terça-feira, 10 de agosto de 2010

Conservação, Vida Social e Desenvolvimento entre os Povos Indígenas Kayapó do Sudeste da Amazônia - Parte II

Parte II (Continuação)
Neste espaço, não pretendo tecer ou aprofundar questões antropológicas sobre os Kayapós da A’Ukre. Gostaria apenas de apresentar breves observações sobre essa última experiência que tive entre os índios Mebêngôkre – os homens do buraco/lugar d’água – conforme eles se autodenominam.


Dados históricos e etnológicos apontam para a existência originária de três grandes grupos desta etnia: os Irã-‘ãmranh-re (“os que passeiam nas planícies”); os Goroti Kumrenhtx (“os homens do verdadeiro grande grupo”); e os Porekry (“os homens dos pequenos bambus”). Esses três grandes grupos habitavam desde tempos imemoriais a região do rio Tocantins, numa região de transição mais acentuada entre o cerrado e a floresta tropical, aproveitando os recursos diferenciados destes dois biomas. O seu modo de vida, no entanto, foi fortemente afetado pelos primeiros contatos com os “brancos” colonizadores, ainda no início do século XIX. Devido à violência desse primeiro contato, os Kayapó migraram para o oeste, adentrando o interior do país. Após um breve período de paz, devido à expansão da fronteira de colonização, esses índios enfrentaram novamente a situação de contato. Nesse momento, houve uma cisão interna: uma parte era favorável ao estabelecimento de relações com os brancos e a outra parte não. Essa cisão acabou ocasionando uma série de subdivisões internas e a conseqüente fragmentação desses três grandes grupos originários. Os subgrupos que decidiram estabelecer relações com o branco foram, em grande medida, exterminados. Já os sobreviventes continuaram a sua migração em direção ao oeste e, após se estabelecerem em seu novo território, passaram a atacar todos que se aproximassem deles. Já mais recentemente, nas décadas de 1950/60, o Governo Brasileiro enviou equipes para “pacificar” os Kayapós, que, desde então, entraram em contato definitivo com a sociedade nacional.

Durante as décadas de 1980/90, os Kayapó ficaram conhecidos na mídia brasileira e internacional devido à sua mobilização em prol dos seus direitos políticos e territoriais. Foi nessa época que lideranças como Ropni (Raoni) e Bepkoroti (Paulinho Payakã) ficaram famosos no mundo inteiro, aparecendo ao lado de artistas, personalidades e chefes de estado. O evento mais importante desta fase mais recente da história do contato com a sociedade nacional foi o grande encontro indígena de Altamira, realizado em fevereiro de 1989 em parceria com outros 24 povos indígenas, ambientalistas e antropólogos. Inclusive, é importante mencionar o apoio de Janet Chernela, Barbara Zimmerman, Terence Turner e Darell Posey durante essas mobilizações políticas. Apesar dessa “parceria” ter servido para dar maior visibilidade às demandas políticas dos Kayapó, a imagem idealizada de muitos ambientalistas acabou gerando alguns conflitos de entendimento dos interesses indígenas e não-indígenas envolvidos nessa associação. Por outro lado, a visibilidade alcançada pelos Kayapó no cenário internacional resultou num vasto conhecimento etnológico e etnobiológico sobre o grupo, o que, em certa medida, também ajudou a fortalecer os seus direitos territoriais e intelectuais.

