Fluxos de modelos científicos na Antártida: variações de práticas brasileiras
Luís Guilherme Resende de Assis
PPGAS /DAN/ICS/UnB
A literatura das ciências humanas sobre a Antártida, em sua maioria focada em estudos de geopolítica e história internacionais, é incansável em abordá-la desde uma visada sociopolítica global em que o Sistema do Tratado Antártico e sua implementação por Estados-Nacionais ocupa lugar central. De fato, a Antártida e seu sistema de gerenciamento atual oferecem matéria-prima privilegiada ao cientista social, na medida em que conjuga a ambigüidade latente entre concepções cosmopolitas e suas aplicações concretas; ambigüidade esta constituinte (e portanto não percebida necessariamente como contraditória) de um modo particular de gerenciar significados, um modo transnacional.
A esta altura de nosso seminário é suficiente apontar que os atrativos fundamentais para a pesquisa das ciências sociais e humanas na Antártida são: a centralidade da cooperação tecno-científica internacional para o ingresso e presença humana na região austral, a suspensão das demandas territoriais nacionais no período de vigência do Tratado e o apelo de paz que orbita abaixo do paralelo 60o. Juntos, esses elementos permitiram uma vasta, mas restrita, produção bibliográfica. Ora interessada em demonstrar o elemento competitivo da cooperação científica internacional, ora delineando os principais temas disciplinares trabalhados pelos grupos de pesquisa ou mesmo discutindo gargalos políticos e logísticos para a prática científica; tais abordagens têm em comum a característica de apontar os desafios emergentes do gerenciamento de um território que repele a nacionalidade enquanto domínio territorial em favor de uma concepção global de paz, refreando também concepções desenvolvimentistas baseadas na exploração capitalista dos recursos naturais, já que a importância da Antártida para a regulação dos sistemas naturais do planeta exige a preservação da natureza austral. Se a natureza é aí uma natureza cosmopolita, a humanidade que a detêm e a conhece é também uma. Aquela mobilizada pelo cosmopolitismo científico de base universalista. Elas, no entanto, variam? Se variam, estariam ameaçadas as unidades?
Pretendo nesta exposição incrementar a agenda de pesquisas das ciências sociais na região austral, adicionando elementos formulados desde uma preocupação antropológica, de modo a dimensionar o transnacionalismo cativo de todos aqueles envolvidos na gestão e execução de pesquisas científicas na Antártida. Trata-se aí de elencar e relacionar os elementos e grupos humanos que mobilizam fluxos de modelos da ocupação humana na região, construídos com base na referida ambigüidade entre cosmopolitismo e apelo nacional, unidade e variabilidade. O aspecto fundamental a ser ressaltado é que não basta considerarmos a transnacionalidade cosmopolita da gestão do Sistema do Tratado Antártico para compreendermos variações do que sejam fluxos e modelos da experiência humana na região austral. É preciso atrelar a tal cosmopolitismo a problematização do universalismo científico, indicando que não somente a pretensa uniformidade global da gestão transnacional varia nas práticas dos programas nacionais antárticos, mas também o próprio universalismo enquanto elemento cosmológico constituinte das pessoas envolvidas nas práticas científicas e da própria Antártica como tal. Para tanto, versarei sobre dois dos quatro projetos científicos brasileiros que venho pesquisando desde julho de 2008. Refiro-me aos projetos “Expedições Nacionais Multidisciplinares ao Manto de Gelo Antártico: identificando respostas da Criosfera às Mudanças Globais”, executado pela UFRGS e “Evolução e biodiversidade: uma resposta da vida às mudanças climáticas”, executado pela UFPR.
Os coordenadores dos dois projetos compartilham um interesse comum, embora o formule e se posicionem de modos distintos em relação a ele. Ambos visam galgar uma posição relevante para a pesquisa brasileira na Antártida nas arenas inter(trans)nacionais da ciência polar. Tais arenas são fluxos científicos que funcionam em si mesmos como índices da qualidade científica. Ou seja, qualificar a ciência nacional e contribuir para ou participar dos fluxos inter(trans)nacionais da ciência na Antártida são sinônimos.
Para participar de tais fluxos é fundamental preencher os requisitos de ingresso e alimentar-lhes com os móveis considerados legítimos para circular. A forma de ingresso e as características dos móveis que circulam nos fluxos inter(trans)nacionais da ciência remetem a modelos cunhados a partir de uma perspectiva política transnacional de gestão da pesquisa científica processada nos contextos nacionais, bem como de uma visão universalista da natureza pesquisada em cada projeto, nesse caso, uma visão universalista da criosfera e das células de peixes do gênero Notothenia.
