Essa padronização de pesos e medidas, de sinais e atos, torna possíveis as trocas mundializadas entre o que então se chamava de terra habitada. No espaço desse tempo, nenhuma economia de tal envergadura teria sido capaz de se organizar nem funcionar sem esses números, sem essas operações, não apenas sem as medidas que eles permitem ou pressupõem, mas, sobretudo, sem essa metrologia generalizada. A economia é resultante dela, pelo menos na mesma medida em que a condiciona. Em resumo, sua novidade pressupõe, ou acompanha, no mesmo momento e nos mesmos lugares, a emergência da ciência moderna: em países mercantilistas como a Itália e Flandres, pátrias de Girolamo Cardano (1501-1576) e Simon Stevin (1548-1620), respectivamente. Não que eu acredite, repito, que a economia tenha determinado as descobertas científicas, mas o reagrupamento de um conjunto de técnicas do mesmo gênero, um gênero ao qual procuro dar um nome, condiciona as trocas complexas do comércio realizado em torno do Mediterrâneo na época do Renascimento, assim como a emergência da ciência que herdamos.
(...) O formato diz respeito a homens e coisas, à natureza e à cultura... assim como ao acontecimento, que é seu oposto. Se alguém adivinhar rapidamente o poder que o acontecimento propicia, poderá também perceber seus inconvenientes. Preservar a uniformidade do mensurável certamente permite a eficácia, uma vez que elimina qualquer acidente, mas exclui o acontecimento e impede a novidade.
(...) Quem nunca obedeceu a um horário rígido, previsto com muita antecedência, tanto para o ano como para as horas, matinas, tércias, sextas, laudes, vésperas e completas, quem não saiu de sua cela ao soar dos sinos, não se debruçou sobre o birô para estudar, quem não foi ao refeitório, sempre em fila e, com frequência, em silêncio... O claustro, o pátio do colégio, a fábrica ou o escritório, o estádio ou a prisão... criam um lugar no espaço, contam o tempo, determinam de que maneira preencher os dias e a sequencia das horas, seus monges, internos, marinheiros e equipes vestem uniformes... em resumo, eles formatam o tempo, o espaço e as ações das crianças e dos adultos. Esse programa variou pouco desde a Idade Média até a manha de ontem.
(...) Sem o formato, no qual as formas dizem respeito tanto ao artesão como à sua obra, não há produção. Como é que um atleta alcança o estado que ele designa como 'estar em forma'? Por meio de um treinamento que exige que ele siga uma regra e que se torne um monge; o mesmo acontece com o escritor. Trata-se de uma condição necessária que assegura, pelo menos, um trabalho bem-feito, uma corrida honrosa, um lugar medíocre entre os profissionais. Para a genialidade, porém, ninguém encontrou ainda as condições suficientes. A classificação das ciências e disciplinas, dos artigos e teses, das notas de rodapé, do índice e da bibliografia, a citação conscienciosa e humilde por ocasião do debate... são exigências universitárias que disciplinam a pesquisa e o pensamento. Conforme-se à força coercitiva da formatação... Obedeça ao formato-pai que, invisível e ausente, reina sobre o saber absoluto.
Se seu desejo, porém, é inventar, arrisque-se, livre-se do formato. Faça isso, mesmo que tenha de morrer, transforme-se em filho. As grandes obras conjugam formato e invenção, disciplina de ferro e liberdade: pai e filho."
Referência: SERRES, M. 2008. Ramos (Formato-Pai). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
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