"Entre seus livros, talvez O Pensamento Selvagem seja o que mais modificou as formas de pensar para além do círculo de especialistas em etnologia. Sua reabilitação do pensamento primitivo transformou-se em trecho selecionado para todas as antologias do pensamento contemporâneo (Didier Eribon).
Queria mostrar que não existe um fosso entre o pensamento dos povos chamados primitivos e o nosso. Quando, em nossas próprias sociedades, observávamos crenças ou costumes estranhos, que contrariavam o senso comum, nós os explicávamos como vestígios ou lembranças de formas arcaicas do pensamento. Parecia-me, ao contrário, que essas formas de pensamento estão sempre presentes, atuantes entre nós. Muitas vezes lhes damos livre curso. Elas coexistem com formas de pensamento que se apoiam no testemunho da ciência; são igualmente contemporâneas (Lévi-Strauss).
Por exemplo, essa era a comparação que o senhor fazia com frequência entre a bricolagem e o pensamento mítico.
Eu citava a bricolagem como exemplo de modos de pensamento dotados de uma originalidade específica, aos quais não prestamos atenção, ou melhor, pelos quais não temos a mínima consideração, porque nos parecem fúteis ou secundários, quando demonstram mecanismos essenciais da atividade mental e nos põem em pé de igualdade com operações intelectuais bem distantes do que acreditamos ser nossa maneira moderna de pensar. Na ordem especulativa, o pensamento mítico opera como a bricolagem num plano prático; ele dispõe de um tesouro de imagens acumuladas pela observação do mundo natural: animais, plantas, com seus habitats, suas características distintivas, seu emprego numa determinada cultura. Ele combina esses elementos para construir um sentido, como o bricoleur utiliza, diante de uma tarefa, os materiais ao seu alcance para lhes conferir um novo significado, diferente daquele que tinham inicialmente.
Mas esse livro tinha um alcance epistemológico mais amplo...
Era uma tentativa de superar a oposição já clássica na filosofia ocidental entre a ordem do sensível e a do inteligível. Se a ciência moderna conseguiu constituir-se, foi ao preço de uma ruptura entre as duas ordens, entre o que no século XVII chamava-se qualidades secundárias - ou seja, os dados da sensibilidade: cores, odores, sabores, ruídos, texturas - e as qualidades primárias, não tributárias dos sentidos, que constituem a verdadeira realidade. Ora, parecia-me que o pensamento dos povos chamados 'selvagens', que permanecera refratária a essa distinção, conduzia toda a sua reflexão no plano das qualidades sensíveis e conseguia, contudo, construir sobre essa única base uma visão do mundo não desprovida de coerência nem de lógica. E também mais eficiente do que se costuma crer.
O que o senhor chama a "ciência do concreto"...
... uma abordagem que me parecia diferente da ciência, embora comparecendo comparável a ela. Ponto de vista fortalecido, parecia-me, por certas tendências que eu identificava no pensamento científico contemporâneo. Infelizmente, não tenho a menor competência em matéria científica mas as ciências tradicionais da natureza - zoologia, botânica, geologia - sempre me fascinaram, como uma terra prometida onde não teria a privilégio de penetrar. Nos Estados Unidos, comecei a ler assiduamente, e continuei desde então, revistas como Scientific American, Science, Nature - a essas acrescento hoje La Recherche. Não compreendo tudo, longe disso. Mas isso nutriu minha reflexão e sobretudo fiquei impressionado ao constatar que depois de ter por muito tempo proscrito as qualidades secundárias, depois de ter voltado as costas ao sensível, a ciência agora procurava reintegrá-lo. Ela se questiona sobre o que é um odor, um sabor, sobre a forma das flores e sua evolução, sobre a estrutura melódica do canto dos pássaros... Descobre assim, frequentemente, o fundamento objetivo de crendices populares e até de superstições. Contrariamente à tese proposta por Foucault em As Palavras e as Coisas - a de uma ruptura radical entre epistémes - percebo na ciência contemporânea um esforço para recuperar as etapas arcaicas de seu desenvolvimento, para integrar antiqüíssimas sabedorias à sua visão de mundo.
Para estudar a ciência do concreto que caracteriza o 'pensamento selvagem', o senhor mesmo acumulou um volume impressionante de conhecimentos concretos: sobre plantas, animais, clima...
Desde que comecei a escrever O Totemismo Hoje e O Pensamento Selvagem, até o fim das Mitológicas, vivi rodeado de livros de botânica e de zoologia... Aliás, essa curiosidade remonta a minha infância.
No caso em questão, o senhor ultrapassou o estágio da simples curiosidade.
É verdade. Precisei instruir-me em todos esses domínios. Como lembrança, conservo no meu gabinete de trabalho o globo celeste vulgarmente chamado 'cabeça de vitela', que recebi de presente não lembro de que órgão oficial ao qual me dirigia para esclarecer minhas dúvidas. É um instrumento que os astrônomos não utilizam mais, mas que muito me ajudou a para situar as constelações de que tratam os mitos. Os conhecimentos científicos que precisava adquirir não iam além dos conhecimentos de um ou dois séculos atrás! Extraía-os da Enciclopédia de Diderot e D'Alembert, da Zoologia de Brehm e, às vezes, até de Plínio...
Quando se pensa que algumas pessoas puderam criticá-lo por ignorar o concreto!
Ao contrário, presto uma atenção quase obsessiva a todos os pequenos detalhes concretos.
É essa atenção ao concreto que talvez o tenha tornado particularmente sensível ao papel da 'imaginação estética' no jogo das classificações totêmicas que o senhor descreve.
Sim, porque uma das diferenças essenciais entre a maneira como nós refletimos e a maneira como aqueles povos refletem, é nossa necessidade de fragmentar. Apreendemos isso com Descartes: dividir a dificuldade em tantas parcelas quanto forem necessárias, para melhor resolvê-las. O pensamento dos povos chamados primitivos rejeita essa fragmentação. Uma explicação só é válida desde que seja total. Quando procuramos a solução de um problema específico, dirigimo-nos a esta ou àquela disciplina científica, ou então ao direito, à moral, à religião, à arte... Nos povos que os etnólogos estudam, todos esses domínios são ligados. Assim, cada expressão da vida coletiva constitui o que Mauss denominava um fato social total. Ela põe em questão, simultaneamente, todos esses aspectos."
Referência: LÉVI-STRAUSS C. e ERIBON D. 2005. De Perto e de Longe (capítulo 11). São Paulo: Cosac Naify.
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