(...) Em contrapartida, a linguagem escrita ou falada repetida sem nenhum risco faz proliferar pessoas irrefletidas que, imóveis, se agitam e se reproduzem. Neste caso, por mensagens mortas, o outro se reduz a nada, assim como a coisa se reduz a seus suportes, cera, tela ou papel e, enfim, a si mesmo, a seus neurônios, ao eu, ao pensamento. O risco que a verdade corre desaparece no instante em que o mundo inimitável exige posições, atos e movimentos cuja pertinência ele imediatamente sanciona.
(...) Eu nunca soube explicar o eu nem descrever a consciência. Quanto mais penso, menos sou; quanto mais eu sou, menos penso e menos ajo. Não me busco como sujeito, projeto tolo; solitários, as coisas e os outros se encontram. Entre eles encontra-se meu corpo, um pouco menos coisa e muito menos outro.
(...) Em contrapartida, quando as mãos se agarram à rocha até sangrarem, quando o peito, o ventre, as pernas e o sexo ficam paralelos à parede, quando em conjunto as costas, os músculos, os sistemas nervoso, digestivo e simpático participam sem reservas da abordagem física do relevo, em uma relação de luta aparente e de sedução real, do mesmo modo a pedra tocada perde sua dureza e, amada, ganha uma surpreendente doçura. A visão, mesmo ampla, perde o sentido de distância do sobrevôo e passa a interessar-se pelo corpo inteiro, como se a totalidade do organismo, agora lúcido, colaborasse com o olhar, enquanto os olhos ficam ligeiramente obscurecidos; aquilo que do alto continua a ser espetáculo passa a integrar o corpo cuja estatura aumenta nas dimensões gigantes do mundo. (...) O corpo em movimento federa os sentidos e os unifica nele. Essa visão corporal global e esse toque, cujo maravilhoso poder de transubstanciação transformam o paredão rochoso em matéria mole e fibrosa, continuam sempre a produzir encantamento, mesmo na ausência tácita de linguagem e música".
Variações sobre o corpo - Michel Serres
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