O elemento da “mudança em nível global” aparece como marca dos dois projetos científicos aqui abordados. No caso do grupo da UFRGS trata-se de compreender de que modo a criosfera responde às mudanças; no segundo, trata-se da resposta de peixes em razão do aquecimento ou esfriamento das águas antárticas. A “mudança” presente nas pesquisas brasileiras em causa espelham a preocupação científica internacional em compreender as dinâmicas dos sistemas naturais. Tal preocupação remete ao fato de que elas vêm ocorrendo de modo incisivo nos últimos anos e são verificáveis das mais variadas formas, desde a velocidade de escorregamento de uma geleira aos elementos bioquímicos de células de Nothotenia. Assim, são os próprios sistemas naturais, sua condição ontológica atual enquanto algo que varia aceleradamente, que modelam as questões fundamentais da ciência na Antártida. Por outro lado, o órgão transnacional de gestão da pesquisa científica na região austral incorporou a “mudança” como requisito técnico e político fundamental para o ingresso de cientistas na Antártida.
Criado em 1957/1958, o SCAR resultou do Ano Geofísico Internacional, e organiza até o presente os mecanismos de cooperação técnica entre cientistas. Em que pese o fato da Antártida estar, naquela altura, às margens dos modelos vigentes de exploração capitalista, dados o declínio da empresa foqueiro-baleeira e os obstáculos impostos pelo ambiente hostil para uma “eficaz” organização produtiva; o SCAR reproduziu fielmente o emergente modelo de gerenciamento corporativo de enclaves, decorrente da transição do fordismo ao capitalismo flexível, contemporâneo à sua criação. No caso do SCAR, entretanto, seriam os próprios cientistas, localizados nos centros produtores de ciência de qualidade, os “gerentes” indiretos do controle à distância da região austral e boreal, e não os detentores do capital. Desde então a possibilidade de afirmações universais sobre elementos dos sistemas naturais estava atrelada à condição transnacional do órgão.
O modelo das ciências em fluxo nas arenas inter(trans)nacionais da Antártida resultou, portanto, simultaneamente da ação mutante dos sistemas naturais e da conformação sociopolítica do SCAR. Ambos são temas relevantes para a pesquisa antropológica na medida em que expressam traços distintos, mas complementares, das ambigüidades cosmopolitas. Uma dessas ambigüidades já foi mencionada e refere-se à suspensão do pertencimento nacional da ciência como condição do aprimoramento científico. Trata-se aí de uma condição transnacional em que o nacional se faz valer pela sua negação. A outra ambigüidade que quero ressaltar remete à condição mesma dos modos como os sistemas naturais se tornam conhecidos, constituindo modelos inescapáveis para a presença humana na Antártida. Cabe aos cientistas aqui referidos compreenderem o que acontece com a criosfera e com os peixes de gênero Nothotenia. Sozinhos eles não poderiam realizar o trabalho. É preciso que cada geleira estudada ou cada experimento montado com os peixes forneça dados capazes de compor modelos explicativos a serem alimentados por seus pares espalhados no globo, mas concentrados na Antártida. Esse é, aliás, um elemento condicional da cooperação técnica internacional inerente à competitividade entre ciências nacionais. Muito embora os dados devam remeter à universalidade dos fenômenos e a procedimentos de coleta padronizados, a relação de conhecimento entre cientistas e seus objetos varia, a depender, em cada programa antártico nacional, das condições logísticas de apoio à pesquisa, das vestimentas polares, dos instrumentos de coleta e medição disponíveis e da possibilidade de transportar amostras e dados para as Universidades respectivas. Assim, soma-se à ambivalência entre nacionalidade e transnacionalidade das ciências, característica dos fluxos de modelos na Antártida, a ambigüidade entre universalidade e particularidade. Façamos uma rápida incursão nas duas pesquisas que tomo como guias para demonstrarmos que ambas as características são inseparáveis.
Andando ao sopé da Geleira Wanda, quando estava acampado com o grupo da UFRGS, afundei quase até o joelho no barro. O gelo já havia há muito recuado, diminuindo a barra do glaciar. “Não é barro”, me advertiu a chefa do acampamento, é um esker. Desde então fiquei sabendo que eskers são acúmulos de sedimentos empurrados paralelamente aos canais de lençóis de água que correm sob a geleira.
