 'progresso' destrutivo da humanidade e do humano. Ao que parece, a mentalidade colonizada é um 'espelho' de vaidades privadas e, com isso, reflete apenas a posição subordinada que lhe é projetada do exterior.
2 comentários:
Vamos parar Belo Monte!
Boa, Diego, a impressão que tenho é que estamos em rota de colisão, num caminho sem volta rumo ao 'progresso'.. Mas, como você bem observou, sem 'nunca sair do lugar'...
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