quinta-feira, 3 de novembro de 2011

A energia hidroelétrica é realmente a única alternativa para o desenvolvimento nacional?

Na ciência, como na vida, o desenvolvimento de novas ideias ou a concepção de novos objetos de reflexão é um processo associado à imaginação humana. Sem a projeção de novas possibilidades, i.e., sem a eleição de novos pressupostos sobre o mundo, a ciência não avança por novos caminhos e territórios. O ser-aí-científico é baseado no deslocamento e na descoberta. Mas para que essa descoberta seja possível, é preciso imaginá-la como um pressuposto que nos 'encaminha-mundo', que nos conduz na direção de outros objetos, conceitos, teorias ou abordagens metodológicas. Uma ciência (ou um cientista) sem imaginação só (re) produz as áreas e objetos já existentes, mas sem nunca abrir novas áreas de conhecimento e desenvolvimento tecnológico. Mas essa 'abertura' imaginativa de novos mundos possíveis é extremamente dependente dos incentivos e das políticas governamentais, e essa afirmação é válida para os mais diferentes setores de produção de conhecimento científico e tecnológico.

Pois bem, a área de desenvolvimento de novas fontes de energia elétrica não poderia ser diferente. Muitas pessoas argumentam que, atualmente, a energia hidroelétrica é a fonte mais sustentável (ou limpa), pois representa um avanço em relação a outras fontes mais poluidoras. Da mesma forma, argumenta-se que a construção de mega-projetos hidroelétricos é algo inevitável, pois necessário para garantir o desenvolvimento de uma economia emergente como a brasileira. Nesse contexto, todos os esforços do setor científico estão voltados para a concepção e desenvolvimento de novas tecnologias na área de geração de energia hidroelétrica, setor que recebe maior apoio e incentivo tanto do setor industrial como governamental. Diante dessa conjuntura política, as demais fontes de energia são deixadas de lado, como alternativas secundárias.

O atual modelo de geração de energia hidroelétrica é extremamente "arbóreo", ou seja, está baseado em uma ideia muito comum no pensamento ocidental "moderno": um centro de propagação ligado a uma rede hierárquica de transmissão. Mega-projetos localizados na Amazônia - como Belo Monte - geram energia para garantir o desenvolvimento das grandes metrópoles das regiões sul, sudeste e nordeste. Mas para que isso seja possível, é necessário construir extensas redes de transmissão para que a energia chegue até as fábricas e casas de lugares como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Fortaleza etc . Esse é o modelo adotado pelo governo brasileiro, pelo menos, desde o início da década de 1950. Um dos maiores problemas desse modelo é a quantidade de energia elétrica que se perde nas redes de transmissão, que chega, em alguns casos, a quase 30% da energia gerada nas hidroelétricas.

Com isso, muita "imaginação científica" tem sido canalizada para superar esse gargalo. Da mesma forma, outro problema diz respeito à qualidade do maquinário usado nas centrais hidroelétricas, motivo pelo qual o governo incentiva a concepção de máquinas mais modernas, que possam gerar mais energia elétrica do que as atuais. Com isso, hoje em dia, a maior parte das pesquisas nessa área estão centradas nesses dois eixos de desenvolvimento científico.

Mas isso, é claro, por total falta de capacidade de imaginação dos nossos governantes. Falta de imaginação essa que está diretamente associada a certo colonialismo interno, ou seja, a atitude de uma mentalidade submissa que não consegue visualizar novos caminhos, mas apenas seguir caminhos já abertos pelos centros imperialistas. O atual modelo hidroelétrico brasileiro representa um aperfeiçoamento de modelos adotados nos Estados Unidos, na China e na Europa, sem grandes avanços tecnológicos. Nada de novo, tudo velho. Uma ciência e uma tecnologia baseadas na reprodução de técnicas e teorias concebidas nas grandes potencias, cabendo aos nossos cientistas a promoção de pequenos aperfeiçoamentos. Mas essa insistência em seguir modelos estabilizados está baseada, basicamente, em duas crenças equivocadas.

"A energia hidroelétrica é a única alternativa viável diante da atual demanda por desenvolvimento"

Primeiro, a crença de que a energia hidroelétrica é a única alternativa viável diante da atual demanda por desenvolvimento econômico. Basicamente, a ideia de que o Brasil precisa crescer (e gerar empregos), principalmente (nenhuma novidade aí), nas regiões sul, sudeste e nordeste, mais especificamente, nas grandes mega-metrópoles localizadas na estreita faixa litorânea. Para isso, torna-se necessário construir centros de geração de energia hidroelétrica na Amazônia e no Centro-Oeste, para depois transportar essa energia até o "centro" do país. Desta forma, essas regiões continuam sendo tratadas como meras fornecedoras de matéria prima (neste caso, energia hidroelétrica) para o desenvolvimento das regiões (que já são) mais desenvolvidas. Essa canalização dos recursos energéticos do norte para o sul e nordeste do país acaba refletindo na direção do fluxo de migração humana no território nacional, que segue o mesmo sentido das redes de transmissão, buscando acessar os benefícios tecnológicos e de serviços gerados por essa canalização da energia nessas regiões historicamente beneficiadas pelo planejamento governamental. O resultado todo mundo conhece: concentração populacional nos grandes centros urbanos, o que gera, por si só, uma série de problemas adicionais. Este é o caso dos altos índices de pobreza e criminalidade, os problemas de infra-estrutura etc.

Tudo isso é um efeito de uma mentalidade governamental extremamente hierárquica e arbórea, que só consegue pensar um Brasil feito de "centros econômicos" e regiões marginais (porque marginalizadas nas políticas publicas "nacionais"). De fato, a a situação que vivemos no setor hidroelétrico reproduz uma mentalidade que também vem produzindo grandes desastres nas áreas de planejamento urbano. Basta olhar para atual crise de infra-estrutura vivenciada em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Enquanto isso, as demais regiões continuam sendo tratadas como meras fornecedoras de matéria prima (energia e capital humano).

Ora, a geração de grandes hidroelétricas é o resultado de uma política que valoriza a construção de grandes empreendimentos (olha o interesse econômico aí!). Mas o Brasil possui um imenso território, com um extenso litoral marítimo. Porque, então, não imaginar um outro modelo de geração de energia? Imagine a seguinte situação. Ao invés de construir grandes hidroelétricas (que geram grandes impactos sociais e ambientais) e depois ter que transmitir essa energia para a faixa litorânea, porque não investir em uma rede descentralizada composta por outras fontes de energia (eólica, marítima etc.), ao longo de todo território nacional.

Para que isso seja possível, teríamos que imaginar outro Brasil, onde o desenvolvimento é de caráter sustentável e não está centralizado apenas na estreita faixa litorânea, mas também nas capitais e cidades das demais regiões brasileiras. Neste modelo - muito menos arbóreo - as fontes de energia estão espalhadas por todo o território e não concentradas em pontos específicos. Ao elegermos esse novo modelo, conseguimos imaginar outras tantas iniciativas.

Por exemplo, o governo poderia incentivar a população (e também as empresas e fábricas) a construir pequenos terminais de geração de energia solar. Uma casa habitada por uma família de cinco pessoas, por exemplo, poderia diminuir em até 30% o seu consumo de energia se pudesse contar com um sistema próprio de captação da energia solar. O mesmo é válido para as fábricas, edifícios e empresas, que poderiam construir usinas maiores. O incentivo governamental poderia vir na forma de dedução de impostos na base produtiva, barateando os custos da compra dos aparelhos pela população. Mas, para isso, seria necessário ter um pouco mais de imaginação. Inclusive, havendo uma demanda nesse sentido, poderíamos visualizar uma situação onde os cientistas buscariam desenvolver aparelhos de captação com maior capacidade de geração etc.

Ao mesmo tempo, o governo federal poderia investir os recursos disponibilizado na construção de grandes obras como Belo Monte na fabricação de pequenas usinas de energia eólica, que poderiam ser distribuídas no nosso extenso território, ao longo das estradas e rodovias. Da mesma forma, poderíamos investir no desenvolvimento de captadores de energia marítima, como vem fazendo o governo japonês há décadas. Isso não impediria ao governo continuar investindo no aperfeiçoamento dos cabos de transmissão de forma  a diminuir a perda de energia no processo de deslocamento, possibilitando uma economia real que poderia chegar a um aumento de incríveis 20% da nossa capacidade energética atual. Só com essas iniciativas, o governo já conseguiria gerar mais energia do que a que será gerada por Belo Monte. Isso sem falar nas políticas de sensibilização e educação da população para economizar energia, o que poderia ocorrer, por exemplo, através de incentivos setoriais para a troca de eletrodomésticos, possibilitando a compra de aparelhos mais econômicos. Sem falar na promoção de práticas e técnicas voltadas para a economia de energias nas casas e fabricas.

Essa nova conjuntura política - marcada por uma mudança de mentalidade governamental - levaria a um investimento científico na concepção de novas tecnologias para a geração de energia solar, eólica e marítima, bastando para isso que o governo brasileiro destinasse a mesma energia política para incentivar avanços científicos e tecnológicos nessas áreas do conhecimento. Havendo demanda por esses serviços, a imaginação científica passaria a produzir novos modelos tecnológicos, o que possibilitaria um aperfeiçoamento da tecnologia atualmente disponível.

