Foi realizado, recentemente, o leilão para a construção da hidroelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA), prevista para iniciar até o final deste ano. Essa obra não é nenhuma novidade, pois já vem sendo pensada pelo Governo desde 1975, quando os militares iniciaram os primeiros estudos para o “Inventário Hidroelétrico da Bacia do Rio Xingu”. Já na década de 1980, quando a Eletronorte deu início aos primeiros estudos sobre a viabilidade técnica do empreendimento, os povos indígenas da região organizaram o “1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu”, quando expressaram para a sociedade e o governo brasileiro seu total desacordo com a construção da hidroelétrica, que teria forte impacto nas suas terras. Junto com isso, ambientalistas e antropólogos que historicamente trabalharam ao lado desses povos promoveram eventos buscando sensibilizar os organismos internacionais para o que estava ocorrendo no Brasil, conseguindo que o FMI suspendesse o empréstimo que pagaria a construção da obra: sem dinheiro, o Governo Brasileiro se viu obrigado a recuar. Alguns anos depois, no entanto, o projeto da hidroelétrica foi reformulado e incluído no Programa Avança Brasil do Governo FHC, dando início a uma nova rodada de discussão. Apesar de o presidente Lula ter criticado, quando ainda era candidato, a tese de que a única forma de resolver o impasse energético brasileiro é através da construção de hidroelétricas, o projeto foi integrado ao PAC como uma das suas principais obras. A partir daí, seguiu-se uma série de descasos com os procedimentos constitucionais de análise dos impactos sociais e ambientais da obra.
Com o desvio do rio e a criação de um grande reservatório de água, mais de 100 km – a chamada Volta do Xingu – terá sua hidrografia completamente alterada, sendo que, em boa parte desse percurso, é muito provável que falte água durante quase todo ano, afetando as populações que vivem na região. As condicionantes emitidas pelo IBAMA falam em medidas de redução de danos para tartarugas e quelônio que, certamente, são importantes, mas não menciona as mais de 20 mil pessoas que serão diretamente afetadas pela obra. Sem falar nas pessoas que serão expulsas das suas terras, que serão banhadas pelo reservatório, as populações indígenas e ribeirinhas que vivem na Volta do Xingu terão o seu território completamente alterado, o que coloca em risco a sua segurança alimentar. Um relatório produzido por 40 pesquisadores de instituições como o INPA, UNICAMP e UFPA apontou para um quadro de morte e extinção de animais e plantas, perda de recursos hídricos, migração de dezenas de milhares de pessoas e forte prejuízo à cultura indígena, sem falar que o respectivo laudo indica que a obra é inviável economicamente.
A construção de novas hidroelétricas está diretamente associada à sustentação da vida nas grandes metrópoles, incluindo a manutenção das grandes indústrias localizadas nas regiões metropolitanas do país. Estamos diante da sobreposição de um estilo de vida (moderno, ocidental, capitalista) sobre outras formas de vida (incluindo, neste caso, humanos e não-humanos). Os apagões que experimentamos nos últimos anos são uma prova clara de que a nossa matriz energética deve passar por uma reforma, mas a questão está colocada muito mais na forma e nas estratégias que vamos adotar para resolver esse impasse. A política de construção de grandes obras como a hidroelétrica de Belo Monte já se demonstrou um desastre em termos de custos sociais e ambientais. Exemplos como a hidroelétrica Balbina existem para nos alertar sobre como uma suposta solução pode se tornar um verdadeiro desastre ambiental e social. O número de “desabrigados” devido à construção de hidroelétricas é tão grande que já serviu de base para o surgimento de pelo menos dois grandes movimentos sociais no Brasil: o MST e o MAB.
Quando Lula foi eleito, ainda em 2002, acreditava-se – tendo em vista o seu próprio plano de governo – que essa Mariz seria repensada tendo como parâmetro o princípio constitucional da precaução e a busca de fontes alternativas de geração de energia. É essa política que vem sendo aplicada por boa parte dos países desenvolvidos da Europa. Não podemos olhar para o problema da energia e achar que só existe uma forma de resolver o impasse, como se estivéssemos meramente diante do custo social e ambiental do desenvolvimento do país. Talvez seja mais justo nos perguntarmos que desenvolvimento é esse que queremos e para quem ele deve servir: uma questão importante, principalmente, em ano de eleição. Atropelar todos os procedimentos legais exigidos na liberação de grandes obras como essa não é uma exigência inevitável, mas uma opção política que revela claramente uma determinada forma de pensar o exercício de governo na área energética, política essa que, da forma como vem sendo aplicada por governos militares e civis, demonstra uma opção clara pelo desenvolvimentismo em detrimento de outros valores democráticos. Impedir a discussão das questões políticas e técnicas envolvidas na construção de Belo Monte revela que o pensamento autoritário dos regimes militares ainda continua atuando na mentalidade política governamental. A desconsideração do direito dos povos indígenas em serem consultados nesse processo vai contra a Constituição Democrática de 1988, fato já amplamente apontado pelo Ministério Público. Esses povos tem se colocado contrários a essa obra desde 1980. Desde então o seu direito de anuência prévia tem sido desrespeitado sistematicamente, numa clara desconsideração de acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção nº 169 da OIT. A truculência monumental dos nossos governantes revela uma intolerância com os povos indígenas e com os camponeses que vivem na região, truculência essa forjada ainda no interior do pensamento autoritário do regime de exceção, quando os militares deixaram claro que o desenvolvimento do país deveria ser alcançado a qualquer custo. Mas, além desse evento expressar certas tendências estruturais da mentalidade governamental que tem sido historicamente exercida no Brasil, ele também demonstra a dura opção por uma única via de desenvolvimento, onde a economia é colocada acima da sociedade.
Mas sejamos claros, que sociedade é essa que está sendo prejudicada? Por certo não somos nós, habitantes das grandes metrópoles, ávidos consumidores de energia que estamos sendo prejudicados com a construção de Belo Monte, nem mesmo os donos de indústrias, empresários e comerciantes que consomem a energia necessária para alimentar seus mega empreendimentos capitalistas. Sabemos muito bem que a “sociedade” que está sendo diretamente afetada são os grupos locais, mais especificamente, aqueles que serão deslocados de suas casas, expulsos ou simplesmente removidos, além das inúmeras populações indígenas locais que serão privadas da base do seu principal meio de vida: os peixes, as plantas, a terra, enfim, a sua “natureza”. Será que o Governo tem o direito de descartar vidas em nome do desenvolvimento? Será que não existe alternativa para resolver o impasse energético do país? Será que existe apenas um único caminho? Num momento em que os índices da economia e da sociedade são mais favoráveis do que já foram nas últimas décadas, não será esse o momento de refletirmos sobre que “sociedade” é essa que queremos construir? Afinal, que pacto social é esse que queremos realmente colocar em prática? Será que podemos construir os alicerces de uma nação a partir da exclusão sistemática do modo de vida de amplos setores da sua população?
Um comentário:
Um sistema que se diz democrático, mas que, na verdade só aceita um estilo de vida como possível ou viável, ou seja, aquele dominante e capitalista. Qualquer grupo social que seja resistente ao estilo de vida dominante está fadado ao descaso público, as inúmeras tentativas de submissão e a serem acusados de retrógrados. Aonde está o poder da lei, da constituição e da democracia?
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