Um dos efeitos dos estudos sociais da ciência é a popularização da crítica (a priori) do objetivismo científico, ora acompanhada da defesa da ideia de que ele já não existe mais enquanto pressuposto (um absurdo etnográfico), ora promovendo uma desautorização explícita do discurso e da fala dos próprios pesquisadores (uma atitude de autoritarismo epistemológico um tanto objetivista). Resulta dessa crítica uma batalha científica e epistemológica de grandes proporções que não representa nenhuma novidade no mundo ocidental.
De fato, os postulados naturalistas do conhecimento 'objetivo' como critério de cientificidade, assim como as práticas geradas pelo pressuposto da existência de uma Natureza objetiva, são formas históricas de pensamento que orientam parte das práticas de conhecimento nos laboratórios e instituições de pesquisa ocidentais. Essa ontologia objetivista produz coisas e leva o cientista a aproximar-se dos fenômenos a partir da tentativa de domesticação da subjetividade, projeto sempre inacabado e incompleto. As práticas de purificação também agem sobre o corpo e a mente dos pesquisadores, como forças disciplinares. Esse ideal de construção do conhecimento, cujo evento paradigmático é, certamente, o método de Descartes, ainda está vivo e atuante nas diferentes ciências ocidentais. Ele gera formas de disciplinarização do corpo e da mente e está associado a um conjunto arbitrário de modos de objetivação/subjetivação de coisas e pessoas. Trata-se, além de uma epistemologia, de um fenômeno histórico e político já bem consolidado na história ocidental. Inclusive, a crítica epistemológica e filosófica à pretensão de uma parte desses objetivistas (históricos) em promover o pensamento objetivo como o único caminho para alcançar a verdade não é nenhuma novidade e já vem sendo feita ha muito tempo.
Os estudos da ciência percorreram outro caminho, tão importante quanto o caminho da filosofia crítica e experimental de autores como Husserl, Heidegger e Rorty, entre outros. Ao revelar os mecanismos discursivos e materiais que estão na origem da construção dos objetos (ou fatos) científicos, os estudos mais etnográficos ajudaram a historicizar e culturalizar o próprio 'objetivismo', que até então era analisado, em grande parte, como um paradigma filosófico ou epistemológico.
Ao fazer isso, no entanto, em nenhum momento negou-se a própria existência do fenômeno. Ora, apesar dos objetos não serem um reflexo imediato de uma Natureza intocada, esses estudos descrevem a forma como as coisas (e até mesmo as pessoas) são tornadas 'objetos' nas mais diferentes ciências. A crítica, portanto, não é epistemológica, mas ontológica. O que os estudos sociais da ciência demonstraram é que os cientistas não somente pensam assim, mas agenciam o mundo a sua volta de forma a reproduzir sinais que indiquem a existência de fenômenos mais ou menos 'objetivos' (no sentido de 'pensados enquanto objetos de determinada ordem').
Quando se busca objetos, o resultado da busca não pode ser nada além de 'objetos'. De fato, o objetivismo não é ignorado ou simplesmente criticado, mas descrito minuciosamente, em detalhes, como um fenômeno humano. Inclusive, é esse duplo movimento de descrição e desvelamento que vai revelar, ao lado das práticas de purificação dos objetos, as práticas de hibridização de coisas e pessoas, de natureza e cultura. A crítica, neste caso, é essencialmente etnográfica.
Antes de promovermos uma marcha (a priori, de ordem epistemológica) contra a ontologia naturalista, devemos enraizá-la no devir histórico e humano, livrando-a da pretensão de universalidade, inserindo-a em um conjunto mais amplo de ontologias possíveis, colocando-a novamente no seu devido lugar. Somente essa atitude irá nos revelar os aspectos positivos e negativos dessa forma de construir o conhecimento, o que os seus instrumentos capturam e o mundo de coisas, pessoas, sentimentos, forças, linhas dispersivas e rebeldes, que não são capturadas por essa malha fina. Nesse percurso, algumas questões iniciais são fundamentais:
Quais são os pressupostos ontológicos dos cientistas brasileiros, nas diferentes áreas do conhecimento? Como esses pressupostos estabelecem uma relação de circularidade com os aparelhos e os sinais que permitem a sua objetivação nas instituições de pesquisa? Quais os modos de subjetivação colocados em prática para sustentar esses objetos? Quais são os instrumentos de coleta, produção e sistematização de dados e quais são as suas implicações no processo de produção dos objetos científicos? Como os fatos científicos são construídos dentro e fora do laboratório?
