sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Vida e Materialismo Histórico em Marx e Engels

"Com relação aos alemães, que não dispõem de quaisquer premissas, devemos lembrar a existência de uma primeira premissa de toda a existência humana e, portanto, de toda a História, ou seja, a premissa de que os homens têm de estar em condições de viver para poderem fazer História. Para viver é preciso, sobretudo, comer, beber, vestir-se, ter uma habitação etc. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e a verdade é que este é um fato histórico, uma condição fundamental de toda a História, que ainda hoje, tal como há milhares de anos, tem de ser realizado dia a dia, hora a hora, para, ao menos, manter os homens vivos. Mesmo quando a realidade se reduz a um simples bastão, como como São Bruno, essa mesma realidade pressupõe a atividade da produção deste bastão. Assim a primeira coisa a fazer em qualquer concepção da História é observar este fato fundamental em todo o seu significado e em toda a sua dimensão, e atribuir-lhe a importância que lhe é devida.

(...) A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, como da alheia, na procriação, surge imediatamente como uma dupla relação: por um lado como relação natural, por outro como relação social, no sentido em que aqui se entende a cooperação de vários indivíduos não importando em que circunstância, maneira e com que objetivos. Disto resulta que um determinado modo de produção ou estágio de desenvolvimento industrial esteja sempre ligado a um determinado modo de cooperação, ou fase social, e este modo de cooperação é ele próprio uma 'força produtiva'; e que a quantidade das forças produtivas acessíveis aos homens condiciona o estado da sociedade e, portanto, a 'História da Humanidade' tem de ser estudada e tratada em conexão com a história da indústria e da troca.

Somente agora, depois de termos examinado quatro momentos, quatro facetas das relações históricas primordiais, verificamos que o homem também tem 'consciência'. Mas não se trata de uma consciência que seja de antemão consciência 'pura'. Sempre pesou sobre o 'espírito' a maldição de estar preso à matéria, a qual aqui se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, em outras palavras: sob a forma de linguagem. A linguagem é tão velha como a consciência, a linguagem é a consciência real prática que existe também para outros homens e que, portanto, só assim existe também para mim, e a linguagem só nasce, como a consciência, da necessidade, da carência de contato com outros homens. Onde existe uma relação, ela existe para mim.

(...) A consciência da necessidade de manter relações com os outros indivíduos marca o começo da consciência do homem de que vive, de fato, em sociedade. Este começo é tão animal quanto a própria vida social desta fase, é mera consciência gregária e, neste aspecto, o homem se distingue aqui do carneiro apenas pelo fato de a sua consciência substituir o instinto ou de o seu instinto ser consciente".

Referência: MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã: teses sobre Feuerbach (Relações Históricas Primordiais).

Imagem: Cássio Loredano (Editora Boitempo)            

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O Cego e a bengala - Merleau-Ponty



"Na verdade, todo hábito é ao mesmo tempo motor e perceptivo, porque, como dissemos, reside, entre a percepção explícita e o movimento efetivo, nesta função fundamental que delimita ao mesmo tempo nosso campo de visão e nosso campo de ação. A exploração dos objetos com uma bengala, que há pouco apresentávamos como um exemplo de hábito motor, também é um exemplo de hábito perceptivo. Quando a bengala se torna um instrumento familiar, o mundo dos objetos táteis recua e não mais começa na epiderme da mão, mas na extremidade da bengala. É-se tentado a dizer que, através das sensações produzidas pela pressão da bengala na mão, o cego constrói a bengala e suas diferentes posições, depois que estas, por sua vez, medeiam um objeto à segunda potência, o objeto externo. A percepção seria sempre uma leitura dos mesmos dados sensíveis, ela apenas se faria cada vez mais rapidamente, a partir de signos cada vez mais claros. Mas o hábito não consiste em interpretar as pressões da bengala na mão como signos de certas posições da bengala, e estas como signos de um objeto exterior, já que ele nos dispensa de fazê-lo. As pressões na mão e a bengala não são mais dados, a bengala não é mais um objeto que o cego perceberia, mas um instrumento com o qual ele percebe. A bengala é um apêndice do corpo, uma extensão da síntese corporal".

Referência: MERLEAU-PONTY, M. 2011. Fenomenologia da Percepção (Capítulo IV). São Paulo: Martins Fontes.   

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Metrologia e Formatação em Serres

"Enfim, como navegar sem instrumentos para medir os ângulos, sem regras de cálculo, sem um modelo astronômico, sem compasso nem portulano, sem um mapa que indique o traçado exato do espaço a percorrer? Por meio da generalização dessa métrica, essas máquinas e referências contribuem para um verdadeiro controle das operações.

