Os alunos matriculados ganham créditos pelas atividades e a iniciativa serve como um instrumento sustentável de geração de renda para a comunidade, que recebe uma taxa "comunitária" de U$ 400,00 por aluno, além de recursos repassados para as famílias e pessoas que participam diretamente nas atividades. Neste ano, o curso gerou cerca de R$ 10 mil em recursos disponibilizados diretamente para a comunidade, que possui grande demanda por iniciativas de geração de renda. O custo médio final para cada estudante chega próximo a US$ 3,5 mil, incluindo despesas com deslocamento e estadia.
O alto custo do curso é um dos principais fatores que dificultam a concepção de uma iniciativa semelhante voltada inteiramente (ou em parte) para estudantes brasileiros sediados em universidades federais. Atualmente, dois estudantes da UnB participam do curso como 'alunos visitantes', custeados pela Universidade de Maryland. Estamos buscando ampliar essa participação, seja através da incorporação de novas universidades parceiras, seja através da concepções de novos cursos, com novos parceiros.
A proposta geral do curso consiste em fornecer aos alunos noções fundamentais sobre uma diversidade de temas e disciplinas nas áreas de etnografia, etnologia, biologia e ecologia, buscando aliar o conhecimento didático fornecido no âmbito de seminários e oficinas com a vivência concreta de uma série de atividades desenvolvidas em contexto, nos espaços de habitação da aldeia, das trilhas comunitárias, dos rios e das diferentes paisagens ecológicas que compõem o ambiente local, estimulando em cada participante uma experiência existencial inesquecível. O tópico sobre "Técnicas de Pesca", por exemplo, é ministrado durante uma "expedição" com pescadores pelos diferentes ambientes de pesca existentes na região do entorno da aldeia. Nesse contexto, os alunos apreendem através da observação e experimentação direta das atividades de pesca, na companhia de instrutores e guias mebêngôkre. O mesmo ocorre com outros temas etnológicos e ecológicos abordados durante o curso, que não são apenas ministrados de forma didática, mas experimentados pelos estudantes.
A convivência, por um lado, entre alunos, instrutores e estagiários de diferentes nacionalidades e, por outro lado, entre estes e os guias, instrutores e famílias indígenas que participam diretamente nas atividades promovidas durante o período, resulta em uma experiência de vida que supera as fronteiras linguísticas e socioculturais, constituindo um espaço-tempo de experimentação direta com a alteridade.
Saí de Uberlândia no dia 17 de julho, por volta das 6:00hrs, em um avião pequeno da TRIP que me levou até Belo Horizonte, onde esperei por algumas horas até o horário da conexão em direção à Marabá, onde fiquei de encontrar o restante do grupo. A viagem foi relativamente tranquila, com uma breve passagem pela Serra dos Carajás. A visão aérea da região permite evidenciar o avanço do desmatamento, principalmente, ao sul e sudeste do Pará. Da janela da aeronave, é possível ver com nitidez os campos abertos no meio da mata, agora cobertos por uma pastagem rala que alimenta milhares de animais bovinos. Esses campos formam nódulos interligados por estradas de terra, onde os caminhões transitam levando e trazendo pessoas e coisas das cidades para o interior. Trata-se de uma rede sociotécnica em intensa expansão que forma uma espécie de 'arco do desmatamento', que percorre o sul do Pará, do leste ao oeste. A grandiosidade da mata amazônica, no entanto, ainda predomina na paisagem como um verdadeiro oceano verde que resiste as investidas das frentes desenvolvimentistas. Uma parte considerável do trecho ainda em estado de conservação se encontra no interior da TI Kayapó, o que exige múltiplos esforços de fiscalização e proteção contra o avanço predatório de madeireiros e mineradores. Uma parte desse trabalho tem sido realizado pela AFP, em parceria com a FUNAI e outros parceiros locais.
Cheguei em Marabá por volta do meio dia e encontrei Mayara, aluna da UnB, no aeroporto. Fomos encontrar o restante do grupo em um restaurante, onde almoçamos antes de continuar viagem até Tucumá. O trajeto Marabá-Tucuma está em condições deploráveis, com buracos imensos espalhados por toda parte, exigindo dos motoristas um cuidado redobrado. Levamos certa de 8 horas para percorrer um percurso de 400 km em um micro-ônibus. Chegamos em Tucuma por volta das 22hrs.
