segunda-feira, 20 de abril de 2009

Declaração dos Pajés - 15/09/2004

O especial encontro de saberes tradicionais, propiciado pelo “Diálogo de Pajés: proteção dos conhecimentos tradicionais: Direito Sagrado”, realizado em Brasília de 26 a 28 de agosto de 2004, a convite do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI), Call of the Earth e Comitê Intertribal, na sede do Itamaraty, com o apoio do Ministério do Meio Ambiente, da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e da Universidade das Nações Unidas, que reuniu sábios indígenas de diversas regiões do Brasil em ambiente de natural e inspirada reflexão, apoiada na cosmovisão de nossas culturas nativas, pôde, nestes dias de convívio intercultural, expressar suas objetivas recomendações aos organismos multilaterais, governos nacionais e organizações solidárias, mobilizadas pelo debate em torno dos temas propostos para o encontro.Tendo em consideração a necessária defesa do direito de nossos povos diante dos processos de apropriação destes saberes e visões próprias, herdadas de nossos ancestrais, insiste na afirmação de princípios fundamentais à dignidade dos povos, pressupondo o respeito à livre e esclarecida decisão quanto ao acesso e uso do acervo de conhecimentos que envolvem a sensível e frágil Teia da Vida, que em nossas culturas ainda se constitui no verdadeiro patrimônio da humanidade, não podendo estar disponível para os usos e acessos previstos nas discussões entre governos (OMC, OMPI) e representantes das empresas no amplo processo de negociação das partes acerca dos recursos genéticos, conhecimentos tradicionais e patrimônios culturais dos povos indígenas.

1. Solicitamos que seja assegurada a participação plena e efetiva dos Povos Indígenas, com ênfase na contribuição das mulheres indígenas, em todos os mecanismos, atividades e decisões que tratam sobre biodiversidade e conhecimentos tradicionais de forma paritária e representativa de cada região habitada pelas nossas sociedades desde tempos imemoriais, em conformidade com o enfoque por ecossistemas recomendado pela Convenção da Diversidade Biológica (CDB).

2. Entendemos que a discussão e criação de um Sistema Internacional de Áreas Protegidas não podem ser implementadas unilateralmente pelos Governos, pois significa a violação dos nossos sítios sagrados, dos direitos ancestrais sobre o uso e a gestão sustentável de nossos territórios e recursos naturais que mantivemos e conservamos em virtude de nossos conhecimentos, inovações e práticas.

3. Declaramos que nossos conhecimentos sobre a biodiversidade, assim como a cultura dos nossos povos, são coletivos e dinâmicos, por serem fruto de práticas milenares, e não devem ser privatizados e comercializados como se fossem de conhecimento geral, sendo usurpados das gerações que virão depois de nós.

4. Recomendamos o reconhecimento, demarcação e desintrusão das terras indígenas pelos Governos signatários da CDB, em sinal de respeito ao vínculo existente entre os conhecimentos, inovações e práticas tradicionais de nossos povos, relevantes para a preservação e uso sustentável da diversidade biológica, e nossos territórios tradicionais.

5. Entendemos a urgente importância de assegurar o direito a voto, e não somente à voz, à representação indígena no Conselho do Patrimônio Genético (CGEN).

6. No tocante às expressões de arte e cultura, saberes e sociabilidade dos povos indígenas presentes em objetos de sua cultura material, a arte indígena, tomada como artesanato por uma visão reduzida da sua verdadeira dimensão simbólica, estética e transcendente, para as culturas geradoras destes bens culturais, denunciamos a agressão e violação de sua livre manifestação, a exemplo da apreensão de acervos de arte indígena ocorrida em diversas regiões do país, estigmatizando e confundindo a opinião pública quanto à natureza desta produção artística – o contexto de sua criação prejudicando a sua inserção no mercado de trocas de forma positiva e afirmadora de nossas identidades específicas.