Essa padronização de pesos e medidas, de sinais e atos, torna possíveis as trocas mundializadas entre o que então se chamava de terra habitada. No espaço desse tempo, nenhuma economia de tal envergadura teria sido capaz de se organizar nem funcionar sem esses números, sem essas operações, não apenas sem as medidas que eles permitem ou pressupõem, mas, sobretudo, sem essa metrologia generalizada. A economia é resultante dela, pelo menos na mesma medida em que a condiciona. Em resumo, sua novidade pressupõe, ou acompanha, no mesmo momento e nos mesmos lugares, a emergência da ciência moderna: em países mercantilistas como a Itália e Flandres, pátrias de Girolamo Cardano (1501-1576) e Simon Stevin (1548-1620), respectivamente. Não que eu acredite, repito, que a economia tenha determinado as descobertas científicas, mas o reagrupamento de um conjunto de técnicas do mesmo gênero, um gênero ao qual procuro dar um nome, condiciona as trocas complexas do comércio realizado em torno do Mediterrâneo na época do Renascimento, assim como a emergência da ciência que herdamos.

(...) A esse gênero de coisas dou o nome de formato: a contabilidade formata as trocas, assim como, nos dias de hoje, computador formata e globaliza nossas informações; denominemos, pois, formatação a padronização do conjunto dessas medidas científicas, práticas, culturais e até mesmo artísticas, nos casos das partituras musicais destinadas aos corais e nas pinturas dos mestres. Uso o exemplo da contabilidade porque a palavra procede o que, em latim anglicizado, designa nossas máquinas: ao agrupar contábil e mensurável, ambas produzem inumeráveis configurações, pressupõem elementos, séries, repetições, homogeneidades, medidas e acordos que dizem respeito a vários domínios que, naturalmente, pensamos não terem nenhuma relação entre si.

(...) O formato diz respeito a homens e coisas, à natureza e à cultura... assim como ao acontecimento, que é seu oposto. Se alguém adivinhar rapidamente o poder que o acontecimento propicia, poderá também perceber seus inconvenientes. Preservar a uniformidade do mensurável certamente permite a eficácia, uma vez que elimina qualquer acidente, mas exclui o acontecimento e impede a novidade.

(...) Quem nunca obedeceu a um horário rígido, previsto com muita antecedência, tanto para o ano como para as horas, matinas, tércias, sextas, laudes, vésperas e completas, quem não saiu de sua cela ao soar dos sinos, não se debruçou sobre o birô para estudar, quem não foi ao refeitório, sempre em fila e, com frequência, em silêncio... O claustro, o pátio do colégio, a fábrica ou o escritório, o estádio ou a prisão... criam um lugar no espaço, contam o tempo, determinam de que maneira preencher os dias e a sequencia das horas, seus monges, internos, marinheiros e equipes vestem uniformes... em resumo, eles formatam o tempo, o espaço e as ações das crianças e dos adultos. Esse programa variou pouco desde a Idade Média até a manha de ontem.

(...) Sem o formato, no qual as formas dizem respeito tanto ao artesão como à sua obra, não há produção. Como é que um atleta alcança o estado que ele designa como 'estar em forma'? Por meio de um treinamento que exige que ele siga uma regra e que se torne um monge; o mesmo acontece com o escritor. Trata-se de uma condição necessária que assegura, pelo menos, um trabalho bem-feito, uma corrida honrosa, um lugar medíocre entre os profissionais. Para a genialidade, porém, ninguém encontrou ainda as condições suficientes. A classificação das ciências e disciplinas, dos artigos e teses, das notas de rodapé, do índice e da bibliografia, a citação conscienciosa e humilde por ocasião do debate... são exigências universitárias que disciplinam a pesquisa e o pensamento. Conforme-se à força coercitiva da formatação... Obedeça ao formato-pai que, invisível e ausente, reina sobre o saber absoluto.

Se seu desejo, porém, é inventar, arrisque-se, livre-se do formato. Faça isso, mesmo que tenha de morrer, transforme-se em filho. As grandes obras conjugam formato e invenção, disciplina de ferro e liberdade: pai e filho."

Referência: SERRES, M. 2008. Ramos (Formato-Pai). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.    

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Objetos Fractais em Mandelbrot

"Ao longo deste ensaio, objetos fractais naturais muito diversos, alguns dos quais, como a Terra, o céu e o oceano, nos são bastante familiares, são estudados com a ajuda de uma grande família de objetos geométricos, até agora considerados exotéricos e perfeitamente inúteis. Pretendo mostrar, pelo contrário, que estes objetos, pela sua simplicidade, diversidade e extraordinária extensão das suas novas aplicações, merecem ser rapidamente integrados na geometria elementar. Apesar do seu estudo fazer parte de campos científicos diferentes, entre os quais a geomorfologia, a astronomia e a teoria da turbulência, os objetos naturais em questão têm em comum uma forma irregular ou interrompida. Para os estudar, concebi, aperfeiçoei e utilizei extensivamente uma nova geometria da natureza.

A noção que lhe serve de fio condutor será designada por um de dois neologismos equivalentes, 'objeto fractal' ou 'fractal', termos que formei, pela necessidade que me surgiu com este livro, a partir do adjetivo latino fractus, que significa 'irregular' ou 'quebrado'.

Será necessário definir uma figura fractal de modo rigoroso, para em seguida dizer que um objeto real é fractal por se assemelhar à figura geométrica que constitui o modelo? Considerando que um tal formalismo seria prematuro, adotei um método muito diferente: um método baseado numa caracterização aberta e intuitiva, onde os avanços se efetuam por retoques sucessivos.