No outro dia de manha, a equipe fez uma reunião com os estudantes para apresentação do projeto, programação e exposição sobre a legislação indigenista atual e as diretrizes e regras de acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade (MP 2.186-16/2001). Todos foram advertidos que a iniciativa visa unicamente a realização de atividades de ensino e de vivência extensionista. Os estudantes e instrutores foram informados sobre o compromisso, assumido pelo grupo frente aos órgãos governamentais, de não acessar conhecimentos associados à biodiversidade local, ponto com o qual todos concordaram sem qualquer objeção. Os estudantes também foram esclarecidos sobre os direitos autorais e procedimentos éticos associados aos direitos de imagem e receberam uma série de informações sobre o projeto. Ao final, um documento foi redigido e assinado por todos os integrantes do grupo, manifestando conhecimento sobre a legislação brasileira e o seu comprometimento em respeitá-la em todos os seus aspectos.
Por volta das 16hrs, eu, Kurt (estagiário canadense) e Tiago (instrutor mebêngôkre) partimos de avião para a aldeia A'Ukre, onde aguardamos até o dia seguinte pelo restante do grupo. A chegada na aldeia foi acompanhada por um grupo de crianças e mulheres que vieram nos receber na cabeceira da pista de terra. Também fomos recebidos por um dos caciques da aldeia e por Pat-i e Mecangô, instrutores mebêngôkre responsáveis por nos auxiliar com o curso.
Após montarmos nossas barracas na casa do projeto, fomos assistir um jogo de futebol no campo principal da aldeia, localizado ao lado da pista de pouso. Os mebêngôkre da aldeia A'Ukre, assim como seus parentes de outras aldeias kayapó da região, adoram jogar futebol, esporte que costumam praticar quase todos os dias, ao final da tarde. Eles participam todos os anos dos jogos municipais nas cidades de Tucuma e Redenção.
Atividades do Curso de Campo (2012)
Assim que os demais integrantes chegaram na A'Ukre, o coletivo inicial de estudantes foi dividido em dois grupos menores, sendo que o "grupo A" permaneceu na aldeia junto comigo, Laura, Phil e mais dois instrutores mebêngôkre e o "grupo B" foi de barco até a base de pesquisa Pinkaiti, acompanhados por Barbara, Pingo e um grupo de guias mebêngôkre.
No dia 24 de julho, o "grupo B" (acompanhados por dois estagiários canadenses) retornou para a aldeia e o "grupo A" (acompanhado pelo instrutor Phill) se deslocou até a base de pesquisa. Com isso, todos os estudantes tiveram a oportunidade de desfrutar da programação de atividades tanto na área de ecologia/biologia como na área de etnologia.
Segue abaixo a lista de atividades vivenciadas pelos alunos do curso durante o período de permanência na aldeia A'Ukre e na base de pesquisa Pikaiti.
Módulo de Etnologia Kayapó - Aldeia A'Ukre
Instrutores: Laura Zanotti, Diego Soares e Phill Nash
- Tópico "Vivência na Roça e Agrobiodiversidade mebêngôkre": visita a roças mebêngôkre e debate com os alunos e guias indígenas sobre a diversidade de plantas e variedades cultivadas na roça ;
- Tópico sobre mitos e histórias associadas às plantas cultivadas na roça;
- Tópico "Vivência em Trilhas na Mata", caminhos comunitários utilizados na caça e na coleta de recursos diversos (realização de uma trilha de 28 km ou 12 horas até uma cachoeira);
- Tópico "Paisagens da Aldeia": caminhada pela aldeia e oficina sobre ordenação sociocultural do espaço e a noção de "paisagens indígenas";
- Oficina de Pintura Corporal seguida de seminário sobre "Gênero, pessoa e corporalidade entre os Mebêngôkre-Kayapó";
- Tópico "Rituais e Vida Cerimonial": participação em danças e rituais que integram a vida cerimonial dos mebêngôhre da A'Ukre e discussão/debate com os estudantes sobre o tema;
- Tópico "Educação Indígena": seminário/oficina com professores mebêngôkre da A'Ukre sobre a educação indígena na comunidade;
- Tópico "Saúde Indígena": seminário/oficina com profissionais de saúde e agentes indígenas de saúde sobre o atendimento na aldeia;
- Tópico "Vida e Cotidiano na Aldeia": realização de debates sobre relações sociais inter-familiares, entre famílias matriarcais (as "Casas"), relações geracionais e de gênero no cotidiano da aldeia;
- Tópico "Técnicas de Pesca": realização de 'expedições de pesca' e debate sobre técnicas e recursos pesqueiros com os guias/instrutores mebêngôkre.
