sábado, 26 de março de 2011

A Ciência Régia e a Casa do Imperador

"Não somente a utilidade e o prazer, mas também toda espécie de instinto, tomaram parte na luta pela 'verdade'; o embate intelectual se tornou uma ocupação, um fascínio, uma vocação, uma dignidade: - o conhecimento e a aspiração ao verdadeiro tomaram lugar finalmente como uma necessidade. A partir de então não somente a fé e a convicção, mas também o exame, a negação, a desconfiança, a contradição se tornaram uma força; todos os 'maus' instintos foram subordinados ao conhecimento e postos a seu serviço, foi dado a eles o brilho do permitido, do venerado, do útil e, finalmente, o aspecto e a inocência do bem".

Nietzsche - A Gaia Ciência      

Nunca a ciência assumiu um tom tão autoritário como na casa do imperador:  território do submisso que apreende a submeter, desautorizar, castrar, destruir, desfazer; só para num segundo momento converter, tomar posse, mudar duas ou três palavras e transformar a idéia marginalizada em um pensamento nobre. A ciência régia - com suas confrarias e sociedades secretas, com seus pequenos-grandes fascismos do dia a dia, com suas fortificações e alfândegas - está presa na reprodução do pensamento do Rei. O Castelo é o local privilegiado do colonialismo interno, expresso na grandeza de seus edifícios e na beleza de seus jardins. Nos corredores medievais as estruturas do saber são concretas, "exatas", forças "estabelecidas", grupos consagrados, com forma definida e imutável: reprodução da idéia do Uno em detrimento das multiplicidades.

Toda pessoa que já ingressou no exército do Rei  acabou desaparecendo sob o labirinto de suas pequenas repartições de Estado, com suas hierarquias fixas e seus pequenos surtos de maldade e destruição. A cifra que orienta a ciência régia é a regra da apropriação do pensamento nativo e sua transformação em um artigo de luxo: para o Rei e seus cavaleiros, todo devir-animal é transformado em conceito racional ou escola intelectual.  Afinal, é na nobreza que todas as perspectivas são apropriadas para o benefício pessoal dos pequenos homens, esses que Nietzsche chama de "homens-ovelhas".

A partir deste momento, os pensadores da aristocracia vão sempre se perguntar antes de pensar: como será a forma do pensamento régio? O que o imperador diria numa situação como esta? Será que estou autorizado a falar? Mas se aceito falar e sair do silêncio, como dizer o que penso? Qual formato devo dar aos meus pensamentos?

O resultado do pensar submisso e colonizado não poderia ser outro: silêncio desprezível, ausência de articulação, enfim, um anti-pensamento refletido em forma de apatia totalitária.

Do outro lado (ou interno ao lado) está a máquina nômade que se espalha por todos os pontos ao mesmo tempo: os pequenos conhecimentos do dia a dia, diluídos em fluxos constantes. Esses pequenos saberes dispersos e cotidianos nunca chegam a constituir instituições como Castelos ou Torres, nem mesmo a se perder nos caminhos infinitos da burocracia moderna. Esses saberes escapam à formalidade das letras não por serem menos "objetivos", ou por não serem "letrados" ou "metódicos" o suficiente, mas devido a sua essência nômade, sua rebeldia contra qualquer forma de edificação ou consagração.  Essas ciências nômades estão dispersas como fluxos inconstantes, saberes múltiplos: espaço liso: linha de fuga.  Com isso, abre-se caminho para o exercício de habitação no mundo, para o engajamento ordinário nas pequenas coisas, nos pequenos atos: essas práticas dispersas e suspiros poéticos que não fazem forma e não formatam. Devir-pensamento e não pensamento concreto.

3 comentários:

Anônimo disse...

Eu e minha esposa somos de Santa Maria (RS) e acompanhamos diariamente o seu blog. Somos engenheiros de formação, mas temos interesse na antropologia e os seus posts têm servido como uma boa introdução ao tema. Parabéns pela iniciativa!

Anônimo disse...

Sou aluno de graduação em ciências sociais na UFRGS e acompanho seu blog diariamente. Parabéns pela iniciativa! É ótimo acompanhar o seu processo de escrita da tese e seus comentários antropológicos sobre temas contemporâneos. Estou divulgando por aqui...

Anônimo disse...

Sou do interior de São Paulo e estou pensando em cursar ciências sociais. O seu blod tem sido uma ótima introdução ao tema, principalmente, devido ao material disponibilizado na biblioteca e na videoteca. Parabéns!

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