Os primeiros protestos foram promovidos por manifestantes diretamente ou indiretamente vinculados ao Movimento Passe Livre e a questão do transporte público (ver post anterior). Após as primeiras manifestações e diante da postura dos governadores e prefeitos, da polícia e da grande mídia, que classificaram as ações como "atos de vandalismo" e os autores como "vândalos", o coletivo de manifestantes passou por uma transformação radical em sua composição interna. Mobilizados por uma insatisfação generalizada com a classe governamental (dos três poderes da república e em todos os níveis de governo, a mesma história pronunciada e reificada diariamente na Grande Mídia), pessoas de todos os tipos aderiram ao movimento, em sua maioria, jovens de classe média. Articulados por meio das redes sociais, o Movimento multiplicou extraordinariamente a sua força política em poucos dias, ampliando também a sua pauta de reivindicações. Surgiram novos coletivos formados por pessoas desvinculadas de partidos políticos, o que não significa que não sejam eleitores e não participem de outros níveis de exercício da cidadania, inclusive por meio do voto.
Esse vasto e variado contingente com forte tendência para o pensamento de esquerda mobilizou-se pelas razões mais variadas: contra a corrupção e o mau uso dos recursos públicos (talvez a insatisfação mais latente e generalizada); contra projetos conservadores que colocam em risco direitos conquistados na constituinte; contra o esvaziamento ideológico dos partidos políticos e dos próprios governos (cada vez mais voltados para a conquista do poder e manutenção da "governabilidade" a qualquer custo); contra os privilégios da classe governamental; contra a ação homofóbica sintetizada na figura de Feliciano e seus aliados e apoiadores; pela melhoria da educação, da saúde, do transporte público de qualidade, da reforma agrária, da reforma política e tributária, da igualdade racial e de gênero, dos direitos indígenas e do meio ambiente. A maior parte dessas pessoas é de esquerda e votou em Dilma ou na Marina nas últimas eleições, mas se decepcionou profundamente com as alianças feitas em nome da governabilidade e com a incapacidade política do governo federal em levar adiante propostas e bandeiras políticas históricas do Partido dos Trabalhadores e de outros partidos de esquerda. Algumas delas desistiram da via partidária há décadas ou se afastaram do Partido dos Trabalhadores para formar novos partidos, com tendências políticas mais à esquerda.
Motivados por toda série de insatisfação, os 'insurgentes moderados' se revoltam contra a destruição iminente dos seus sonhos, das suas inquietudes mais profundas, da total ausência de perspectiva ideológica, e emergem 'além-mundo' feito rizomas nômades, numa avalanche de sentidos que transborda os limites quadráticos e euclidianos das frases e bandeiras de efeito moral (e muitas vezes moralista). Esses 'renegados' da história política recente não conseguiram acompanhar os impressionantes desvios e contorções ideológicas de suas principais lideranças e acabaram ficando para trás, em algum lugar no meio do caminho. São as pedras do poema que invadiram as ruas, que ocuparam os prédios públicos da cidade e que agora sentem - mesmo que de forma estereotipada como as camisetas de Guevara vendidas nas esquinas das grandes metrópoles - um suspiro e uma inquietação que transborda pelas frestas da estrutura, que já não tem lugar e por isso avança, atento e determinado, em busca de um mundo que ainda não existe e que parece condenado a desaparecer sem deixar vestígios.
Obviamente, quando a mídia e a polícia mudaram a sua atitude em relação às manifestações, entraram em cena grupos mais radicais que agenciaram o anonimato das massas para colocar em prática suas táticas e estratégias de ação direta.
Com isso, grupos civis organizados passaram a agir em meio a massa de manifestantes, separando-se deles em momentos estratégicos e promovendo ações independentes, como a depredação, principalmente, de bens públicos, mas também privados. Esses grupos já existiam antes do Movimento e utilizaram os protestos para disseminar as suas modalidades tradicionais de ação política. Apesar do uso da violência representar um ataque à democracia, já que equaciona a diversidade ideológica a partir da intolerância e da luta direta com o diferente, não podemos deixar de reconhecer que esses grupos agem de forma organizada e consciente, fazendo uso de estratégias de ação direta associadas às noções de "guerrilha urbana" e "enfrentamento" com as forças policiais, em um estilo muito próximo do grupo anarquista "black pot". Podemos ver essa coerência na própria escolha dos alvos dos ataques: prédios e bens públicos, unidades policiais e a própria polícia, bancos, instituições comerciais e unidades móveis da grande mídia. Ora, mesmo quem é contrário ao uso de violência nas manifestações políticas, não pode deixar de perceber que se trata de grupos civis organizados para fins específicos de ação política, mesmo que as suas práticas e estratégias sejam condenáveis e, até certo ponto, consideradas 'selvagens' e contraproducentes.