7. Anunciamos a criação de um Conselho de Pajés e especialistas indígenas para propor ações e reflexões com vistas à preparação da Reunião das Partes que acontecerá no Brasil em 2006 (COP 8) e sugerimos, desde já, a realização de reuniões preparatórias em conjunto com as instâncias de governo que tratam do assunto e organizações indígenas.

8. Recomendamos que na Conferência dos Países Megadiversos, em 2005, seja assegurada a participação do Conselho de Pajés.

Brasília, 28 de agosto de 2004.
Fonte: http://www.inbrapi.org.br/abre_artigo.php?artigo=10

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Ruptura do Grande Divisor: "moderno" X "tradicional"

Gostaria de tecer breves comentários sobre aquilo que é um dos principais objetivos deste blog: colaborar com a proposta de ruptura da divisão entre moderno e tradicional. Vale notar, inclusive, que o próprio discurso antropológico surgiu a partir desta divisão. Afinal, desde que o discurso antropológico tornou-se uma disciplina das ciências humanas, antropólogo é aquele sujeito estranho que estuda pessoas estranhas, habitantes de alguma aldeia remota localizada nas florestas mais distantes. Levou muito tempo até que a antropologia também voltasse o seu olhar para a cidade e seus habitantes e mais tempo ainda para que voltasse esse olhar para os cientistas, médicos, juízes, administradores e funcionários públicos, escritores, advogados, poetas – enfim, todos aqueles que contribuem para reproduzir e inovar a nossa própria cosmologia.

A realidade é que houve um tempo em que o “objeto” de reflexão dos antropólogos era, por assim dizer, demasiadamente substancializado. Sei que é complicado falar em termos de "objeto" na antropologia, principalmente, após o advento da "reflexividade" no trabalho de campo, mas explico: é que naquela época acreditava-se que o que definia a antropologia não era a referência teórico-metodológica, mas, sim, o “objeto” de reflexão antropológica: os antropólogos se dedicam a estudar os índios, camponeses ou aborígenes. Inclusive, esse pressuposto acabou originando um movimento dentro da própria antropologia, a chamada “crise do objeto” (ou seria melhor, “crise da objetivação”). Momento em que vários antropólogos famosos – como Lévi-Strauss, Dumont e Edmund Leach, só para citar alguns – escreveram em resposta à suposta e crescente ameaça de desaparecimento das sociedades primitivas, o que, segundo os mais alarmistas – poderia conduzir a antropologia à extinção. É claro, pensavam os alarmistas (repletos de determinismo), em um mundo onde fenômenos como o avanço da fronteira nacional e a globalização levam à crescente integração (forçada ou não) dos chamados “primitivos” ou “tradicionais”, chegará um tempo em que seremos todos “modernos”, “urbanos”, enfim, “contemporâneos”, tempo em que a antropologia deixará de existir e os antropólogos ficaram desempregados.

Bom, como todos nós sabemos – e para a felicidade das sociedades ditas “primitivas” e dos próprios antropólogos (note certa ironia nesta última observação) - isso acabou não acontecendo. Nem os chamados “primitivos” desapareceram, nem a globalização tinha esse poder de consumir com as “diferenças”. Apesar de toda a mudança e transformação, essas sociedades não só continuaram existindo, como também se multiplicaram nos últimos trinta anos. Por outro lado, os antropólogos descobriram novos horizontes e aprofundaram ainda mais a sua perspectiva sobre a alteridade: surgiram os estudos sobre as chamadas “sociedades complexas”, e mais recentemente (pelo menos no Brasil), os estudos etnográficos sobre a ciência e os cientistas (um bom exemplo disso é Grupo de Antropologia da Ciência e Tecnologia – GEACT). Esse movimento foi acompanhado pela conscientização sobre outro fator muito importante para a antropologia contemporânea: a nossa disciplina não se define pelo “objeto”, mas pela forma de “objetivação” dos fenômenos que estuda, ou seja, pelo método que utiliza para apreender e representar o mundo: a etnografia. Com isso, tornou-se possível fazer antropologia nos lugares mais variados possíveis.

