Gostaria de tecer breves comentários sobre aquilo que é um dos principais objetivos deste blog: colaborar com a proposta de ruptura da divisão entre moderno e tradicional. Vale notar, inclusive, que o próprio discurso antropológico surgiu a partir desta divisão. Afinal, desde que o discurso antropológico tornou-se uma disciplina das ciências humanas, antropólogo é aquele sujeito estranho que estuda pessoas estranhas, habitantes de alguma aldeia remota localizada nas florestas mais distantes. Levou muito tempo até que a antropologia também voltasse o seu olhar para a cidade e seus habitantes e mais tempo ainda para que voltasse esse olhar para os cientistas, médicos, juízes, administradores e funcionários públicos, escritores, advogados, poetas – enfim, todos aqueles que contribuem para reproduzir e inovar a nossa própria cosmologia.
A realidade é que houve um tempo em que o “objeto” de reflexão dos antropólogos era, por assim dizer, demasiadamente substancializado. Sei que é complicado falar em termos de "objeto" na antropologia, principalmente, após o advento da "reflexividade" no trabalho de campo, mas explico: é que naquela época acreditava-se que o que definia a antropologia não era a referência teórico-metodológica, mas, sim, o “objeto” de reflexão antropológica: os antropólogos se dedicam a estudar os índios, camponeses ou aborígenes. Inclusive, esse pressuposto acabou originando um movimento dentro da própria antropologia, a chamada “crise do objeto” (ou seria melhor, “crise da objetivação”). Momento em que vários antropólogos famosos – como Lévi-Strauss, Dumont e Edmund Leach, só para citar alguns – escreveram em resposta à suposta e crescente ameaça de desaparecimento das sociedades primitivas, o que, segundo os mais alarmistas – poderia conduzir a antropologia à extinção. É claro, pensavam os alarmistas (repletos de determinismo), em um mundo onde fenômenos como o avanço da fronteira nacional e a globalização levam à crescente integração (forçada ou não) dos chamados “primitivos” ou “tradicionais”, chegará um tempo em que seremos todos “modernos”, “urbanos”, enfim, “contemporâneos”, tempo em que a antropologia deixará de existir e os antropólogos ficaram desempregados.
Bom, como todos nós sabemos – e para a felicidade das sociedades ditas “primitivas” e dos próprios antropólogos (note certa ironia nesta última observação) - isso acabou não acontecendo. Nem os chamados “primitivos” desapareceram, nem a globalização tinha esse poder de consumir com as “diferenças”. Apesar de toda a mudança e transformação, essas sociedades não só continuaram existindo, como também se multiplicaram nos últimos trinta anos. Por outro lado, os antropólogos descobriram novos horizontes e aprofundaram ainda mais a sua perspectiva sobre a alteridade: surgiram os estudos sobre as chamadas “sociedades complexas”, e mais recentemente (pelo menos no Brasil), os estudos etnográficos sobre a ciência e os cientistas (um bom exemplo disso é Grupo de Antropologia da Ciência e Tecnologia – GEACT). Esse movimento foi acompanhado pela conscientização sobre outro fator muito importante para a antropologia contemporânea: a nossa disciplina não se define pelo “objeto”, mas pela forma de “objetivação” dos fenômenos que estuda, ou seja, pelo método que utiliza para apreender e representar o mundo: a etnografia. Com isso, tornou-se possível fazer antropologia nos lugares mais variados possíveis.
Ainda assim, por algum tempo, esses lugares continuaram reproduzindo o “exotismo”, mesmo que construído: em um primeiro momento, os antropólogos que estudavam as chamadas sociedades complexas limitavam o seu olhar para os espaços marginais: os grupos populares, os moradores de rua, os loucos, enfim, todos os sujeitos que, de certa forma, ainda compartilhavam de aspectos utilizados para caracterizar o “tradicional” frente ao “moderno”: mitologia, crença religiosa, danças e vida ritual. Nas palavras de Latour:
“Expulsos do campo na África, na América Latina ou na Ásia, os etnólogos só se sentem capazes de estudar, em nossas sociedades, o que é mais parecido com os campos que acabavam de deixar: as artes e tradições populares, a bruxaria, as representações simbólicas, os camponeses, os marginais de todos os tipos, os guetos” (Latour 1979: p. 18).
No Brasil, isso tudo começou a mudar no final do século XX, com o surgimento de novas linhas de pesquisa na antropologia, como os estudos sobre organizações, empresas, espaços governamentais, e também sobre operadores do direito (juízes, advogados e etc.), cientistas, médicos e empresários. Os “modernos” finalmente passaram a ser “observados” pela lente atenta dos etnógrafos contemporâneos.
Isso, por si só, não representa qualquer garantia de simetria no pensamento antropológico. Para que a simetria torne-se possível é preciso ir e vir entre “modernos” e “não-modernos”, ampliando ainda mais o nosso universo de comparação. Fazer isso sem perder o horizonte da alteridade é o grande desafio da antropologia contemporânea. Esse desafio só será vencido quando conseguirmos estabelecer um diálogo mais produtivo entre os antropólogos que estudam as chamadas “sociedades não-ocidentais” e os antropólogos que estudam as sociedades “ocidentais”. Para isso, precisamos ampliar a nossa noção de “complexidade”: se levarmos em conta a complexidade dos sistemas de parentesco, da mitologia e cosmologia indígena veremos que a palavra complexidade não é uma característica exclusiva às sociedades ocidentais ou “modernas”. Sem falarmos nos sistemas de classificação indígenas de plantas e animais que, na maioria das vezes, apresentam uma complexidade tão ou quanto maior do que a complexidade do sistema de classificação botânica inaugurado por Lineu. Além do mais, essa diferença também já não pode mais ser descrita como uma oposição entre “primitivo” e “contemporâneo”, pois todas as sociedades existentes hoje são necessariamente contemporâneas. Por outro lado, em um momento em que o saber indígena e tradicional é valorizado como um instrumento que poderá garantir o futuro da humanidade fica difícil representar esses saberes como “anacrônicos”.
Da minha parte, acredito que estudar processos histórico-culturais permeados pelo encontro entre “modernos” e “não-modernos” pode contribuir para refinar a nossa visão sobre a alteridade no mundo contemporâneo. Precisamos romper com as “reservas de mercado”, ou melhor, com a idéia de que é
impossível cruzar as fronteiras da disciplina: quem estuda os “modernos” só pode falar dos “modernos”, quem estuda os índios só pode ou deve falar de índios. Ora, o melhor seria termos como pressuposto a idéia de que é bom saber muito bem do que se está falando, afinal, não falamos sobre o que estudamos de qualquer forma: falamos a partir de uma perspectiva etnográfica, buscando estabelecer um diálogo com os debates teóricos em andamento em nossa disciplina. A questão, portanto, não é tanto construir barreiras intransponíveis (pelo menos não
a priori), mas se perguntar se essa interconexão entre etnografia e teoria foi realizada com sucesso. Ao invés de multiplicarmos as acusações, deveríamos nos dedicar à construção de pontes que possam cruzar os oceanos da alteridade. Para quem compartilha esse pressuposto, o mais importante em tudo isso é que não estamos sozinhos nesta jornada: existem pessoas na antropologia dedicadas a esse trabalho de ir e vir (com propriedade, sem perder a qualidade) entre “modernos” e “não-modernos”, buscando ir além das fronteiras deste Grande Divisor.
D. Soares