Módulo de Biologia/Ecologia - Base de Pesquisa Pikaiti
Instrutores: Adriano Jerozolimski e Barbara Zimmerman
- Trilhas Ecológicas na área da base de pesquisa, com realização de seminários sobre temas associados à ecologia e ao desenvolvimento sustentável;
- Sessões de Vídeo (Ex: "The Kayapó", T. Turner) acompanhadas por debate com guias mebêngôkre sobre o (s) tema (s) abordado no filme ou documentário;
- Seminário sobre projetos e fontes de sustentabilidade e a sua viabilidade sociocultural e ecológica (Castanhas, Sementes de Cumaru, Artesanato, etc.);
- Trilha até a Cachoeira e tópico sobre técnicas mebêngôkre de pesca e caça;
- Trilhas e atividades de observação da vida animal noturna nas imediações da base de pesquisa e na cachoeira;
- Seminários sobre projetos e atividades desenvolvidas pela Associação Floresta Protegida (AFP);
No dia 29 de julho, os dois grupos de estudantes, estagiários e instrutores se reencontraram na aldeia A'Ukre para participar da programação final do curso. Após a realização de uma feira de troca e compra de artesanato envolvendo estudantes e a comunidade da A'Ukkre, os homens mebêngôkre realizaram uma dança na praça central (com a participação de alguns estudantes e instrutores). Depois disso, foi realizado uma roda de avaliação da iniciativa por estudantes e membros da comunidade e uma reunião final entre lideranças indígenas e instrutores do curso.
No dia 30 de julho, o grupo retornou para Tucuma de avião. A tarde foi realizado um seminário com membros da FUNAI Regional, onde as atividades deste órgão público foram apresentadas e discutidas com os estudantes. A noite foi realizado um jantar de finalização do curso, que também contou com a participação de funcionários da FUNAI e colaboradores da AFP.
No dia 31 de julho, pegamos o ônibus de volta para Marabá por volta das 04:00 horas da manha, chegando nesta cidade ao meio-dia, onde eu e Mayara (aluna da UnB) retornamos de avião, respectivamente, para Uberlândia e Brasília. Os demais integrantes do grupo continuaram viagem terrestre até Belém, onde aguardaram entre dois e três dias para retornarem para os locais de origem.
Além de participar como instrutor nas atividades que integram a programação do curso de campo, tive a oportunidade de discutir e planejar com as lideranças mebêngôkre da aldeia A'Ukre o esboço inicial de um programa de pesquisa, ensino e extensão que pretendemos colocar em prática até o final de 2013, a partir de uma parceria institucional entre a UFU e a AFP. A iniciativa, que ainda se encontra em etapa inicial de elaboração, irá integrar projetos na área de inclusão digital, preservação do patrimônio cultural, educação escolar indígena e conhecimentos tradicionais.
Também tive a oportunidade de discutir questões associadas a implantação, em diferentes aldeias kayapós da região, do projeto "Pontos de Cultura Indígena" na TI Kayapó. O projeto prevê a instalação de centros de multimídia nas aldeias, fornecendo a infra-estrutura (computadores, câmeras de vídeo e fotografia, gravadores digitais, acesso à internet via satélite) e uma série diversificada de atividades de capacitação. A iniciativa ainda depende da liberação dos recursos pelo governo e pela instituição executora. Existe uma expectativa que isso venha a ocorrer no próximo ano.
Por último, é importante observar que foi discutido com os demais membros da equipe executora do curso a formalização de uma parceria com a Universidade Federal de Uberlândia em torno de uma segunda versão do mesmo curso de campo, possivelmente a partir do estabelecimento de uma parceria institucional com a AFP, a Universidade de Perdue e a Universidade de Maryland. Vamos buscar, no decorrer do próximo ano, viabilizar tal projeto do ponto de vista institucional e administrativo.
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