Ainda assim, por algum tempo, esses lugares continuaram reproduzindo o “exotismo”, mesmo que construído: em um primeiro momento, os antropólogos que estudavam as chamadas sociedades complexas limitavam o seu olhar para os espaços marginais: os grupos populares, os moradores de rua, os loucos, enfim, todos os sujeitos que, de certa forma, ainda compartilhavam de aspectos utilizados para caracterizar o “tradicional” frente ao “moderno”: mitologia, crença religiosa, danças e vida ritual. Nas palavras de Latour:

“Expulsos do campo na África, na América Latina ou na Ásia, os etnólogos só se sentem capazes de estudar, em nossas sociedades, o que é mais parecido com os campos que acabavam de deixar: as artes e tradições populares, a bruxaria, as representações simbólicas, os camponeses, os marginais de todos os tipos, os guetos” (Latour 1979: p. 18).

No Brasil, isso tudo começou a mudar no final do século XX, com o surgimento de novas linhas de pesquisa na antropologia, como os estudos sobre organizações, empresas, espaços governamentais, e também sobre operadores do direito (juízes, advogados e etc.), cientistas, médicos e empresários. Os “modernos” finalmente passaram a ser “observados” pela lente atenta dos etnógrafos contemporâneos.

Isso, por si só, não representa qualquer garantia de simetria no pensamento antropológico. Para que a simetria torne-se possível é preciso ir e vir entre “modernos” e “não-modernos”, ampliando ainda mais o nosso universo de comparação. Fazer isso sem perder o horizonte da alteridade é o grande desafio da antropologia contemporânea. Esse desafio só será vencido quando conseguirmos estabelecer um diálogo mais produtivo entre os antropólogos que estudam as chamadas “sociedades não-ocidentais” e os antropólogos que estudam as sociedades “ocidentais”. Para isso, precisamos ampliar a nossa noção de “complexidade”: se levarmos em conta a complexidade dos sistemas de parentesco, da mitologia e cosmologia indígena veremos que a palavra complexidade não é uma característica exclusiva às sociedades ocidentais ou “modernas”. Sem falarmos nos sistemas de classificação indígenas de plantas e animais que, na maioria das vezes, apresentam uma complexidade tão ou quanto maior do que a complexidade do sistema de classificação botânica inaugurado por Lineu. Além do mais, essa diferença também já não pode mais ser descrita como uma oposição entre “primitivo” e “contemporâneo”, pois todas as sociedades existentes hoje são necessariamente contemporâneas. Por outro lado, em um momento em que o saber indígena e tradicional é valorizado como um instrumento que poderá garantir o futuro da humanidade fica difícil representar esses saberes como “anacrônicos”.

Da minha parte, acredito que estudar processos histórico-culturais permeados pelo encontro entre “modernos” e “não-modernos” pode contribuir para refinar a nossa visão sobre a alteridade no mundo contemporâneo. Precisamos romper com as “reservas de mercado”, ou melhor, com a idéia de que é impossível cruzar as fronteiras da disciplina: quem estuda os “modernos” só pode falar dos “modernos”, quem estuda os índios só pode ou deve falar de índios. Ora, o melhor seria termos como pressuposto a idéia de que é bom saber muito bem do que se está falando, afinal, não falamos sobre o que estudamos de qualquer forma: falamos a partir de uma perspectiva etnográfica, buscando estabelecer um diálogo com os debates teóricos em andamento em nossa disciplina. A questão, portanto, não é tanto construir barreiras intransponíveis (pelo menos não a priori), mas se perguntar se essa interconexão entre etnografia e teoria foi realizada com sucesso. Ao invés de multiplicarmos as acusações, deveríamos nos dedicar à construção de pontes que possam cruzar os oceanos da alteridade. Para quem compartilha esse pressuposto, o mais importante em tudo isso é que não estamos sozinhos nesta jornada: existem pessoas na antropologia dedicadas a esse trabalho de ir e vir (com propriedade, sem perder a qualidade) entre “modernos” e “não-modernos”, buscando ir além das fronteiras deste Grande Divisor.