A própria aldeia da A’Ukre foi afetada por essa visibilidade política ao se tornar um dos “cenários” de uma inusitada parceria com a Body Shop, empresa multinacional do setor de higiene pessoal sediada na Inglaterra. Os contornos dessa parceria foram delineados ainda no encontro de Altamira, em 1989, quando Payakã – um dos principais líderes políticos desta aldeia – convidou representantes desta instituição para buscarem alternativas ambientalmente sustentáveis e que pudessem atender as demandas econômicas do seu povo. Foi assim que surgiu o projeto de exploração do óleo extraído da castanha e usado pela empresa na fabricação de seus produtos de higiene (condicionadores de cabelos). Desde o início desse empreendimento, a parceria foi permeada por inúmeros conflitos entre a mentalidade capitalista (o significado do empréstimo e da poupança) e as formas comunitárias de agenciamento indígena do empreendimento. Esses conflitos se intensificaram ainda mais com a “regulamentação” das atividades de acesso ao “patrimônio genético” e aos “conhecimentos tradicionais associados”, inviabilizando por completo a continuação do projeto. Hoje em dia, conforme pude observar, o único sinal dessa parceria na aldeia A’Ukre é a presença, em estado de completo abandono, da infra-estrutura utilizada no armazenamento, extração e transporte do óleo de castanha.

Os Mebêngôkre da A’Ukre também são conhecidos pela sua associação, durante boa parte da década de 1980, com garimpeiros atraídos pelo ouro existente em suas terras. Apesar da dificuldade enfrentada pelos índios para controlar o fluxo de ouro e as conseqüências sociais, políticas e culturais originadas da presença de forasteiros em suas terras, os kayapós obtiveram relativo sucesso ao controlar e administrar esse fluxo através da cobrança de uma taxa de 10% sobre todo o ouro extraído pelos garimpeiros. O dinheiro adquirido com a cobrança da taxa foi investido no patrulhamento do seu território com o auxílio de aviões e a conta bancária dos caciques de Goritire cresceu sensivelmente durante esse período. Mas o eldorado kayapó acabou em meados da década de 1990, quando foi substituído pela presença dos madeireiros, que adentraram o território kayapó para extrair a valiosa madeira de mogno. Não há dúvida que essas duas formas de associação com atores da sociedade nacional afetaram sensivelmente o modo de vida kayapó, mas, por outro lado, precisamos reconhecer a capacidade de autodeterminação histórica desse povo, que mesmo diante de situações de desigualdade de força e poder, buscou controlar a situação de contato através da manutenção da sua vida cerimonial. A abertura para a relação com os “brancos” também nunca foi consenso entre os chefes kayapós. O filme de Terry Turner, “The Kayapó”, que tivemos a oportunidade de assistir na aldeia junto com a comunidade da A’Ukre, retrata esse momento e as divergências entre chefes favoráveis e contrários a relação com os garimpeiros.

Outra iniciativa importante foi o estabelecimento, em 1992, de uma base científica localizada 15 km a montante da aldeia, a “Reserva e Estação de Pesquisa do Pinkaiti”, resultado de uma parceria entre os chefes políticos locais e a ONG Conservação Internacional. A idéia inicial desse projeto era buscar, com apoio de pesquisadores, alternativas de conservação de uma população de mogno em uma área de cerca de 8 mil hectares de terra. Essa iniciativa conservacionista foi pensada em contraponto as iniciativas comerciais levadas a diante pelos próprios Kayapós, que por muito tempo mantiveram relações econômicas com os madeireiros. Desde então, foram vários os pesquisadores que foram desenvolver seus trabalhos de pesquisa na Reserva, o que acabou gerando alternativas de renda para a comunidade da A’Ukre: o pagamento, por parte dos cientistas, de taxas de ingresso e permanência na comunidade; e o emprego remunerado de auxiliares e assistentes indígenas nas pesquisas (ver mais sobre essa iniciativa no Programa do Curso, anexado neste blog na página ao lado). Inclusive, A’Ukre seria um contexto excelente para a realização de uma pesquisa na área de etnologia e antropologia da ciência, devido à existência de uma relação histórica entre cientistas e comunidade.

Acima de qualquer julgamento sobre o mérito de tais “parcerias” com cientistas e empresas (assunto complexo que não merece ser tratado aqui), o fato é que os Kayapó têm demonstrado sua capacidade histórica de, mesmo quando em situações limitadas, optar e escolher formas diferentes de lidar com a diferença.

Continua em breve...

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...