O pano de fundo para a elaboração dessas questões foram enunciadas pela primeira vez em um livro germinal no campo dos estudos da ciência, Vida de Laboratório, publicado ao final da década de 1970. Nesse livro, fazendo uso da 'etnometodologia", Latour e Woolgar acompanham o cotidiano de um laboratório, descrevendo o seu funcionamento e os aparelhos e instrumentos utilizados para a construção dos fatos científicos. Descrever os processos coletivos que estão na origem da construção da objetividade é uma tarefa explicitamente proposta pelos próprios autores:
"Mais importante que o respeito por um 'vivido' tantas vezes apresentado, uma única questão antropológica domina este relato: como a objetividade que não tem a sociedade por origem é produzida por essa sociedade? Para falar como Bachelard, como é feito um fato? Para falar como Serres (1987), como o objeto chega ao coletivo? Para falar como Shapin e Schaffer (1985), como a política da experiência produz uma experiência infinitamente distante de toda política? Para dizer como Bloor, como o conteúdo emerge de seu contexto? É unicamente com relação a essa questão diversamente formulada que se deve julgar os limites desta primeira pesquisa de campo" (1979: 34).
Conforme Latour demonstrou muito bem em um livro posterior - Jamais Fomos Modernos (1991) - apesar do trocadilho do título, muito mais do que desconstruir os grandes divisores da modernidade, o etnógrafo da ciência deve estar comprometido com a descrição do funcionamento desses grandes divisores e na relação tensa e contraditória entre as práticas de hibridismo e purificação. Afinal, negar discursivamente a existência do objetivismo científico não resulta também no velamento das relações de poder que ele produz e que o produzem, exatamente aquilo que se pretende revelar ou descrever?
A etnografia da ciência em ação...
O Departamento de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP) adquiriu recentemente um supercomputador, avaliado em mais de US$ 1 milhão e composto por três torres do tamanho de geladeiras domésticas que, juntas, pesam cerca de 3 toneladas. Essa máquina computacional possui mais de 2 mil núcleos de processamento de dados, voltados exclusivamente para pesquisas astronômicas mundiais. Segundo o astrofísico Alex Carciofi, nenhuma outra instituição da área está equipada com essa capacidade de processamento de dados, tanto no que se refere à quantidade, como também no que se refere à capacidade de correlação, sistematização e cálculo de informações matemáticas. Esse computador, conforme anunciado pelos astrofísicos paulistas, tem a capacidade de aumentar "o grau de realismo físico" e rodar um maior número de "equações matemáticas".
O investimento é justificado pelos pesquisadores devido à "importância dos modelos matemáticos" para as pesquisas astrofísicas, incluindo também os estudos da teoria do multiverso. Tanto as equações como os aparelhos que as produzem são utilizadas diariamente nas instituições de pesquisa de diferentes áreas do conhecimento, em atividades cotidianas.
Mesmo os cosmólogos e astrólogos que defendem a existência de múltiplos mundos ou universos, fazem isso a partir de equações e modelos matemáticos, com o auxílio de poderosas máquinas de cálculo e computação como esta. De fato, a hipótese de múltiplos universos resulta do objetivismo científico tanto quanto do mono-naturalismo, pois é a mathesis (enquanto ciência numérica) que fornece os meios e a linguagem para a tradução e produção das informações e do conhecimento.
É claro que o objetivismo não está sozinho, pois ali, no laboratório, este templo sagrado das ciências ocidentais, outras formas de conhecimento não domesticadas, da ordem das qualidades sensíveis, também estão em ação, entrando em maior ou menor tensão com as equações matemáticas geradas pelos aparelhos. Muito mais do que negar o pensamento dos cientistas e seus pressupostos, devemos analisar como os processos de purificação e hibridização, de objetivação e subjetivação, entram em ralação nas instituições de pesquisa. Para isso, é necessário e fundamental fazer uma etnografia das ciências e, principalmente, etnografia simétrica, comprometida em levar a sério o que as pessoas dizem e pensam sobre o que estão fazendo, além de observar o que elas estão fazendo na prática.
Da mesma forma, a maior parte das instituições de pesquisa, assim como das atividades e práticas científicas em andamento em diferentes regiões do Brasil e do mundo, trabalha com os pressupostos do objetivismo científico, construindo conhecimentos, fatos, objetos, produtos, relações de poder, etc, a partir de informações quantitativas, cálculos matemáticos, gráficos e equações numéricas.
Tendo em vista que uma das maiores tarefas da etnografia da ciência é experimentar com o pensamento dos cientistas, a sua linguagem conceitual, seus aparelhos e objetos de trabalho, a crítica (pelo menos a priori) ao objetivismo científico torna-se anti-produtiva, além de extremamente assimétrica do ponto de vista epistemológico. Afinal, desconsiderar ou desautorizar o pensamento nativo é uma atitude bastante moderna, para não dizer modernizante. Antes de pregarmos a desconstrução do naturalismo ocidental, devemos fazer etnografia e acompanhar a ciência em ação.
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