D. Soares

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Dicas de Literatura

Figuras de Foucault
Coletânea de ensaios sobre o historiador francês que abordam temas como ética, sociabilidade e os mundos público e privado. Margareth Rago e Alfredo Veiga-Neto (Org.). Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2006.

Vinte Ensaios sobre Mikhail Bakhtin
Ensaios sobre a obra do pensador russo.Carlos Alberto Faraco, Cristovão Tezza e Gilberto Castro. Petrópolis: Editora Vozes, 2006.

Eremita em Paris
Coletânea de Textos de Italo Calvino (autobiografia).Italo Calvino. Companhia das Letras, 2006.

Jamais Fomos Modernos
Uma reflexão interessante sobre aspectos contemporâneos da sociedade "moderna". Bruno Latour. Editora 34, 2005.

Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982)
Em 1970, Foucault foi nomeado para o Collège de France, onde por mais de uma década seria o titular da cátedra de História dos Sistemas de Pensamento. Este livro reúne os resumos dos seus cursos, redigidos pelo próprio historiador das ciências. Uma boa introdução aos seus princípais conceitos e um bom mapeamento das suas produções literárias.

Para quem tem interesse no pensamento de Michel Foucault, principalmente, sobre as suas noções de biopolítica, biopoder e governamentalidade, ver também os livros abaixo:

Em Defesa da Sociedade: Curso no Collège de France (1975-76). São Paulo: Martins Fontes.

Segurança, Território e População: Idem (1977-78). São Paulo: Martins Fontes.

Nascimento da Biopolítica: Idem (1978-79). São Paulo: Martins Fontes.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Interação entre o conhecimento científico e indígena no Rio Negro, AM

“Um trabalho importante que fazemos na OIBI é acompanhar pesquisadores. Nós temos um projeto de vendas de cestaria de arumã, ‘Arte Baniwa’, que teve a colaboração de alguns pesquisadores e há seis anos eu comecei a acompanhar o trabalho deles. Eu não entendia bem o pesquisador, mas comecei entender um pouco essa atividade a partir dali. A pesquisa é muito importante para todos os trabalhos que nós fazemos hoje, porque mesmo a gente tendo muito conhecimento, precisa da visão do outro lado para fazer um trabalho que possa se desenvolver sem risco de acabar com a matéria-prima ou impactar bastante a vida das nossas comunidades. Os pesquisadores trabalham de forma bem diferente da nossa. Depois que eles fazem a pesquisa, eles falam se uma atividade é sustentável ou não. Atualmente, trabalho no projeto Paisagens Baniwa, pesquisando uma determinada região do rio Içana. Onde as pesquisas se desenvolvem mais intensamente, trabalhando em conjunto os conhecimentos indígenas e científicos, tem sido possível fazer reflexões que podem trazer uma nova forma de desenvolver e trabalhar nossas comunidades. Todo esse trabalho que fazemos na OIBI ocorre pelo nosso próprio esforço. Na escola Pamáali fazemos ensino via pesquisa e, nos próximos anos, formaremos 20 pesquisadores indígenas, que poderão dar continuidade a esse trabalho na região. Hoje, a gente escuta muito o pessoal da cidade se preocupando com as mudanças climáticas. Mas parece que não estão percebendo que tudo isso é conseqüência da própria ação deles. É importante pensarmos como melhorar isso a partir de hoje, para garantirmos o prolongamento da nossa vida na Terra. Essa mudança climática já está afetando as nossas comunidades. Por exemplo, a época da chuva não está mais de acordo com o nosso calendário tradicional. O florescimento da floresta também está sendo em outra época e essa mudança do ciclo, do movimento da natureza, acaba atrapalhando a vida e o planejamento das comunidades. Nesse mês de março é que floresceu a maioria das plantas do mato, enquanto no calendário original , seria no mês de agosto a setembro. Então, há uma mudança muito grande ocorrendo e não sabemos exatamente o que vai ocorrer no futuro. Nós gostaríamos de saber dos cientistas quais soluções eles têm, diante dessa grave situação que o planeta passa atualmente. Eles têm algumas propostas para a gente continuar trabalhando e saber que o futuro vai existir? Isso seria bom a gente ouvir”.

