As ruas estão tomadas por soldados, policiais, armas de alta tecnologia, tanques e aviões de guerra. Esse cenário de guerrilha urbana não está acontecendo no oriente médio ou na Coréia do Sul (apesar das semelhanças), infelizmente, tudo isso faz parte da realidade do Rio de Janeiro. Devido à ação do poder público, que vem investindo na “pacificação” das favelas e na expulsão e combate aos bandidos e traficantes, os “comandados” estão reagindo, aterrorizando a população desta cidade. O “espetáculo” (ou tragédia) é transmitido pela mídia em tempo real, tornando todos nós, seja voluntariamente ou não, telespectadores do conflito aberto entre a polícia e o crime organizado.
Tudo se dá como se os “comandados” fossem células separadas da nossa sociedade, como “invasores” ou seres extraterrestres, sem nome ou documento, apenas a vontade de “barbarizar”. É por isso que mobilizamos as nossas forças armadas, invadimos o “território”, mantemos a população sob “quarentena”, tornamos seus bairros verdadeiros campos de batalha, tudo em nome da “paz” (muito mais da "nossa paz" do que a deles), tudo parte de um processo bastante violento de “pacificação”.
O filme “Tropa de Elite 2” mostra outra realidade, muito mais cruel e complexa. Ali, os “comandados” são apenas isto mesmo: comandados, marionetes de organizações criminosas cujos tentáculos percorrem as redes estatais, tornando o poder público cúmplice e, muitas vezes, mandante das suas ações. Nunca a relação entre políticos (criminosos de colarinho branco) e bandidos e traficantes esteve tão evidenciada como neste filme. José Padilha conseguiu “revelar” aos olhos da população brasileira que o Estado não é uma entidade abstrata, uma representação “neutra” ou externa ao corpo social, mas faz parte da nossa sociedade e é constituído por ela. Nesse cenário de ambigüidades e contradições, policial, deputado e senador usam o Estado para seus interesses pessoais, tornando a “segurança pública” uma máquina de angariar votos. Nesse filme de terror, bandidos, autoridades públicas e a mídia fazem parte da mesma organização, estão correlacionados, são "parceiros" e possuem relações de intimidade e cumplicidade entre si.
Já estava mesmo na hora de abandonarmos a velha idéia de um Estado como força de ocupação, cujo modelo paradigmático, pelo menos para nós, brasileiros, foi o Estado Colonial português. Desde os tempos do “descobrimento” (cuja definição correta seria genocídio), apreendemos que o Estado nunca foi a favor dos nossos interesses, pelo contrário, só servia para sugar o fruto do nosso trabalho, ação materializada nas taxas e impostos cobrados pela Coroa Portuguesa e, mais tarde, pelo rei tupiniquim. A nossa história “republicana”, repleta de longos períodos de “ditadura”, só reforçou ainda mais essa idéia de um “Estado” externo à sociedade.
Enquanto isso, por outro lado, para as elites o Estado sempre foi o quintal de suas casas, a extensão do seu patrimônio, uma ferramenta de conquista de benefícios pessoais. Enquanto a população foi ensinada a perceber o Estado como uma força misteriosa, quase mística, uma entidade temida e ao mesmo tempo desconhecida, outros setores se beneficiaram de uma relação muito mais intima com a máquina pública. É por isso que, hoje em dia, é tão complicado analisar o problema da segurança pública no Brasil. Somente um filme como “Tropa de Elite 2” para mostrar a continuidade existente entre o Estado e a Sociedade de uma maneira simples, sem conceitos abstratos.
Mas qual é a relação de toda essa reflexão sobre o Estado e o terrorismo que está ocorrendo no Rio de Janeiro? Bem, a questão é que o chamado “crime organizado” é uma entidade muito mais complexa do que meia dúzia de bandidos e marginais. Existem fatores estruturais, por assim dizer, que estão por trás do fenômeno criminoso. Enquanto não formos capazes de abordar com seriedade esses problemas estruturais (e estruturantes) da nossa sociedade, vamos continuar tendo que enfrentar esse cenário de guerra civil. E os problemas já são bem conhecidos e podem ser reduzidos a uma única palavra: desigualdade. A razão última do crime é a desigualdade e a impunidade dos políticos e mandantes. Sim, por que por trás de todo “teleguiado” existe uma mão que aponta a direção, uma cabeça que pensa e planeja, enfim, uma organização criminosa. Só espero que o exército e a polícia não deixem de perseguir e investigar os setores corruptos da própria polícia militar, civil e federal dessa rede criminosa. A verdade é que talvez a batalha mais dura tenha que começar no interior dos próprios quartéis das forças policiais e nos gabinetes do Congresso Nacional. Isso sem falar nas prisões mantidas com dinheiro público, de onde “cabeças” - na verdade, apenas gerentes do crime - enviam ordens de combate e destruição. Tudo isso financiado com o nosso dinheiro. É desta forma que começamos a perceber que o crime não é uma entidade, mas uma rede que perpassa outros setores da nossa sociedade e do próprio poder público. O que estamos vendo nas imagens transmitidas nos meios de comunicação é apenas a “ponta do iceberg”. É como se estivéssemos tentando combater a doença apenas buscando silenciar os seus sintomas mais visíveis, mas sem atacar as suas forças estruturais/estruturantes.
Enquanto continuarmos alimentando (repare o papel da mídia neste sentido) a idéia de que a política é coisa de bandido e de que o Estado só serve para cobrar imposto, vamos continuar fabricando as “autoridades” corruptas que se beneficiam pessoalmente do sofrimento de milhões de pessoas. O Brasil do “Tiririca” reproduz a mística (real) de um Estado como entidade abstrata, quase que fantasmagórica, cuja percepção se reduz à figura do policial que encontramos ao retornar para casa. Enquanto isso, sem percebermos, a intimidade dos poderosos com essa figura mística torna as suas repartições públicas uma extensão do patrimônio pessoal de grandes famílias. Vemos renascer a idéia do Estado conforme representado na filosofia política, algo muito diferente do atual Estado Brasileiro, com sua historicidade e suas múltiplas formas de atualização. É esse Estado real que deve ser analisado do ponto de vista etnográfico, tendo como referência uma microfísica do poder que nos permita perceber as continuidades entre a sociedade e o poder público, ao invés de reproduzir o Estado enquanto “coisa” externa à sociedade e com poder de coação sobre os seus cidadãos. Somente quando conseguirmos superar a miopia que rege essa mística - cujo carácter fictício multiplica ainda mais o seu poder e sua eficácia- só então vamos poder analisar o problema da segurança pública de uma forma que nos permita entender que todos nós, brasileiros, temos uma parcela de culpa sobre o que está acontecendo no Rio de Janeiro e em outras metrópoles brasileiras.
Neste momento, só me resta esperar que o sofrimento da população carioca - habitantes desta cidade cuja natureza exuberante nos permite chamar de “maravilhosa” – passe logo e que a paz seja restabelecida em suas vidas. E que nós, brasileiros, façamos deste momento uma oportunidade de autocrítica e reflexão sobre a sociedade que estamos construindo no dia a dia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário