Foi realizado nesta segunda-feira (07/02) o seminário “A Hidroelétrica Belo Monte e a Questão Indígena”, que contou com a participação de lideranças e especialistas engajados no tema. O evento foi uma iniciativa da nova diretoria da ABA, da Fundação Darcy Ribeiro e do Instituto de Ciências Sociais (UnB).
Gostaria de iniciar esse breve relato parabenizando os organizadores do evento por tão valiosa iniciativa, pois a discussão desse tema é de extrema importância. Reunir, em um mesmo espaço, especialistas e representantes da população afetada pela obra é uma contribuição importante para o debate público em um momento que o tempo governamental vem impondo seu próprio ritmo sobre as temporalidades indígenas e comunitárias, literalmente “atropelando” suas demandas políticas. Afinal, a principal reivindicação dos povos indígenas e dos pequenos agricultores que serão atingidos por essa obra é que eles precisam de mais tempo para discutir e avaliar a questão. O seu direito de consulta deve ser respeitado. Nada melhor do que um seminário para discutir essa questão, dando legitimidade institucional às reivindicações dos “atingidos”. Ao promover um evento como esse, a nova diretoria da ABA parece apontar que pretende conduzir uma gestão mais engajada nos problemas socioambientais do nosso tempo e politicamente mais ativa, o que é extremamente bem vindo na atual conjuntura nacional em que vivemos.
Estavam presentes no evento cerca de 70 guerreiros kayapós, membros do “Movimento Xingu Vivo”, pequenos agricultores e ribeirinhos que vivem na região onde será construída a hidroelétrica, além de estudantes, pesquisadores e representantes da sociedade civil organizada. As manifestações contrárias à construção da hidroelétrica demonstraram claramente a indignação dos "atingidos" com o descaso do governo federal, que busca a todo custo deslegitimar os seus interesses. Vale observar, por exemplo, a indignação dos grandes chefes indígenas Raoni Metuktire e Megaron Txukarramãe, figuras históricas do Movimento Indígena brasileiro que lutam contra a construção dessa obra há mais de trinta anos. Também é importante notar a presença de outras lideranças importantes do “Movimento Xingu Vivo”, como Ozimar Juruna, Josinei Arara e Antonia Mello. Foi muito bom poder ouvir o que essas pessoas têm a dizer sobre a experiência histórica das populações diretamente afetadas pela hidroelétrica. Por ourtro lado, ouvir os especialistas também serviu para esclarecer os detalhes técnicos da obra. A discussão permitiu colocar lado a lado a perspectiva das populações atingidas e dos especialistas, fornecendo um quadro geral sobre a problemática.
Belo Monte é a expressão paradigmática de um contexto histórico marcado pela reprodução do desenvolvimentismo como paradigma governamental. Estamos diante de um caso “exemplar”, que pode ser abordado como a expressão mais contundente de outras tantas iniciativas semelhantes. Todos os participantes do seminário deixaram claro que não são contrários ao desenvolvimento, principalmente, quando realizado de forma democrática, voltado para os interesses da população, com distribuição de renda e respeito aos direitos humanos. Inclusive, é importante notar que mais da metade das obras do PAC são iniciativas necessárias, voltadas para atender carências de infra-estrutura da população de baixa renda. Por outro lado, não podemos dizer o mesmo em relação às hidroelétricas e outras obras do mesmo porte. A pressão do grande capital sobre o processo de amadurecimento e análise das condicionantes e dos riscos sociais e ambientais associados à construção de mega obras como Belo Monte tem resultado em iniciativas que não correspondem, de forma alguma, ao interesse da sociedade brasileira, muito menos das populações diretamente afetadas. Por outro lado, o governo não permite que a sociedade civil organizada discuta esses riscos e avalie se a obra é desejável ou não. A pressão política das grandes empreiteiras tem afetado sensivelmente a capacidade do governo em conduzir o processo de forma democrática e conforme as diretrizes constitucionais. A falta de sensibilidade da população urbana que vive nas grandes metrópoles com questões aparentemente tão distantes do seu cotidiano mais imediato acaba “isolando” politicamente as populações diretamente afetadas por essas obras. Apesar do apoio de antropólogos, advogados e ambientalista envolvidos com esse tema, os indígenas e ribeirinhos afetados pela obra não conseguem sensibilizar a opinião pública nacional sobre a importância de se preservar a sua cultura e o meio ambiente. Se julgarmos pela pouca presença de estudantes no evento (o auditório estava quase completamente ocupado pelos movimentos sociais), podemos deduzir que tal tema – apesar da sua gritante importância para a consolidação da cidadania e da democracia – não consegue afetar a consciência da população que não é diretamente atingida. A ausência de qualquer menção ao evento no noticiário dos grandes veículos de comunicação é uma demonstração clara que as demandas políticas desses setores não possuem qualquer respaldo na mídia nacional, pois a questão não dá audiência. Infelizmente, os telespectadores estão mais preocupados em discutir as baixarias de um programa de extremo mal gosto como o BBB do que avaliar os impactos das hidroelétricas. Mal sabem eles que boa parte dos problemas vivenciados no cotidiano das grandes metrópoles - alagamentos, criminalidade e pobreza - estão associados ao modelo desenvolvimentista que vem sendo implantado no Brasil há mais de 70 anos. É esse mesmo modelo de governamentalidade - excludente e anti-democrático - que vem servindo de referência para pensar a nossa matriz energética.
