O atual governador, André Puccinelli (PMDB), é fortemente vinculado com a elite rural do estado. Além de ser acusado de coordenar um audacioso plano de pagamento de propina para parlamentares e corrupção ativa e passiva, o governador ficou famoso por conclamar, em maio de 2010, todos os setores "ricos" do MS a "serem mais nacionalistas e se unirem na luta contra os sem terra e os povos originais". Se, por um lado, Puccinelli tem se utilizado de contatos em Brasília para garantir a defesa dos interesses dos fazendeiros, o governo Dilma precisa do atual governador e sua base do PMDB para manter a "governabilidade" do país e viabilizar a sua reeleição em 2014.
[Vale lembrar que o ex-governador, José Miranda dos Santos (também conhecido como "Zéca do PT"), é filho de Orsirio Santos, comandante de uma antiga "Captura" que, em tese, foi formada para perseguir bandoleiros, mas que também perseguiu e matou índios naquela região, conforme aponta o estudo "Coronéis e Bandidos em Mato Grosso (1889-1943)", de Valmir Correia (1995), mencionado no laudo antropológico dos professores da UFGD. Ao que parece, nessa região, o ofício selvagem e bárbaro de "matador de índios" é transmitido de pai para filho, numa espécie de 'legado familiar maldito'. Mas não é só de manter a "tradição familiar" que o ex-governador é acusado. Constam na justiça vários processos de improbidade administrativa, um amplo histórico de denúncias de crimes contra o poder público, como desvio de recursos, corrupção ativa e passiva, compra de votos de parlamentares e favorecimento dos seus interesses econômicos, assim como de familiares e parentes.]
As alianças políticas que sustentam o atual governo incluem a chamada "ala ruralista", que possui tentáculos em diversos partidos políticos da "base aliada". Esta face sinistra e obscura do Governo Dilma tem produzido uma das maiores contradições da história política brasileira: o fato de um governo que se diz de esquerda estar diretamente vinculado às forças de repressão que dominam a política regional no interior do país. Em situações de conflito aberto, são as vozes da antiga UDR que reemergem com força no cenário político nacional. Vale mencionar que isso se deve, em grande parte, à aliança governista com o PMDB e seus aliados, muitos deles representantes do que há de pior na política brasileira.
Mas essas redes partidárias e governamentais também revelam que o desenvolvimentismo da era PAC está estruturado em bases extremamente conservadoras, alimentado-se do que existe de mais arcaico no cenário político brasileiro. Inclusive, os dados macroeconômicos recentemente revelados reafirmam que o 'progresso', no Brasil, continua sendo conduzido pela aristocracia latifundiária e, em grande parte, à favor dos seus interesses econômicos, agora traduzidos sob a alcunha do "agronegócio", responsável pelo pouco de crescimento que terá o PIB brasileiro em 2013. Uma economia que se quer desenvolver em bases próprias e autônomas não pode ser conduzida pelos setores mais conservadores do país, sob o risco de ser reduzida pelas forças da história a um "desenvolvimentismo neoconservador".
Não quero, com isso, ser injusto com o atual governo, que tem, em outros aspectos, conduzido ações importantes. No entanto, não podemos deixar de visualizar uma agenda política extremamente conservadora no campo dos direitos indígenas e demasiadamente insensível às questões sociais e étnicas. Reuniões e ações emergenciais convocadas sob o saber amargo da polêmica e do conflito aberto revelam a total ausência de um planejamento e de uma ação preventiva nos principais focos de conflito socioambiental no Brasil. Conforme aponta estudo realizado pela FUNAI, existem hoje mais de 50 pontos de conflito fundiário envolvendo índios e ruralistas. Apesar da realização desse mapeamento inicial, o governo federal não possui um planejamento efetivo para enfrentar o problema, muito menos uma ação coordenada. Por outro lado, a recente exclusão do controverso caso "Belo Monte" da agenda política da secretaria de direitos humanos da presidência da república revela também um despreparo técnico no tratamento de temas mais emergentes associados aos direitos humanos e ambientais coletivos.
Infelizmente, não se trata da primeira tragédia envolvendo lideranças indígenas. Outros conflitos estão ocorrendo todos os dias em outras regiões do país. No mesmo estado, em Dourados, índios da etnia Guarani-Kaiowá enfrentam diariamente os abusos e as violências cometidas por agentes do agronegócio, que contam com o total apoio policial e judicial da elite política local e seus representantes governamentais.
No Pará, na região de Altamira, índios de diversas etnias - entre eles os Kayapó e os Munduruku - ocuparam o canteiro de obra da Usina Hidroelétrica Belo Monte. Eles exigem que o governo federal respeite os seus direitos de 'livre consentimento' em caso de obras com impacto direto em suas vidas, conforme prevê a OIT 169, assinada pelo governo brasileiro.
Os fortes vínculos político-partidários do Governo Dilma com a elite política do estado do Mato Grosso do Sul - a mesma elite latifundiária que financia e promove violentas ações genocidas contra diversas etnias indígenas e camponeses sem terra que vivem na região - impede que o governo federal, por intermédio da PF, atue como uma força do poder público destinada à resguardar o 'estado de direito' proclamado na Constituição de 1988. Afinal, a nossa carta constitucional prevê, entre os seus princípios estruturais, o dever do governo em garantir e defender os interesses das minorias civis contra toda e qualquer forma de abuso e violência que possa ser cometida por setores com maior poder econômico e político. Toda a nossa legislação trabalhista está baseada no princípio de que "tratar os diferentes de forma diferenciada" é o único instrumento de garantia da igualdade de direitos prevista na constituição. O mesmo pressuposto jurídico ganhou materialidade em diversos artigos da CF de 1988, como é o caso dos artigos 216 e 231, entre outros; na instituição do Ministério Público como órgão destinado a proteger os direitos da sociedade civil contra toda e qualquer forma de abuso de poderes estatais e civis; e na recém editada lei de cotas raciais e sociais na universidade pública. Esses preceitos existem porque a igualdade em um estado de direito é uma garantia constitucional e não histórica. Trata-se de algo que, para se efetivar na prática, depende em grande parte da ação do poder público, e não de sua omissão ou 'neutralidade'.
Uma breve análise dos dispositivos jurídicos atualmente vigentes - sem falar nos tratados e acordos internacionais assinados pelo governo brasileiro - não deixa dúvida de que caberia ao governo federal, através das instituições competentes, garantir que o processo político e judicial transcorra sem prejudicar ou acarretar em qualquer forma de perseguição ou violência cometida contra grupos diretamente envolvidos no conflito, principalmente, os índios, devido à sua vulnerabilidade frente ao ataque anônimo das forças locais de repressão.
Caberia ao governo federal buscar a assessoria de 'especialistas' que acompanham o conflito na região, pois a CF prevê um tratamento "diferenciado" aos índios, devido aos seus direitos específicos associados ao reconhecimento da sua identidade étnica e cultural diferenciada. Essa ação policial deveria ser coordenada por uma equipe que incluísse membros do Ministério Público Federal, representantes de entidades civis organizadas, membros da Comissão de Direitos Humanos, jornalistas, organizações internacionais de direitos humanos, organizações indígenas locais e regionais, técnicos e funcionários da FUNAI, além de especialistas em etnologia indicados pela Associação Brasileira de Antropologia.
Nada disso, no entanto, foi feito. Mais preocupada em anunciar a retórica e o profetismo do desenvolvimentismo, o governo Dilma reproduz a mesma mentalidade política autoritária dos militares, que hoje sabemos - através dos trabalhos desenvolvidos pela Comissão da Verdade - perseguiram e violentaram a integridade cultural e física dos povos indígenas brasileiros.
Esse total despreparo e insensibilidade do Governo Dilma e seus mandatários diante dos conflitos fundiários e étnicos que estão ocorrendo em diversas regiões do Brasil - conflitos originados, em grande parte, na política desenvolvimentista da era PAC e nos subsídios governamentais concedidos aos agentes que atuam nas frentes de expansão da sociedade nacional - demonstram uma carência do governo federal no planejamento das ações governamentais associadas ao "desenvolvimento", o que tem resultado em sérios danos aos povos indígenas e à sociedade brasileira como um todo. É um absurdo que o atual governo federal compartilhe com os ruralistas e seus representantes políticos uma mentalidade bárbara, selvagem e primitiva, que poderia ser resumida na insistência desses setores em tratar a questão fundiária e indígena como "uma questão de polícia", e não de 'política'. Após destruir os vestígios do passado com suas máquinas agrícolas, os ruralistas buscam destruir também os vestígios humanos e sociais de um processo de dominação colonial de longa data, hoje sintetizado de forma expressiva em suas ações políticas contemporâneas de perseguição e violência contra os povos indígenas brasileiros.
Para quem tiver interesse em se informar mais sobre a situação dos índios Terena na fazenda Buriti, recomendo a leitura do laudo mencionado aqui, que foi publicado em livro e pode ser acessado na íntegra no site:
Nenhum comentário:
Postar um comentário