sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Etnocentrismo - Parte I

"A atitude mais antiga, e que se baseia indiscutivelmente em fundamentos psicológicos sólidos (já que tende a reaparecer em cada um de nós quando nos situamos numa situação inesperada), consiste em repudiar pura e simplesmente as formas culturais: morais, religiosas, sociais, estéticas, que são as mais afastadas daquelas com as quais nos identificamos. 'Hábitos de selvagens', 'na minha terra é diferente', 'não deveria permitir isso' etc., tantas reações grosseiras que traduzem esse mesmo calafrio, essa mesma repulsa diante de maneiras de viver, crer ou pensar que nos são estranhas. (...)" - Lévi-Strauss, Raça e História (1952)

Com esta postagem, dou início a uma série de intervenções no blog voltadas para os meus alunos da Faculdade de Ciências Sociais e Tecnológicas (FACITEC) e o público mais amplo interessado em se familiarizar com conceitos, teorias e autores da antropologia. A ideia é associar essas postagens com a criação de duas novas páginas permanentes direcionadas para a mesma finalidade: "Dicionário de Antropologia Simétrica" (em processo de construção) e "Autores e Obras" (Idem).

Nesta primeira intervenção, pretendo dissertar brevemente sobre o etnocentrismo. Primeiramente, acho importante pontuar que essa noção remete a um fenômeno comum a todos os coletivos humanos, apesar de sofrer variações em termos de formas de manifestação e intensidade. Na antropologia, costuma-se denominar de 'etnocentrismo" a tendência geral de naturalizarmos os nossos hábitos culturais como os "mais corretos" ou simplesmente como "melhores" que os demais, que são percebidos sob o viés da nossa própria cultura (comportamento, ideais e formas de saber-fazer que apreendermos durante o processo de socialização). Isso ocorre porque a cultura orienta a  forma de vermos os costumes de outros povos, grupos ou sociedades, que são costumeiramente classificados como "menos adequados", "impróprios" e, em alguns casos, como "amorais", "bárbaros" e etc.

O trecho de Lévi-Strauss citado acima busca apontar para um aspecto muitas vezes negligenciado no uso que se faz dessa noção: a ideia de que o etnocentrismo é o desdobramento (consciente e manifesto) da atitude de perplexidade que sentimos diante do contato com a alteridade, o que conduz (em alguns casos) à reafirmação (frente à diferença) dos nossos próprios costumes e formas de pensar e fazer as coisas. Ao fazer isso o fundador do estruturalismo não estava incentivando ou justificando as violências cometidas em nome da intolerância de gênero, racial, religiosa, cultural e até mesmo ideológica, mas buscando mostrar que essas manifestações são um desdobramento mais ostensivo e hostil de uma atitude frente à alteridade verificável em vários povos e culturas. Trata-se de um fenômeno múltiplo e dinâmico, que assume diferentes configurações e intensidades. Nas sociedades ocidentais, o etnocentrismo deu origem a movimentos de intolerância ostensiva contra a diferença de gênero, racial, religiosa e ideológica. As inúmeras guerras de extermínio contra povos e culturas não-ocidentais e as milenares guerras religiosas são bons exemplos históricos de como a atitude etnocêntrica pode resultar em ações de violência.    

Por outro lado, é importante mencionar que a ralação com a alteridade nem sempre é orientada por essa atitude, pois existem povos e culturas que estabelecem uma relação mais 'amistosa' ou 'predadora' com a diferença cultural, buscando se apropriar (e transformar) as práticas e artefatos culturais de 'outros' povos ou assumindo uma atitude de tolerância amistosa com os parceiros comerciais. Com isso, podemos concluir que o etnocentrismo enquanto fenômeno cultural remete a uma das diversas atitudes possíveis diante da alteridade cultural (ideologia, moral, costumes, práticas e saberes de outros povos). Outras formas de experimentar com a diferença envolvem o estabelecimento de uma multiplicidade de relações de troca, assim como o compartilhamento ou intercâmbio de artefatos e práticas culturais. A própria guerra pode resultar na apropriação (pela força) dos traços que marcam a diferença do 'outro' enquanto presença, numa espécie de movimento antropofágico.  

Conforme identificado por Lévi-Strauss, a década de 1950 foi marcada pela busca do estabelecimento de princípios éticos universais, muitas vezes sem levar em consideração que a diferença cultural e moral é um dos elementos que constituem a diversidade humana. Ao mesmo tempo em que o autor condenou abertamente as teorias evolucionistas e racialistas que buscavam inferiorizar ou barbarizar os povos não-ocidentais como "inferiores" em termos de capacidade cognitiva e moral, ele também fez uma advertência de que a tentativa de eleger princípios éticos transculturais era, em si, uma forma de intolerância com a diversidade cultural. Ou nas palavras do próprio autor: "a simples proclamação da igualdade natural entre todos os homens, e da fraternidade que deve uni-los sem distinção de raça e cultura, tem algo de decepcionante para o espírito, pois negligencia uma diversidade de fato [cultural] que se impõe à observação (...). As grandes declarações dos direitos do homem têm também elas esta força e esta fraqueza: enunciar um ideal que raramente atenta para o fato de que o homem não realiza sua natureza numa humanidade abstrata, mas em culturas tradicionais" (Ibidem).

Ao fazer isso, Lévi-Strauss busca apontar para o fato de que a concepção de direitos humanos 'universais' tendo como referência unicamente critérios éticos e morais ocidentais também está imbuída de um certo etnocentrismo 'velado', principalmente, quando esses direitos são mobilizados para condenar e combater práticas culturais de povos não-ocidentais consideradas amorais do ponto de vista da moralidade ocidental. A questão é bastante complexa, pois remete à tensão entre Universalismo e Relativismo Cultural: até que ponto é possível eleger direitos humanos transculturais sem desrespeitar os costumes e práticas culturais de outros povos e sociedades?                  

De qualquer forma, é fundamental frisar que diversos autores da antropologia têm combatido as teorias racialistas e qualquer iniciativa de estabelecer uma hierarquia entre as diferentes culturas baseada em critérios científicos. Apesar da disseminação dessas idéias racialistas no Brasil, principalmente durante o século XIX, conforme veremos em outro post sobre esse tema, essas teorias são amplamente refutadas por boa parte da comunidade científica.

Apesar do entendimento do fenômeno do etnocentrismo ajudar a explicar uma das possíveis atitudes humanas em relação à diferença, ele certamente não pode ser mobilizado para justificar atos e ações de violência. A convivência com a diferença é, de fato, um dos maiores desafios em uma sociedade democrática. Os barbarismos cometidos contra povos e culturas são inaceitáveis, assim como as ações de violência contra indivíduos e grupos de nossa sociedade. Em um mundo globalizado e de múltiplas naturezas-culturas como o nosso, a tolerância e a convivência com a diferença (seja ela religiosa, étnica ou ideológica) é um imperativo da vida em sociedade.      

Um comentário:

José disse...

Oi professor, muito legal o seu blog, vai nos ajudar a estudar pra prova. Podia fazer outro sobre o etnocentrismo... Abraço,

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