Em outra situação, na EACF, após regressar de uma excelente pescaria numa enseada frontal à geleira Ecology, ao lado da Estação Polonesa de Arctowski, as biólogas da UFPR foram para o galpão de triagem onde os peixes são colocados para estabilização, antes de seguirem para os aquários experimentais. Após depositarmos os peixes nos tanques de triagem fiquei admirando o maior exemplar, coincidentemente pescado por mim. Foi então que a líder do grupo me chamou para colocar alguns peixes de pescarias passadas nos aquários experimentais. Após 24hrs eles seriam sacrificados para coleta de amostras de partes viscerais a serem analisadas em laboratório. Logo no primeiro peixe que depositei recebi uma bronca: “esse é um Rossi, tem que colocar no aquário de Rossi”. Desde então fiquei sabendo que os peixes mais rosados, em transição para um amarelo vivo eram os Nothotenia Rossi e os mais escuros, Nothotenia Coríceps.
Da janela do aquário via-se a Geleira Wanda onde eu acampara meses antes com o grupo da UFRGS. Não demorei em perguntar: “tá vendo aquele cordão de lama? Você conhece?” Resposta: “É uma moraina”. Não era, era o esker.
Essa rápida anedota ilustra que lama, esker e moraina, ou peixes, nothotenia Rossi ou coríceps são variações de elementos dos sistemas naturais antárticos que só funcionam como universais quando ativados em relações específicas. A lama, confundida com moraina, só pode ser universalmente percebida como esker na medida que especialistas se relacionam com ela e disseminam a universalidade de sua condição ontológica. O mesmo ocorre com os nothotenia Rossi. Interessante é que também as especialistas só podem ser percebidos como tais, ativando sua expertise nos fluxos da ciência, na medida em que se relacionam com os éskers e Nothotenia Rossi. Trata-se de um processo de mútua constituição ontológica onde um funciona para o outro ativando sua posição na relação de conhecimento. Nesse sentido, os fluxos de modelos na Antártida fazem mais que gerenciar territórios ou regular a presença humana na região austral. Eles incorporam e mobilizam o acesso a elementos constitutivos dos cientistas como tais e da Antártida como francamente indicativa dos sistemas naturais e do impacto humano na Terra no passado, presente e futuro.
Para que o grupo da UFRGS pudesse retirar amostras do esker e o da UFPR pudesse realizar experimentos com Nothotenia Rossi foi necessário que seus gestores submetessem projetos de pesquisa para avaliação do Programa Antártico Brasileiro. Este funciona como prisma dos fluxos de modelos transnacionais da ciência na Antártida aqui elencadas. No Brasil o acesso à Antártida se organiza majoritariamente entorno de dois Institutos Nacionais de Pesquisas que espelham a organização do SCAR em duas grandes áreas: ciências físicas e da terra e ciências da vida. Lama particular é esker universal no INCT-Criosfera, peixe róseo-amarelado particular é Nothotenia rossi universal no INCT-Antártico de Pesquisas Ambientais. Em qualquer dos casos para pleitear o ingresso à Antártida é preciso demonstrar que a pesquisa está inserida em redes inter(trans)nacionais. Os editais do PROANTAR colocam a internacionalidade das pesquisas como critério classificatório decisivo para a seleção de projetos. Mas isso é apenas o começo.
O PROANTAR é gerenciado pelo MCT, MMA e Marinha do Brasil. Esta é responsável pelo apoio e gerenciamento logístico das pesquisas e pelo treinamento dos jovens pesquisadores para uma operação antártica brasileira. A disponibilidade de vagas na EACF, navios ou vôos de apoio promovidos pela Força Aérea Brasileira e mesmo a organização dos acampamentos, seu lançamento por helicópteros e preparação de cargas são atributos da Marinha. Os coordenadores das pesquisas precisam negociar passo a passo o planejamento de suas pesquisas a partir da disponibilidade de equipamentos. Atento para o fato que tais negociações incorporam formas particulares de acesso aos sistemas naturais a serem pesquisados enquanto universais. De fato, em qualquer pesquisa antártica a logística é o elemento particular invisível das afirmações universais proferidas pelos cientistas. Ela é o elemento que faz variar o que possa ser potencialmente uma afirmação universal sobre eskers para cientistas físicos e da terra do INCT-Criosfera ou para o que possa ser universalmente válido para os Nothotenia Rossi que habitam as águas frontais à Ecology para cientistas da vida do INCT-APA. Os modelos em fluxo na Antártida implicam que meios logísticos não podem ser entendidos como separados dos fins científicos, a presença do corpo, dos gestos e dos equipamentos dos cientistas não pode ser separada do dado científico abstrato, a ambigüidade entre transnacionalidade e nacionalidade não pode ser entendida em separado da ambigüidade entre universalismo e particularismo.