[O pior 'vandalismo' é aquele perpetuado pela corrupção do poder público e privado, o chamado crime do 'colarinho branco'. A raiva, o ódio e a violência se alimentam do mau exemplo dado pelos corruptos e pelo descaso geral com o bem público].
A questão, portanto, é saber como os governos pretendem lidar com esses grupos? Classificando-os como "terroristas" e criminalizando suas ações ou buscando constituir um canal de diálogo com suas lideranças (será isso possível?). De fato, ainda conhecemos muito pouco sobre a identidade, os valores e as formas de organização social desses grupos mais radicais, alguns deles com orientação ideológica mais à direita (como é o caso dos Skin Head e dos Nazistas) e outros com posicionamentos políticos mais à esquerda, como é o caso dos grupos anarquistas que fazem uso de táticas violentas de ação política.
[Vale notar, no entanto, que o anarquismo político é um campo bastante múltiplo e variado de coletivos e indivíduos, alguns deles organizados, outros não, mas certamente sua diversidade não deve ser reduzida a uma ou outra de suas inúmeras versões. Existem coletivos anarquistas que são pacifistas e contrários ao uso de força física em manifestações políticas, com exceção da promoção de táticas de autodefesa e proteção. O Estado Brasileiro estaria cometendo um erro injustificável se passasse a perseguir os anarquistas e tratá-los genericamente como 'terroristas', o que constitui um atentado contra seus direitos civis e políticos. O Movimento Anarquista nacional e internacional não pode ser confundido com ações de grupos isolados que só vagamente se identificam com a teoria política anarquista.]
Uma questão importante que se coloca para o poder público e as forças policiais é como diferenciar e abordar diferentemente esses coletivos, que possuem identidades políticas antagônicas e valores políticos divergentes. Os grupos de direita visam, em última instância, instaurar uma ditadura de direita no Brasil e possuem uma postura intolerante em relação a diferenças "raciais" e de gênero; já os grupos radicais de esquerda querem promover uma revolução popular e instalar formas alternativas de representação política. Estamos diante, portanto, de forças políticas mais à direita e à esquerda do cenário político brasileiro, que possuem apenas um único fator em comum: ambas fazem uso de estratégias e táticas de luta radicais e não se organizam através de partidos políticos, apesarem de atuarem enquanto um "movimento político".
[É importante citar um dado relevante e surpreendente. Conforme pesquisa realizada pelo Ibope, apesar da maioria dos manifestantes não concordar com ações de depredação do patrimônio público, 28% concordam que essas ações são justificáveis em 'alguns casos'].
Paralelo a esses grupos civis mais radicais, existe também uma massa de desatentos que dormia um sono profundo e que agora se sente 'acordada' e 'alerta'. São jovens de classe média que até ontem se deliciavam com o 'fast-food' ideológico encontrado nas prateleiras da grande mídia, com seus jargões terroristas e seu niilismo inconsequente. Esses jovens se sentem 'perdidos', sem 'um lugar' ou uma 'perspectiva histórica'. Eles são o fruto subversivo de uma sociedade vazia de ideologias e utopias. Ainda sob o efeito entorpecedor do protagonismo providencial dos holofotes da mídia, esses anti-heróis do nosso tempo são como zumbis que ainda não encontraram sua redenção e descansam eternamente nos braços da mãe gentil. Esses homens-pequenos se transformam em gigantes quando protegidos pelo anonimato das massas. Essa força e essa potência de jovens de classe média que acabaram de acordar para a política é extremamente maleável, efêmera, inconstante e imprevisível, podendo dar origem a bulbos rizomáticos ou à árvores de raízes nacionalistas e até mesmo fascistas e homofóbicas. Aqui, sem dúvida, é preciso ter cuidado para não afugentar esses 'recém chegados' e lançá-los não mãos utilitárias dos setores mais conservadores da nossa sociedade. O aspecto efêmero e inconstante de sua disposição política pode servir de subsídio para o brotamento espontâneo de ideologias políticas fascistas. Por outro lado, a sua imensa potencialidade pode servir como ponto de partida para projetos políticos revolucionários e de esquerda. Cabe agora saber como essa 'nova' força política será agenciada no cenário político brasileiro.
