Bruno Latour propõe deslocar o olhar antropológico para o centro das sociedades ocidentais. Desde o seu primeiro livro, Vida em Laboratório, baseado em pesquisa de campo realizada na década de 1970, na Califórnia, a sua proposta etnográfica se alia perfeitamente ao objetivo maior de construção de uma antropologia da ciência.
Em The Pasteurization of France, Latour propõe não separar a ciência/tecnologia da sociedade. Ainda na introdução desse livro, o autor apresenta sua proposta metodológica: não definir a priori uma lista de atores que serão objeto de análise. Não precisamos estabelecer um “mundo” a ser analisado, e nem mesmo quais atores e alianças são fortes ou fracas. O que precisamos fazer é abordar as relações de força a partir de uma antropologia simétrica, definindo um ponto de partida e seguindo a rede de traduções realizadas pelos atores.
Nesse livro, Latour aplica a sua metodologia para analisar a “revolução científica” promovida por Pasteur como um caso exemplar da ciência em ação, pois essa “revolução” ocorreu no auge do iluminismo cientificista e foi representada como a vitória definitiva do esclarecimento sobre a escuridão: um caso bem sucedido de aplicação do método científico para solucionar o “problema” da emergência das epidemias que assolavam as metrópoles européias.
Como exercício de aproximação, Latour propõe abrir a caixa-preta da “Revolução Pasteuriana”. Para isso, é preciso romper com a idéia de que Pasteur sozinho e a partir da sua genialidade regenerou a ciência e fundou uma nova medicina, uma nova biologia. É preciso decompor a eficácia de Pasteur devolvendo a liberdade de ação aos demais atores.
Ao analisar o contexto histórico em que Pasteur estava inserido percebemos que antes mesmo do seu nome ser reconhecido pelos seus colegas cientistas havia uma preocupação geral com a regeneração do homem da sua época, o que só poderia ser feito a partir da aplicação do método científico através de um programa de reformas sociais e políticas. Corpos e forças de produção não atuam isolados, mas são os efeitos inevitáveis de uma nova concepção de “governamentalidade” baseada basicamente na idéia de “população” como força característica dos Estados Nações, contexto muito bem descrito na arqueologia da ciência realizada por Foucault. Esta era a guerra que estava em andamento quando Pasteur resolveu abandonar a ciência dos cristais. A crença na objetividade científica era também uma promessa de reformulação da sociedade e do homem.
Para entendermos como Pasteur passou a ser representado, em pouco tempo, como o gênio que revolucionou a ciência e a sociedade, precisamos entender antes o movimento higienista. Os artigos desse grupo podem ser identificados por portarem um estilo específico. A retórica higienista - composta por uma acumulação de avisos, precauções, receitas, opiniões, estatísticas e regulações - não possui um argumento central. O grande problema dos higienistas do período não era a ausência de argumentos, mas o excesso de informações: se qualquer coisa pode causar doença, nada pode ser ignorado e é preciso agir em todos os lugares ao mesmo tempo, situação um tanto caótica para quem pretende revolucionar a sociedade. Em um contexto como esse, os higienistas precisavam de uma teoria que explicasse a variabilidade da doença.
Foi então que, a partir de 1880, eles passaram a utilizar como referência principal os argumentos de Pasteur, sem nunca questionar suas afirmações, confiando inteiramente em suas idéias e passando a generalizá-las sem maiores questionamentos. Conforme afirma Latour, a força de uma teoria não reside em si mesma, mas com o que é feito com ela: para colocar um argumento em movimento precisamos conquistar aliados e mobilizar novos contingentes militares.
Para os higienistas o que importava é que eles poderiam continuar suas investigações sobre os múltiplos fatores que influenciavam na propagação de doenças, mas ordenando e hierarquizando esses fatores conforme a atuação dos micróbios. Pela primeira vez eles passaram a ter um alvo preciso e conseguiram centralizar suas forças e ordenar o seu ataque. Os higienistas não eram modernos frente aos resistentes, considerados anacrônicos, mas eles se fizeram modernos ao ultrapassar os demais, ao multiplicar a eficácia de suas investidas teóricas, ao fazer com que o tempo passasse a trabalhar a seu favor. E foi exatamente para atingir os seus próprios objetivos e interesses que os higienistas passaram a apoiar, ampliar e generalizar todo argumento sobre micróbios. Sob o custo de aceitar o poder da microbiologia e eleger Pasteur o gênio da sua época, eles conseguiram avançar na sua causa mais rápido e conseguiram intensificar o seu poder sob seus adversários, fossem eles micro-parasitas, doenças ou autoridades públicas.
Por outro lado, os “pasteurianos” também se posicionaram em relação aos higienistas, mas fizeram isso de uma forma muito especial. Num primeiro momento, eles foram ao seu encontro, depois se movimentaram na mesma direção. Mais tarde, pretendendo direcioná-los, acabaram por redirecioná-los ao somar um elemento crucial: o laboratório. Esse é o movimento de tradução/translação realizado pelos pasteurianos: trazer seus adversários para seu campo de batalha. O laboratório é o único espaço onde esses cientistas reinavam inteiramente e é a partir deste espaço que eles vão buscar convencer seus adversários.