Jamais saberíamos a que velocidade (uma constante medida por uma equação universal) a Geleira Wanda está retraindo, se não pudéssemos realizar um experimento com uma bolinha de tênis na laguna tributária dos canais de degelo. O exercício dependia de botas impermeáveis, já que para lançar e capturar a bolinha era necessário entrar com os pés na água bem fria. As botas Caribou canadenses disponibilizadas pela Marinha após negociações com os coordenadores de pesquisa são instrumentos constitutivos da pesquisa, da Geleira e da expertise dos cientistas e, portanto, dos fluxos de modelos da ciência brasileira na Antártida. Do mesmo modo, jamais compreenderíamos o comportamento do Nothotenia Rossi diante da variação de temperatura se não houvesse marinheiros preparados para navegar um bote em condições adversas sem promover solavancos que matariam os peixes antes de chegarem à EACF.
Ressalto com isso que a integração técnica entre conhecimentos logísticos e científicos e o planejamento dessa integração são os meios de acesso à ambigüidade latente entre particular e universal. A etnografia dessas relações contribuirá para compreendermos as variações dessa ambigüidade caso a caso, não apenas enriquecendo o que chamamos de fluxos de modelos, mas elucidando a questão: modelos de que eles são fluxos?
É também por meio do estudo das integrações técnicas entre logística e ciência que o etnógrafo pode contribuir para evidenciar modos variantes de expressão da ambigüidade entre transnacionalidade e nacionalidade da ciência. A pesquisa dos Nothotenia Rossi foi etnografada no inverno, que felizmente atrasou sua chegada. Se a comunidade científica brasileira, em articulação com a Marinha do Brasil não pudesse manter a EACF no inverno, o que se tornou possível à duras penas num processo histórico complexo, seria impossível a realização das pesquisas em causa nos moldes planejados – tanto a de biologia celular, quanto a de antropologia. Por comparação, poderíamos dizer que, numa situação hipotética, biólogos peruanos não poderiam proferir afirmações universais sobre os Nothotenia Rossi no inverno mesmo que quisessem, já que Machu Pichu fica desabitada nessa época do ano por razões logísticas, políticas e econômicas do Peru. A dependência de laboratórios próximos aos locais de coleta e uma infraestrutura substantiva para criar condições experimentais adequadas amarra os cientistas ao gerenciamento logístico de tal forma que o transnacionalismo científico não sobreviveria sem o elemento da logística ofertada pelos programas antárticos nacionais.
Por outro lado, a própria logística pode ser transnacionalizada como francamente vem sendo demonstrado pelo grupo da UFRGS que vislumbra um dia poder treinar seus membros para serem capazes de gerenciar todos os elementos logísticos necessários à pesquisa. Desde o aluguel de vagas em aviões comerciais para a Antártida até o nó de pescador que amarra a rede sobre as barracas de acampamento. Mesmo nesse caso a ambigüidade entre cosmopolitismo e nacionalismo persistiria, na medida em que o domínio técnico das condições logísticas em nível transnacional é também um modo de evidenciar um bom posicionamento da ciência nacional nos fluxos inter(trans)nacionais da ciência.
Eis, portanto o que considero os elementos centrais para delinearmos os fluxos de modelos na Antártida em sentido amplo: a conexão entre duas ambigüidades constitutivas da região austral e daqueles engajados em seu ambiente hostil, mas habitável. Ou seja, a ambigüidade entre cosmopolitismos e nacionalidades da ciência, de um lado, e entre universalismos e particularismo de outro. De modo particular, para entendermos como variam tais ambigüidades constitutivas, defendo a etnografia dos elementos técnicos envolvidos e relacionados caso a caso. E é assim que termino minha exposição: pleiteando um modo geral de abordar os fluxos de modelos na Antártida, mas que só pode ser executado particularmente por meio da etnografia. Mais uma ambiguidade?
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