Tudo se repete novamente. Conforme já dizia Sérgio Buarque de Holanda: o maior problema do Brasil é que aqui, por circunstâncias históricas muito específicas, instalou-se uma elite colonial (depois nacional) que sempre governou o país com os olhos na Europa (hoje Estado Unidos). O resultado foi o pior possível: o povo brasileiro, de fato, nunca encontrou um contexto favorável para expressar sua forma de ver e estar no mundo. Os nossos governantes sempre olharam para o povo como uma “etapa” anacrônica (a ser superada) em um projeto de modernização da sociedade. Os índios e as populações tradicionais foram historicamente considerados um “atraso” nesse projeto de “branqueamento”. Até mesmo a noção de mistura esteve sempre voltada para o enfraquecimento de nossa herança indígena e negra em nome das “qualidades” dos nossos dominadores coloniais. O descaso da sociedade mais abrangente com a preservação do modo de vida indígena e tradicional é um reflexo de uma ideologia predominante não somente no governo, como na sociedade brasileira: a idéia de que os índios, os negros e nossos camponeses representam a expressão mais contundente do nosso “atraso” em relação ao projeto de modernização ocidental. O trabalho ideológico realizado pelos nossos meios de comunicação de massa reforça ainda mais essa idéia, pois acaba contribuindo para a disseminação de preconceitos históricos tão arraigados no imaginário da nossa sociedade.
Em nome de um “desenvolvimento a qualquer custo”, os nossos governantes estão prejudicando o modo de vida das pessoas que vivem no local onde a hidroelétrica será construída. Conforme foi comentado por uma liderança durante o evento, as comunidades existentes na região só foram ter acesso à energia elétrica recentemente, em 2007. Muitas outras ainda não possuem acesso à energia e não existe nenhum projeto para que isso ocorra. A energia produzida será consumida quase que inteiramente pelas metalúrgicas de São Paulo e irá contribuir para o enriquecimento das empreiteiras e dos empresários. Os próprios trabalhadores braçais que vão construir a obra vão ganhar mal e depois de alguns meses estarão novamente desempregados. Ao que parece, o governo está governando conforme os interesses de uma pequena parcela da população.
É de conhecimento público que o projeto de Belo Monte foi retomado durante o governo de FHC, quando as reformulações da idéia original foram pensadas e executadas, assim como a mudança do nome da obra, dando a entender que se tratava de algo novo. Percebo como uma falha grave do governo Lula que tal idéia “tucana” tenha sido reproduzida sem qualquer critica. O próprio Lula entrou em contradição gritante ao apoiar Belo Monte, pois quando ainda era candidato à presidência fez questão de mencionar em seu plano de governo ser completamente contrário à construção de grandes hidroelétricas. Nessa ocasião, comprometeu-se em buscar soluções alternativas para o problema dos “apagões”. Tudo isso foi deixado pra trás após a sua posse, pois os seus ministros de energia – começando por Dilma – aplicaram a cartilha tucana sem adicionar ou reformular nem mesmo uma única vírgula. Belo Monte é apenas o caso mais paradigmático dessa submissão do governo aos interesses econômicos dos setores mais desenvolvimentistas da nossa sociedade. Afinal, conforme foi mencionado por um dos palestrantes, as empreiteiras responsáveis pela construção da obra vão lucrar mais de R$ 60 bilhões nos próximos 20/30 anos, livre de impostos. O financiamento da hidroelétrica com dinheiro público está sendo feito com taxas de juros muito menor que as taxas cobradas da população em geral. Conforme as estimativas mais conservadoras, os gastos públicos com a hidroélétrica podem chegar a R$ 30 bilhões. Quem está pagando esta conta é a sociedade brasileira!