Armindo Feliciano Miguel Brazão
Depoimento proferido no Seminário Visões do Rio Babel, realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), em Manaus, entre 22 e 25 de maio de 2007

Fonte: ISA. 2008. Visões do Rio Negro: construindo uma rede socioambiental na maior bacia de águas pretas do mundo (p. 33). São Paulo: Instituto Socioambiental.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Biopiratas sofisticam atuação na Amazônia

As recentes prisões de estrangeiros acusados de praticar biopirataria na Amazônia mostram que, nos últimos anos, as técnicas utilizadas por esses criminosos ficaram mais sofisticadas.A biopirataria é um crime que consiste em transportar animais ou plantas sem a permissão do governo e, em geral, com o objetivo de usar o material genético coletado para fins comerciais.O caso que mais chamou a atenção das autoridades é o de dois alemães que foram presos no último dia 17 de fevereiro, no aeroporto de Manaus, tentando levar para Bancoc (Tailândia) espécies de peixes amazônicos que têm a comercialização proibida.Com os alemães, foram apreendidos um aparelho GPS (para localização via satélite), equipamentos de medição de oxigênio, eletricidade e pH da água e tranquilizantes para os peixes."O que impressiona nesses novos biopiratas é a sofisticação dos equipamentos e disfarces. O GPS é um sinal claro de que eles marcaram os locais das ocorrências dos peixes para coletas futuras", disse à Agência Folha José Leland Barroso, gerente-executivo regional do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).Com os equipamentos, os alemães mediram as condições da água nos locais onde coletaram os peixes e as reproduziram nas caixas de isopor em que pretendiam levar os animais -vivos- até Bancoc. A viagem até a Tailândia dura aproximadamente um dia.NúmerosSegundo o Ibama, 29 estrangeiros -incluindo holandeses, suíços, alemães e norte-americanos- foram presos no Amazonas acusados de biopirataria desde 1994, sendo 22 de 1999 para cá.Um caso de biopirata "à antiga" é o do ex-pesquisador norte-americano Milan Hrabovsky, preso em 1999 no aeroporto de Manaus.Ele levava sementes de andiroba, Carapa guianensis, que tem o óleo aproveitado comercialmente na produção de cosméticos e de repelentes de insetos.As sementes foram encontradas por índios contratados por ele, sem auxílio de equipamentos, e estavam escondidas em artesanato indígena em suas malas.Ele foi facilmente flagrado por um então recém-instalado aparelho de raios X no aeroporto.Já os alemães Tino Hummel, 33, e Dirk Helmut Reinecke, 44, da nova safra de biopiratas, tiveram mais sorte com o aparelho de raios X, que no último dia 17 de fevereiro não detectou a presença de peixes vivos na bagagem deles.Hummel, um funcionário público do Departamento de Infra-Estrutura Viária da Alemanha, e Reinecke, um administrador de empresas, cobriram seis caixas de isopor com um papel de alumínio inexistente no Brasil. "Esse papel frustrou a visão do aparelho", disse o delegado da PF (Polícia Federal) Rodrigo Fernandes.Como a PF desconfiou da quantidade de itens da bagagem dos dois, abriu as caixas de isopor e descobriu os peixes.Nas caixas, estavam 280 peixes, de 18 espécies diferentes.Os alemães foram então presos, sob a acusação de dois crimes: biopirataria e contrabando.Seria apenas biopirataria se eles fossem pegos só com os peixes proibidos de transportar. Mas havia no lote três espécies cuja comercialização é permitida somente com a autorização do Ibama. Os alemães, no entanto, não tinham essa autorização.Por biopirataria, eles podem pegar de seis meses a um ano de prisão ou pagar multa -no caso deles, estipulada em R$ 100 mil. Por contrabando, a pena pode chegar a quatro anos de detenção.Até a última sexta-feira, eles continuavam presos, pois a Justiça Federal de Manaus não lhes concedeu habeas corpus.Peixe de US$ 5.000Segundo a polícia, os alemães localizaram em Barcelos (450 km oeste de Manaus) o ambiente natural do Peckoltia platyrhyncha, uma espécie rara de peixe ornamental que mede no máximo 13 cm e que ainda não foi estudada por cientistas brasileiros. Cada unidade custa até US$ 5.000 no mercado internacional.Os dois capturaram seis matrizes do peixe para formação de um plantel de reprodução, contrariando a legislação que diz respeito à saída de material genético do país, segundo um parecer técnico elaborado pelo Ibama.Pela investigação, Hummel já esteve na região de Barcelos por duas ocasiões, provavelmente estudando os locais da ocorrência dos peixes. O contato dele na região era o guia turístico Tutunca Nara, que, em 1999, respondeu processo por biopirataria numa apreensão também de peixes contrabandeados por cinco alemães.Entre as espécies proibidas, eles capturaram também o Acanthicus adonis, que tem valor inicial no mercado de US$ 250, e quatro Apistograma gephyra, cujo preço médio é de US$ 150.BorboletasOutro caso de biopirataria no novo estilo ocorreu no ano passado. Os suíços Willy Robert Fournier, Jean Claude Craviolini, François Léonard Titzé, Bernadette Therese Tonossi, Pierre Andre Berguerand e Louis Jules von Roten foram pegos em Manaus com 306 borboletas raras, com alto valor de comercialização.Nas bagagens dos suíços, foram encontrados vários equipamentos, como redes de náilon com cabos de metal, lâmpadas próprias para localizar as borboletas, frascos plásticos transparentes vedados com rolhas de madeira e um gerador de eletricidade.Foram pegos pelo aparelho de raios X do aeroporto, que detectou o movimento das borboletas.Presos, foram liberados depois de pagar multa de R$ 107,1 mil e deixaram o Brasil. Nesse caso, não foi caracterizado o crime de contrabando.