Mas você poderia se perguntar porque, então, nada disso acontece? Ora, porque existem setores da nossa economia que ganham muito dinheiro com a manutenção da conjuntura atual, beneficiando-se da falta de informação de boa parte da população. As empresas que constroem esses mega-empreendimentos como Belo Monte ganham milhões de dólares com isso. Uma das formas que esses empresários possuem de influenciar as decisões governamentais é no momento de financiamento das campanhas eleitorais, quando se estabelecem vínculos entre os interesses desses setores e de "seus" candidatos. Ora, é claro que a cobrança desses "investimentos" (durante a campanha eleitoral) é realizada no momento de aprovação de grandes projetos como Belo Monte.

Quem sai perdendo com tudo isso? Você, contribuinte honesto que acredita fielmente que essa é a única alternativa para o país continuar crescendo e se desenvolvendo.

Para mudar essa situação seria necessário promover um amplo debate nacional sobre a nossa atual matriz energética. Ora, se para o Brasil continuar crescendo economicamente é necessário gerar novas fontes de energia, a população como um todo tem o direito de discutir a melhor forma de fazer isso. Essa questão não pode ser tratada pelo governo de forma autoritária, pois é de interesse de toda nação brasileira e não apenas de um pequeno grupo de empresários. Enquanto a questão continuar sendo tratada como uma luta entre os índios/ambientalistas X governo desenvolvimentista nunca vamos conseguir entender o que realmente está em jogo na construção de Belo Monte. Diante isso, um governo verdadeiramente democrático tentaria construir um espaço de discussão com os diferentes setores da nossa sociedade, buscando alternativas viáveis a médio e longo prazo. Não é isso que vem fazendo Dilma e seus assessores, que preferem silenciar os setores insatisfeitos com ações de caráter visivelmente anti-democrático.          

"A usina hidroelétrica é uma fonte de energia 'limpa'"

Segundo, existe a crença de que as usinas hidroelétricas são fontes "limpas" de geração de energia. Esse pressuposto está baseado unicamente no cálculo da quantidade de poluição jogada na atmosfera. Nesse sentido, fica claro que as usinas hidroelétricas não produzem tantos poluentes como as usinas termoelétricas, que geram energia a partir da queima de carvão, petróleo ou gás natural. Mas ao alterarmos esse cálculo descobrimos que essa fonte não é, de fato, assim tão "limpa". Afinal, a construção de uma hidroelétrica gera uma série de impactos ambientais e sociais a médio e longo prazo. A construção dos reservatórios de água modifica o meio ambiente local, exigindo grandes deslocamentos populacionais. A alteração do curso do rio e do fluxo hídrico altera para sempre os ecossistemas locais, gerando grande impacto nas composições populacionais das espécies que vivem na região.

Um dos primeiros e mais importantes núcleos de ação política do Movimento dos Sem Terra, por exemplo, tem sua origem nas famílias de "sem-terra" que foram deslocadas devido à construção da hidroelétrica "Passo do Real", na década de 1970/80, na região norte do Rio Grande do Sul. O mesmo ocorreu em outras regiões brasileiras, principalmente, nos estados de Santa Catarina e São Paulo. Os "afogados do Passo Real", conforme essas pessoas são até hoje denominadas, formaram o primeiro exército de sem-terras da história deste país. O número de "desabrigados" por obras estatais cresceu tanto nas últimas décadas a ponto de dar origem a outro grande movimento social, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Mas se formos mais a fundo no nosso raciocínio, podemos inferir que outros fenômenos sociais - como a criminalidade, a crise da infra-estrutura urbana, o aumento da pobreza nas grandes metrópoles e etc. - tudo isso é o efeito de uma mentalidade política que privilegia o desenvolvimento das grandes metrópoles da faixa litorânea em detrimento das demais regiões do Brasil. Um dos fatores fundamentais para que essa política desenvolvimentista (de caráter arbóreo) seja viável do ponto de vista prático é que essa concentração de desenvolvimento precisa ser sustentada por uma canalização da energia elétrica e humana para esses centros populacionais.

Trata-se, como podemos ver, de uma política forjada nas décadas de 1930/40, mas que conheceu o seu auge nos anos de chumbo da ditadura militar. Por ironia da história, são exatamente aquelas pessoas que mais combateram a política tecnicista e autoritária dos governos militares (pessoas como Dilma, Lula e FHC) os primeiros a adotarem (sem maiores alterações) a mentalidade política da caserna, com seus autoritarismos e seus abusos de poder.

    

Um comentário:

tatuapedro disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...