É muito triste que um governo “popular e democrático”, que em outras questões tem realizado grandes avanços, continue atualizando historicamente uma forma de governar que é completamente contrária aos direitos sociais e políticos de uma parcela importante da nossa sociedade. O Governo Federal não pode tratar os índios, ribeirinhos e pescadores como se eles fossem “crianças”: ora como um coletivo cooptado por brancos mal intencionados, ora como pessoas ignorantes ou egoístas, que não estão dispostos a “entender” a razão da obra. Com isso, cria-se a idéia de que as pessoas que estão lutando por seus interesses estariam sendo manipuladas. Isso permite que as suas reivindicações históricas sejam completamente desconsideradas, mesmo que para isso seja necessário passar por cima da Constituição Brasileira. A julgar pelo que foi discutido no seminário, os “atingidos” pela obra são pessoas que, apesar de não terem um entendimento técnico sobre o tema, sabem que a sua vida irá mudar radicalmente após a construção da hidroelétrica. Essas pessoas não estão mobilizadas em torno de conceitos abstratos como “desenvolvimento sustentável”, “biodiversidade”, ou “diversidade cultural”, mas estão lutando pela garantia de uma forma de vida que está cada vez mais ameaçada. O fato é que essa obra coloca em risco a sua forma de habitar o mundo. A confluência entre antropólogos e ambientalista em torno do movimento é apenas o resultado de um acordo pragmático em torno de um fenômeno percebido como uma ameaça tanto para os intelectuais engajados na defesa de valores ambientais e culturais, como pela população cuja forma de estar no mundo está em risco.
O evento também demonstrou claramente que já chegou o momento de revisarmos esse conceito de “energia limpa”. Como podemos considerar uma obra que gera efeitos tão nefastos no meio ambiente e na vida cultural, econômica e social das populações diretamente atingidas como “limpa”? De qualquer forma, não resta a menor dúvida que a sociedade brasileira precisa de tempo para discutir a nossa matriz energética, permitindo, com isso, a proposição de soluções de médio e longo prazo que estejam mais de acordo com os múltiplos interesses de uma sociedade verdadeiramente democrática.
O problema é que, da forma como a discussão vem sendo conduzida pelo governo federal, os interesses das elites econômicas estão sendo considerados em detrimento dos direitos constitucionais de uma parcela importante da nossa sociedade. Agir com espírito democrático, neste caso, consiste em abordar de forma simétrica todos os interesses envolvidos e buscar uma alternativa para resolver o impasse. Atropelar todos os grupos contrários a obra – conforme o governo vem fazendo - é de um autoritarismo cruel.
O único membro do governo federal presente na ocasião foi o secretário de articulação social de Dilma, que participou da mesa à tarde. A sua intervenção no evento foi inexpressiva. Não apresentou propostas e nem mesmo garantiu qualquer medida favorável. Mas disse que estava ali para “escutar” e “aprender”. Espero, sinceramente, que tenha escutado e anotado tudo que foi discutido no dia. Inclusive o sentimento de indignação que transpareceu na fala das pessoas diretamente atingidas por Belo Monte. Fica a esperança que transmita à Presidente Dilma as reivindicações apresentadas pelos movimentos sociais e que cumpra com sua promessa pessoal: a de representar, em outra instância decisória, os interesses que foram expostos ali.
A ausência da FUNAI e do IBAMA é lamentável, tendo em vista que foram esses órgãos que licenciaram o canteiro de obras da hidroelétrica, além de serem os responsáveis pela concessão da licença definitiva. O fato foi comentado pelas lideranças presentes, que lamentarem essa ausência em um momento tão estratégico para os povos afetados.
Todos nós sabemos que o governo não é uma entidade homogênea. Existe, certamente, uma luta política que perpassa também o dia a dia dos órgãos governamentais, o que é válido também no caso da FUNAI e do IBAMA. Tenho certeza que alguns dos seus funcionários gostariam muito de poder exercer a função pela qual são responsáveis, mas têm sido impedidos de executar suas tarefas pelos seus dirigentes, alinhados com o posicionamento autoritário do governo Dilma. De qualquer forma, seria fundamental que esses funcionários manifestassem publicamente esse problema, aliando-se às populações diretamente afetadas por essa obra. Lamentavelmente, isso não ocorreu. Resta saber se por impedimento imposto pelos presidentes desses órgãos ou pela atitude bélica de setores da FUNAI que ainda alimentam preconceitos jurássicos contra a academia. O fato é que não havia sequer um único funcionário presente na ocasião, nem mesmo na platéia. Perde-se, com isso, a oportunidade de somar esforços em um momento tão importante para a consolidação da democracia no Brasil.
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