Fonte: Kátia Brasil, Agência Folha, em Manaus

Agradecimento aos amigos

Gostaria de agradecer a todos os amigos que me felicitaram por esta iniciativa: foi pensando em vocês que este espaço foi concebido.

Antropologia Simétrica segundo Latour

"Infelizmente, é difícil reutilizar a antropologia em seu estado atual. Formada pelos modernos para compreender aqueles que não o eram, ela interiorizou, em suas práticas, em seus conceitos, em suas questões, a impossibilidade da qual falei anteriormente (Bonte e Izard, 1991). Ela mesma evita estudar os objetos da natureza e limita a extensão de suas pesquisas apenas às culturas. Permanece assimétrica. Para que se torne comparativa e possa ir e vir entre os modernos e não-modernos, é preciso torná-la simétrica. Para tanto, deve tornar-se capaz de enfrentar não as crenças que não nos tocam diretamente - somos sempre bastante críticos frente a elas - mas sim os conhecimetos aos quais aderimos totalmente. É preciso torna-lá capaz de estudar as ciências, ultrapassando os limites da sociologia do conhecimento e, sobretudo, da epistemologia. Este é o primeiro princípio de simetria, que abalou os estudos sobre as ciências e as técnicas, ao exigir que o erro e a verdade fossem tratados da mesma forma (Bloor, 1982). Até então, a sociologia do conhecimento só explicava, através de uma grande quantidade de fatores sociais, os desvios em relação à trajetória retilínea da razão. O erro podia ser explicado socialmente, mas a verdade continuava a ser sua própria explicação. Era possível analisar a crença em discos voadores, mas não o conhecimento dos buracos negros; era possível analisar as ilusões da parapsicologia, mas não o saber dos psicólogos; os erros de Spencer, mas não as certezas de Darwin. Fatores sociais do mesmo tipo não podiam ser igualmente aplicados aos dois. Nestes dois pesos, duas medidas, encontramos a antiga divisão da antropologia entre ciências - impossíveis de estudar - e etnociências - possíveis de estudar" (Latour 1994, p. 91-2).

