"Pretendo partir dessa problemática para analisar o importante deslocamento metodológico operado por Michel Foucault em relação à história das ciências. O método de análise proposto por ele é geralmente conhecido como 'arqueologia do saber'. O que talvez pouca gente saiba é que essa denominação é um ponto de chegada, não um ponto de partida; é o resultado de um processo, também histórico, em que, para se definir, a arqueologia sempre procurou se situar com relação à epistemologia. Daí o privilégio que confiro a essa relação. (...) Com efeito, uma análise minuciosa da abordagem de Foucault evidencia claramente um progressivo distanciamento das teses epistemológicas - sempre levadas em consideração em suas reflexões - torna possível um novo tipo de história. A especificidade da história arqueológica pode ser delimitada a partir da problemática da racionalidade. Sabemos que a filosofia de Bachelard desclassifica toda pretensão de formular um racionalismo geral. Instruída pela ciência - de quem a própria filosofia deve estar à altura, isto é, assimilar as lições e respeitar a normatividade -, a epistemologia bachelardiana é um racionalismo regional: a inexistência de critérios de racionalidade válidos para todas as ciências exige a investigação minuciosa de várias regiões de cientificidade. Bachelard concentrou sua pesquisa na física e na química, ciências que podemo grosso modo considerar como constituintes da região da natureza ou da matéria. Georges Canguilhem, retomando as principais categorias metodológicas da epistemologia bachelardiana, interessou-se por biologia, anatomia e fisiologia, disciplinas que denomina 'ciências da vida', estudando assim uma outra região de cientificidade. Para compreendemos a história arqueológica de Foucault podemos partir dessa constatação: todas as suas análises estão centradas no homem, isto é, formam uma grande pesquisa sobre a constituição histórica das ciências do homem na modernidade. Trata-se, portanto, de uma nova região. Mas essa originalidade do objeto de estudo não basta para situar a especificidade da arqueologia. O importante é que pelo fato de gravitar em torno da questão do homem - considerado uma região ao lado das regiões da natureza e da vida - a abordagem arqueológica não se norteia mais pelos mesmos princípios que orientam a história epistemológica. Um dos objetivos deste livro é estudar esse deslocamento produzido pela arqueologia em relação à epistemologia para dar conta de sua especificidade como história dos saberes. Isto quer dizer que, mesmo a epistemologia sendo considerada o ponto de referência que melhor permite situar as condições de possibilidade da arqueologia, esta assume em sua análises da racionalidade uma posição bastante diferente: enquanto epistemologia, pretendendo estar à altura das ciências, postula que a ciência ordena a filosofia, como diz Bachelard, a arqueologia, reivindicando sua independência em relação a qualquer ciência, pretende ser uma crítica a própria ideia de racionalidade; enquanto a história epistemológica, situada basicamente no nível dos conceitos científicos, investiga a produção da verdade na ciência, que ela considera como processo histórico que define e aperfeiçoa a própria racionalidade, a história arqueológica, que estabelece inter-relações conceituais no nível do saber, nem privilegia a questão normativa da verdade, nem estabelece uma ordem temporal de recorrências a partir da racionalidade científica atual. Abandono a questão da cientificidade - que define o projeto epistemológico -, a arqueologia realiza uma história dos saberes de onde desaparece qualquer traço de uma história do progresso da razão. (...) Parece-nos mesmo que a riqueza do método arqueológico é ser um instrumento capaz de refletir sobre as ciências do homem como saberes, neutralizando a questão de sua cientificidade e escapando do desafio impossível de realizar, nesses casos, uma recorrência histórica, como deveria fazer uma análise epistemológica. O que não significa, como veremos, abandonar a exigência de uma análise conceitual capaz de estabelecer descontinuidades, certamente não epistemológicas, mas arqueológicas, isto é, situada no nível dos saberes".
"Foucault, a ciência e o saber" - Roberto Machado
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