quinta-feira, 29 de março de 2012

A Constituição Moderna segundo Latour: purificação e hibridização

"A hipótese deste ensaio - trata-se de uma hipótese e também de um ensaio - é que a palavra 'moderno' designa dois conjuntos de práticas totalmente diferentes que, para permanecerem eficazes, devem permanecer distintas, mas que recentemente deixaram de sê-lo. O primeiro conjunto de práticas cria, por 'tradução', misturas entre gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura. O segundo cria, por 'purificação', duas zonas ontológicas inteiramente distintas, a dos humanos, de um lado,  e a dos não-humanos, de outro. Sem o primeiro conjunto, as práticas de purificação seriam vazias ou supérfluas. Sem o segundo, o trabalho da tradução seria freado, limitado ou mesmo interditado. (...) Enquanto considerarmos separadamente estas práticas, seremos realmente modernos, ou seja, estaremos aderindo sinceramente ao projeto da purificação crítica, ainda que esse se desenvolva somente através da proliferação dos híbridos. A partir do momento em que desviamos nossa atenção simultaneamente para o trabalho de purificação e o de hibridização, deixamos instantaneamente de ser modernos, nosso futuro começa a mudar" (16).

Jamais fomos modernos - B. Latour

Como podemos ver acima, a proposta de Latour não consiste em voltar a atenção apenas para as práticas de hibridização, mas também para as práticas de purificação. Afinal, é a relação entre esses dois conjuntos de práticas que constitui a possibilidade de transformar a própria modernidade (enquanto discurso e prática) em um fenômeno passível de descrição e reflexão etnográfica. Essa orientação da pesquisa surge em outro trecho do mesmo livro:

"A tarefa da antropologia do mundo moderno consiste em descrever da mesma maneira como se organizam todos os ramos de nosso governo, inclusive da natureza e das ciências exatas, e também em explicar como e por que estes ramos se separam, assim como os múltiplos arranjos que os reúnem. O etnólogo de nosso mundo deve colocar-se no ponto comum onde se dividem os papéis, as ações, as competências que iram enfim permitir definir certa entidade como animal ou material, uma outra como sujeito de direito, outra como sendo dotada de consciência, ou maquinal, e outra ainda inconsciente ou incapaz. Ele deve até mesmo comparar as formas sempre diferentes de definir ou não a matéria, o direito, a consciência, e a alma dos animais sem partir da metafísica moderna. Da mesma forma que a constituição dos juristas define os direitos e deveres dos cidadãos e do Estado, da mesma esta Constituição - que escrevo com maiúscula para distingui-lá da outra - define os humanos e não-humanos, suas propriedades e suas relações, suas competências e seus agrupamentos" (Idem, p. 20-1).

Não se trata, portanto, de negar ou criticar (antes mesmo de analisar) a "Constituição Moderna" (identificada pela correlação entre purificação e hibridização), mas em buscar descrever como essa constituição é colocada em prática em diferentes contextos, ou seja, analisá-la em ação.

Não tenho dúvida de que a objetividade científica, por estar associada simultaneamente a práticas de purificação e hibridização, não somente envolve modos históricos de objetivação (estratégias discursivas e  materiais de transformação dos fenômenos em objetos), como essas formas também dependem de um conjunto de práticas disciplinares associadas a construção de uma determinada subjetividade (neste caso, uma 'intersubjetividade'). Ao descrever como o objetivismo histórico é construído nas diferentes áreas científicas, leva-se adiante o projeto de uma antropologia simétrica.

Já uma perspectiva assimétrica, neste caso, consistiria em voltar o olhar etnográfico apenas para as práticas de hibridização, buscando velar ou desconstruir o outro conjunto de práticas mencionado por Latour, as chamadas práticas de purificação (e o que é pior, em tom de denúncia retórica). Essa 'anulação' do pensamento do 'outro' foi uma prática histórica comum em relação aos índios, por exemplo, assim como em relação a outros coletivos visados pelo olhar antropológico. Dizer que os atores não sabem o que estão dizendo quando dizem que sabem o que estão fazendo é uma forma de constituir um atalho, um recorte, uma linha que permite impor sobre o outro uma linguagem conceitual exógena e avassaladora.

Talvez seja o momento de retornarmos a boa etnografia, voltada para a reflexão sobre a relação tensa entre pensamento e ação. Na antropologia da ciência, isso implica em voltar a atenção para esses dois conjuntos de práticas científicas - purificação e hibridização - sem negligenciar nenhum deles, levando em conta a relação tensa que existe entre esses dois aspectos do pensamento 'moderno'. 

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