Fonte: LATOUR, B. 1994. Jamais Fomos Modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Trilhas e Saberes



Descanso em um tronco de uma árvore após percorrer uma trilha ao lado de guias kayapós, treinados desde muito cedo a reconhecer os sinais deste trecho da floresta amazônica. Momento de reflexão sobre o valor do saber indígena: as árvores e as plantas que encontramos no caminho estabelecem uma conexão entre o espaço percorrido e o espaço cosmológico: tudo ali tem um nome e um sentido. Eu, por outro lado, mal consigo perceber a diferença sutil de vegetação que demarca o caminho da trilha do restante da floresta: sozinho, provavelmente, já estaria perdido. Meus amigos indígenas, no entanto, seriam capazes de percorrer aquele mesmo caminho a noite. Para eles, a trilha é um espaço demarcado pela experiência de caçar e pescar nos arredores da aldeia e está gravada em suas memórias da mesma forma que as avenidas e ruas que percorremos todos os dias, sem nunca recorrer ao auxílio de um mapa.
CARTA DE SÃO LUÍS DO MARANHAO
02/02/2004

Nós, representantes indígenas no Brasil pluriétnico onde vivem 220 povos, falando 180 línguas distintas entre si, com uma população de 360 mil indígenas, ocupando 12% do território brasileiro, reunidos na cidade de São Luís do Maranhão, de 04 a 06 de dezembro do 2001, para discutir o tema “A Sabedoria e a Ciência do Índio e a Propriedade Industrial”, convidados pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), declaramos: 1. Que nossas florestas têm sido mantidas preservadas graças aos nossos conhecimentos milenares; 2. Como representantes indígenas, somos importantes no processo da discussão sobre o acesso à biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais conexos porque nossas terras e territórios contem a maior parte da diversidade biológica do mundo, cerca de 50%, e que têm um grande valor social, cultural, espiritual e econômico. Como povos indígenas tradicionais que habitam diversos ecossistemas, temos conhecimentos sobre o manejo e o uso sustentável desta diversidade biológica. Este conhecimento é coletivo e não é uma mercadoria que se pode comercializar como qualquer objeto no mercado. Nossos conhecimentos da biodiversidade não se deparam de nossas identidades, leis, instituições, sistemas de valores e da nossa visão cosmológica como povos indígenas; 3. Recomendamos ao governo do Brasil que abra espaço para que representação das comunidades indígena possa participar no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético; 4. Recomendamos ao governo brasileiro que regulamente por lei o acesso recursos genéticos e conhecimentos tradicionais conexos, discutindo amplamente com as comunidades e organizações indígenas; 5. Nós, representantes indígenas, expressamos firmemente aos governos e aos organismos internacionais nosso direito à participação plena nos espaços de decisões nacionais e internacionais sobre biodiversidade e conhecimentos tradicionais como na Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), na Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), na Comissão das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, na Organização Mundial do Comércio (OMC), no Comitê Intergovernamental de Propriedade Intelectual relativo a Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e Folclore da OMPI, entre outros organismos; 6. Recomendamos que os países aprovem o Projeto de Declaração da ONU sobre Direitos Indígenas; 7. Como representantes indígenas, afirmamos nossa posição a toda forma de patenteamento que provenha da utilização dos conhecimentos tradicionais e solicitamos a criação de mecanismos de punição para coibir o furto da nossa biodiversidade; 8. Recomendamos a criação de um fundo