Mas porque Pasteur ganhou força no laboratório? Ele ganhou força porque lá os fenômenos do “mundo real” se tornaram fracos ao serem dominados por seres humanos que se tornaram fortes. Com auxílio de suas máquinas – tubos de ensaio, reguladores de temperatura, substância químicas e, principalmente, os microscópios que permitiram transformar agentes invisíveis em micróbios – os homens ganharam uma força extraordinária sobre os seus adversários. Os elementos de inscrição da realidade - instrumentos de disciplinarização do espaço-tempo - possibilitaram a transcrição de fenômenos abstratos em uma linguagem facilmente reconhecível por outros setores da sociedade. Estamos diante de um "riot" científico e de um nivelamento de forças nunca antes possível.
Mas, nesse movimento, o próprio laboratório foi um pouco além ao eleger o problema da variabilidade da doença – de interesse dos higienistas – num problema experimental. Como tal sobreposição de interesses se tornou possível sem ocasionar divergências e conflitos? A questão é que as duas gerações distintas de cientistas acreditaram por um tempo que eles se entendiam uns aos outros, agindo a partir deste mal entendido e intensificando a sua força ao se direcionarem paralelamente – o que só foi possível a partir de um movimento de tradução. Traduzir interesses significa oferecer novas interpretações desses interesses e canalizar as pessoas para direções diferentes.
O próprio Pasteur traduziu seus interesses ao deixar de levar adiante, e de forma quase que isolada, os seus próprios “problemas científicos”, para inclinar-se ligeiramente na direção dos “problemas” que ocupavam a atenção de um número bem maior de pessoas. Pasteur abandonou a cristalografia para se dedicar ao problema da fermentação, posicionando-se no centro de interesses da indústria de cervejas, vinagre e vinho, cujo peso econômico era muito maior do que o potencial dos seus colegas, estudiosos dos cristais. Acima de qualquer outra coisa, Pasteur transformou num problema de laboratório um problema econômico crucial, fazendo com que toda a indústria passasse a se interessar pelo sucesso dos seus experimentos e pelo sucesso do seu laboratório (mais recursos humanos e materiais, microscópios mais potentes). Um pouco mais tarde, ele fez o mesmo com a indústria da seda, para só depois aplicar os avanços adquiridos até então ao problema das doenças contagiosas (problema ao qual ele ainda não havia se dedicado). Em cada um desses momentos ele seguiu a demanda que essas forças estavam apresentando, mas impôs sob essas demandas uma formulação específica a qual só ele tinha a resposta.
Mas ainda era preciso fazer o movimento de retorno: ir do laboratório para a “realidade externa” ou ampliar o laboratório a ponto que ele passasse a abranger a própria sociedade. Era preciso teatralizar a prova, reformar os antigos cenários da doença, conduzir pequenas transformações no ambiente a partir de certo número de procedimentos: os animais vacinados tinham que ser separados dos animais não vacinados e devidamente identificados; todos os dias as suas temperaturas tinham que ser verificadas e anotadas; as seringas utilizadas tinham que ser esterilizadas. Nada disso ocorria antes numa fazenda “tradicional”. Esse projeto de transformação do meio externo só foi possível com o consentimento dos fazendeiros, com quem os cientistas também tiveram que negociar e se associar.
Mas nem todos os coletivos se colocaram em marcha em nome da revolução. Havia também grupos mais rebeldes, menos dispostos a se colocar em movimento, que numa ação defensiva buscaram manter o seu "status quo". Esse foi o caso dos médicos civis franceses. Afinal, todos os avanços apresentados por Pasteur apontavam, pelo menos num primeiro momento, para a dissolução da profissão médica tal qual ela era praticada na época, baseada na relação médico-paciente e na cura de doenças. O que os médicos deveriam fazer com aqueles métodos e doutrinas que representavam uma ameaça a sua profissão? Talvez se eles fossem fortes, contassem com um bom número de aliados... Mas não era esse o caso: os médicos sofreram quase tanto quanto os próprios micróbios. Eles estavam praticamente isolados e não podiam fazer nada além de se negar a ingressar no exército pasteuriano.
O certo é que ou os médicos podiam utilizar o que estava sendo produzido pelo laboratório Pasteur para avançar seus próprios interesses, ou eles não podiam. Se eles pudessem, qualquer argumento, não importa o quanto revolucionário ele pudesse ser, seria compreendido e utilizado o quanto antes. O fato é que a inovação pode levar tempo quando os interesses parecem não coincidir ou não podem ser traduzidos a partir de um mal entendido em comum. Como que os médicos iriam cooperar com um programa que era a própria promessa de extinção da doença, do doente e por reflexo do próprio médico? Tanto os higienistas como os pasteurianos trabalhavam para que a doença não se propagasse através do contágio, promovendo a prevenção em detrimento do tratamento cirúrgico.
Neste caso, os médicos acabaram tendo que traduzir seus interesses, mas não sem levar as demais forças a se deslocar levemente. Se os médicos se negavam a ir em direção ao laboratório com medo de reificar ainda mais a sua força e sua eficácia, o laboratório teve que ir até eles. Desta forma, o único preço que teriam que pagar é que os seus consultórios fossem transformados numa extensão do laboratório Pasteur.
O que percebemos neste estudo de caso realizado por Latour é que o fato científico é construído coletivamente, que os cientistas são levados a traduzir seus interesses e se associar com outras forças para levar adiante seus projetos. As redes compostas por humanos e não humanos transpassam o laboratório e a sociedade. Napolião não está sozinho: dêem as batatas aos vencedores!
Obs. Texto apresentado no Seminário Avançado em Teoria Antropológica II, ministrado pela Profª Mariza Peirano, no PPGAS da UnB (2008).
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