quinta-feira, 3 de março de 2011

Violência no Trânsito: um fenômeno sócio-cultural contemporâneo

Quem nunca ouviu uma história ou presenciou pessoalmente uma situação de violência no trânsito? Quem nunca vivenciou ataques verbais ou gestuais ou teve que sair da pista para dar passagem para algum maluco que acha que andar na velocidade máxima da via é o maior absurdo do mundo? Em Brasília, por exemplo, apesar de não termos os congestionamentos quilométricos de São Paulo e Rio de Janeiro, a violência no trânsito é constante e diária. Pra mim, o mais difícil é conviver com os apressadinhos: pessoas que andam, geralmente, bem acima da velocidade da via e ainda acreditam que você, que anda na velocidade da via, é um idiota. Tudo isso para chegar alguns minutos antes em casa ou até mesmo no trabalho. Eu sempre me lembro dos milhões de brasileiros que precisam viver uma verdadeira epopéia para chegar em casa após um dia de trabalho, pegando dois, as vezes até mesmo três ônibus. Acredito que o simples fato de poder me deslocar de automóvel já é uma vantagem (em termos de economia de tempo) e um alívio, então, qual é a razão para correr tanto? A impressão que tenho é que as pessoas se transformam completamente quando entram em seus carros, deixando de ser aquele cidadão pacato para se transformar em um verdadeiro “monstro”.

Mas pior ainda são as situações de violência, seja contra os próprios motoristas, seja contra os pedestres. O evento que presenciamos no início desta semana, em Porto Alegre, retrata muito bem uma situação de total descontrole psicológico, gerando danos para pessoas que estavam apenas se manifestando de forma pacífica, com sua frágil bicicleta. E olha que não se tratava de um entregador de pizza correndo para não perder o emprego ou alguma situação de doença – o que explicaria, mas não justificaria o ato - mas um bem sucedido funcionário do Banco Central que voltava para casa com seu filho adolescente. E o pior é que ainda existem pessoas que procuram justificar tamanha ignorância. Conforme já foi abordado em outro blog, explicar sim, justificar não.

De fato, apesar de entendermos que o crime foi resultado de descontrole emocional, isso não é e nunca será uma justificativa para atropelar dezenas de ciclistas inocentes e desprotegidos. Infelizmente, conforme me foi relatado por amigos do sul, os meios de comunicação locais só foram divulgar o fato diante da pressão popular, pois o lamentável acontecimento comoveu a sociedade gaúcha. Ainda existem pessoas que acham que manifestações políticas em vias públicas não deveriam ser permitidas, pois isso atrapalha o seu direito de ir e vir. De fato, estamos diante de uma situação onde dois direitos colidem: o direito de livre manifestação política e o direito de ir e vir. Eu, sinceramente, acredito que aguardar alguns minutos para o povo se deslocar por uma via não chega a configurar uma ameaça ao direito de ir e vir. Caso contrário, os congestionamentos de trânsito ocasionados pelo crescimento urbano desordenado deveriam ser considerados um caso de desrespeito ao mesmo direito civil, cuja responsabilidade seria do governo.       

A violência no trânsito não é nenhuma novidade. Lembro de um caso no Rio de Janeiro, já faz dois ou três anos, de um pai que foi brutalmente assassinado por um motorista na frente do seu pequeno filho, tudo isso devido a um desentendimento. Ou da história de uma colega de trabalho que foi perseguida durante quilômetros até ser abordado em um posto de gasolina por um sujeito enraivecido que batia violentamente nos vidros do seu carro. Eu mesmo, certa vez, fui perseguido até a universidade (sem notar), por um sujeito que me abordou com arma em punho, supostamente, por que eu havia cortado a sua frente em um cruzamento. Histórias como essas são comuns.  

Não podemos esquecer que o trânsito é um fenômeno histórico e sócio-cultural que reflete, em grande medida, a nossa própria sociedade. Uma sociedade violenta e sem civilidade acaba resultando em um trânsito violento. O tema tem sido objeto de estudo do antropólogo Roberto DaMatta, que resultou na publicação do seu livro – “Fé em Deus e Pé na Tábua”. Entre outras conclusões que o estudo aponta, o autor argumenta que o brasileiro vê o bom motorista (que anda conforme as regras do trânsito) como um “babaca”. Segundo o antropólogo, não existe um reconhecimento do “outro” como alguém que merece respeito e consideração:

“Os outros são invisíveis no Brasil. Você não é treinado em casa nem nas escolas para ver o outro como colega, como um sujeito que tem os mesmos direitos de usufruir o espaço de todos. Para nós, é o contrário: o espaço de todos pertence a quem ocupar este espaço primeiro, com mais agressividade” – R. DaMatta

Lembro uma socióloga que estudava o assunto comentar em um congresso que os motoristas passam por uma transformação completa quando entram em seus carros. Na época, como agora, lembrei de um desenho do Pateta que retrata com humor essa tal transformação (logo abaixo), vale apena conferir. Espero que o evento que ocorreu em Porto Alegre sirva para nos alertar da importância de tratarmos a questão com seriedade, o que certamente exigiria uma revisão da nossa legislação de trânsito.              


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