financiado pelos governos e gerido por uma organização indígena que tenha como objetivo subsidiar pesquisas realizadas por membros das comunidades; 9. Recomendamos ao Governo Federal a criação de cursos de capacitação e treinamento de profissionais indígenas na área dos direitos dos conhecimentos tradicionais; 10. Recomendamos que seja realizado um II Encontro de Pajés sobre a Convenção da Biodiversidade Biológica e Conhecimentos Tradicionais; 11. Recomendamos que seja assegurada a criação de um Comitê Indígena para o acompanhamento dos processos de discussão e planejamento da produção dos Conhecimentos Tradicionais; 12. Recomendamos que o governo adote uma política de proteção da biodiversidade e sociodiversidade destinada ao desenvolvimento econômico sustentável dos povos indígenas. É fundamental que o governo garanta recursos para as nossas comunidades desenvolverem programas de proteção dos conhecimentos tradicionais e preservação das espécies in situs; 13. Até que o Congresso Nacional brasileiro aprove o projeto de lei 2057/91 que institui o Estatuto das Sociedades Indígenas, parado na Câmara dos Deputados, há mais de 10 anos e a ratificação da Convenção 169 da OIT, parada no senado há mais de oito anos e já aprovado pela Câmara dos Deputados, propomos que os povos indígenas discutam a necessidade do estabelecimento de uma moratória na exploração comercial dos conhecimentos tradicionais associados aos recursos genéticos; 14. Propomos aos governos que reconheçam os conhecimentos tradicionais como saber e ciência, conferindo-lhes tratamento eqüitativo em relação ao conhecimento científico ocidental, estabelecendo uma política de ciência e tecnologia que reconheça a importância dos conhecimentos tradicionais; 15. Propomos que se adote instrumento universal de proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais, um sistema alternativo, sistema sui generis, distinto dos regimes de proteção dos direitos de propriedade intelectual e que entre outros aspectos contemple: o reconhecimento das terras e territórios indígenas e conseqüentemente a sua demarcação; o reconhecimento da propriedade coletiva dos conhecimentos tradicionais como imprescritíveis e impenhoráveis e dos recursos como bens de interesse público; Com direito aos povos e comunidades indígenas locais negarem o acesso aos conhecimentos tradicionais e aos recursos genéticos existentes em seus territórios; do reconhecimento das formas tradicionais de organização dos povos indígenas; da inclusão do pressentimento prévio informado e uma clara disposição a respeito da participação dos povos indígenas na distribuição eqüitativa de benefícios resultantes da utilização destes recursos e conhecimentos; permitir a continuidade da livre troca entre Povos indígenas dos seus recursos e conhecimentos tradicionais; 16. Propomos que a criação de bancos de dados e registros sobre os conhecimentos tradicionais seja discutida amplamente com comunidades e organizações indígenas e que a sua implantação seja após a garantia dos direitos mencionados neste documento. Neste encontro estão reunidos membros das comunidades com fortes tradições bem assim como líderes experts para formular estas recomedações e propostas. Preocupados com o avanço da bioprospecçao e o futuro da humanidade, dos nossos filhos e dos nossos netos que, reafirmamos aos governos que firmemente reconhecemos que somos detentores de direitos e não simplesmente interessados. Por esta razão, temos certeza de que as nossas recomendações e proposições serão acatadas para a melhoria da humanidade.

Em São Luís do Maranhão, 06 de Dezembro de 2001.


Fonte: http://www.inbrapi.org.br/abre_artigo.php?artigo=6
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