O subtítulo sublinha que o meu objetivo inicial consiste em descrever, a partir do exterior, a forma de diversos objetos. Logo que esta primeira fase seja bem sucedida, a prioridade transita de imediato da descrição para a explicação: da geometria para a dinâmica, a física e por aí adiante.

O subtítulo indica ainda que, para conseguir a irregularidade fractal, coloco em discussão as construções em que predomina o acaso.

Por fim, o subtítulo explicita que uma das características principais de todo objeto fractal é a sua dimensão fractal, que será representada por D. Esta é uma medida do grau de irregularidade e de fragmentação. Um fato muito importante: ao contrário dos números dimensionais correntes, a dimensão fractal pode muito bem ser uma fração simples, como 1/2 ou 5/3, ou mesmo um número irracional, como log 4/log 3 = 1,2618... Assim, é conveniente dizer, a respeito de certas curvas planas muito irregulares, que a sua dimensão fractal se situa entre 1 e 2, a respeito de certas superfícies muito enrugadas e cheias de pregas, que a sua dimensão fractal está entre 2 e 3 e, enfim, definir conjuntos de pontos sobre uma linha cuja dimensão fractal está entre 0 e 1.

(...) A geometria fractal é caracterizada por duas escolhas: a escolha de problemas no seio do caos da natureza, uma vez que descrever todo caos seria uma ambição sem esperança e sem interesse, e a escolha de ferramentas no seio das matemáticas, pois procurar aplicações das matemáticas pelo simples fato de serem belas acabou sempre por causar dissabores.

Depois de progressivamente amadurecidas, estas duas escolhas criaram algo de novo: entre o domínio do caos desregulado e a ordem excessiva de Euclides existe agora a nova zona da ordem fractal."

A geometria fractal foi criada, em 1975, pelo matemático francês nascido na Polônia, Benoit Mandelbrot. Em linhas gerais, um fractal é um objeto geométrico que pode ser divido em partes, cada uma da qual semelhante ao original. Essas figuras de forma irregular e fragmentada são encontradas na natureza ou podem ser produzidas artificialmente através de um algoritmo matemático.



Referência: MANDELBROT, B. 1998. Objetos Fractais (Introdução). Lisboa: Editora Gradiva.      

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

A noção de "transformação" em Lévi-Strauss

"A de 'transformação' tem um espaço capital em suas análises de o Pensamento Selvagem como igualmente será o caso em Mitológicas. A quem o senhor tomou de empréstimo? Aos lógicos?"

"Nem aos lógicos nem aos linguistas. Veio-me de uma obra que para mim desempenhou um papel decisivo, e que li durante a guerra, nos Estados Unidos: On Growth and Form, em dois volumes, de D'arcy Wentworth Thompson, publicada pela primeira vez em 1917. O autor, naturalista escocês, interpretava como transformações as diferenças visíveis entre as espécies e órgãos animais ou vegetais no seio de um mesmo gênero. Isso foi uma iluminação, tanto que logo iria perceber que esta maneira de ver inscrevia-se numa longa tradição: antes de Thompson, havia a botânica de Goethe, e antes de Goethe, Albert Dürer, com seu Traité de la proportion du cosps humain.

Ora, a noção de transformação é inerente à análise estrutural. Diria, até, que todos os erros, todos os abusos cometidos, sobre ou com a noção de estrutura, provêm do fato de seus autores não compreenderem que é impossível concebê-la separada da noção de transformação. A estrutura não se reduz ao sistema: conjunto composto de elementos e de relações que os unem. Para que se possa falar de estrutura, é necessário que entre os elementos surjam relações invariantes, de tal forma que se possa passar de um conjunto a outro por meio de uma transformação.

Um outro itinerário, que os historiadores das ideias saberiam traçar melhor, introduziu a noção de transformação em linguística, talvez também a partir de Goethe, por intermédio de Guillaume de Humboldt e Baudoin de Courtenay. Quando se tenta dar conta da diversidade, seja qual for o domínio considerado, das diferentes maneiras pelas quais os elementos podem ser combinados, impõe-se o recurso à noção de transformação.

Se invoco um único princípio, o intercâmbio das mulheres entre os subgrupos da sociedade, para ficar a par de todas as regras de casamento, é necessário que essas regras, diferentes conforme a época e o lugar, se reduzam a estados de uma mesma transformação. O mesmo acontece quando o linguista prepara o repertório de fenômenos que o aparelho vocal consegue articular, e destaca as limitações a que cada língua deve curvar-se para retirar desse fundo comum os elementos de seu sistema fonológico particular. A própria noção de fenômeno implica que as propriedades divergentes dos sons, tal como a fonética os registra, constituam-se em transformações opcionais ou contextuais de uma realidade invariante, num nível mais profundo."

Referência: LÉVI-STRAUSS, C. e ERIBON, D. 2005. De perto e de longe. São Paulo: Cosac Naify.            
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