Por último, existem os coletivos de manifestantes que representam uma minoria associada a partidos de direita ou de oposição. Esses "manifestantes retardatários" - pois só aderiram às manifestações tardiamente e de forma oportunista - buscam agenciar os protestos para disseminar seus projetos golpistas. De fato, esses são os "infiltrados", aqueles que querem transformar o Movimento exatamente naquilo que ele não é, i.e., numa ação de retomada do poder pelos partidos de direita. Trata-se de grupos como o "Golpe Militar de 2014", que se manifestam, em grande parte, por meio das redes sociais, mas que, no geral, possuem pouca ou quase nenhuma ressonância na massa de manifestantes. Inclusive, boa parte desses coletivos civis organizados já existia e atuava antes da emergência das manifestações. Em geral, trata-se de forças políticas nem tão 'ocultas' que compartilham entre si uma mentalidade fascista e autoritária gestada pelo regime de exceção dos governos militares. Outra questão que resta a ser investigada é a ligação desses micro-fascismos extremistas com partidos de direita que também propagam, nos bastidores do poder republicano, um discurso com forte tendência golpista. Outro sério risco é que esses setores fascistas acabem conseguindo arregimentar e agenciar a insatisfação e o entorpecimento dos 'desavisados' que até ondem dormiam sem sonhar, aumentando significativamente suas fileiras de combatentes.
[Talvez seja essa a razão para que a presença desses setores minoritários entre os manifestantes tenha incentivado a disseminação precipitada de boatos e conjecturas absurdas, comparando, por exemplo, o Movimento dos manifestantes com a Marcha por Deus, pela família e pela propriedade privada de 1964. Essas interpretações foram alimentadas pelo uso, por parte de alguns manifestantes, de antigos slogans como "O Gigante Acordou" e frases do gênero. Apesar de uma parte dos manifestante ser composta por jovens que estão, de fato, "acordando" para a vida política brasileira (não posso deixar de notar e questionar o caráter 'iluminista' dessa expressão), amplos setores da população e muitos dos próprios manifestantes já estavam acordados e alertas há muito tempo, atuando em partidos, ONGs ou movimentos sociais. De fato, a história política do país demonstra claramente que os estudantes, trabalhadores e camponeses nunca tiveram o privilégio do sono profundo. Talvez isso seja aplicável apenas aos jovens e adultos da classe média, cuja uma parte significativa esteve descansando em águas profundas, ainda sob o efeito nefasto da apatia civil promovida pelos regimes militares. No entanto, essas particularidades simbólicas que perpassam o Movimento não devem ser utilizadas como subsídio para a generalização de estereótipos ou para a propagação do medo, pois ao criar alusões desta magnitude acabamos por silenciar a energia e a potência revolucionária de outra parte do movimento que, apesar de heterogêneo e "a-partidário", nunca esteve apático e tem fortes ligações com bandeiras politicas historicamente 'de esquerda'. Aqui, mais do nunca, não podemos deixar que as batalhas de interpretação acabem por sobrepor a imagem da "Maioria" (qualitativa e não quantitativa) sobre os devires-minoritários que perpassam o Movimento e que podem potencializar projetos políticos revolucionários.]
Em meio à massa de manifestantes existem também indivíduos que se aproveitam de uma situação de exceção para roubar e cometer toda série de ilegalidade. Esses indivíduos são mais difíceis de identificar e controlar, pois eles se aproveitam do anonimato para gozar da impunidade.
Do ponto de vista quantitativo, conforme pesquisa realizada pelo Ibope entre a massa de manifestantes, 52% dos manifestantes eram estudantes; 43% tinham menos de 24 anos; 43% possuem ensino superior completo, 49% disseram ter renda familiar acima de cinco salários mínimos (R$ 3.390,00); e 46% nunca haviam participado antes de manifestações políticas. Esses dados fornecem um retrato do Movimento, formado, em grande parte, por jovens de classe média e baixa.
Todos esses coletivos são compostos não somente por elementos humanos, mas também por aparelhos e objetos que compõem sua agência política. Estamos aqui diante de um campo bastante heterogêneo que envolve desde cartazes, camisetas, máscaras e faixas utilizadas para expressar as ideias e bandeiras políticas, até aparelhos tecnológicos como a internet, computadores, máquinas fotográficas, filmadores digitais e celulares, aparelhos que permitem a expressão pública de ideias e valores, o registro das ações e sua divulgação por meios das redes sociais. O papel que esses elementos não humanos desempenham nas redes sociotécnicas associadas ao Movimento dos Manifestantes deve ser levado em conta no estudo desses eventos de protagonismo político. Os recursos teórico-metodológicos fornecidos pela Teoria Ator-rede me parecem os mais apropriados e potencialmente eficazes para compreender a associação entre coisas e pessoas que está na origem dessa extensa rede de manifestantes que ocuparam as ruas e avenidas das grandes metrópoles mundiais.
Na minha opinião, não existe um único fator que determinou a emergência das manifestações no cenário político brasileiro. De fato, esse mapeamento das motivações e insatisfações só será possível a partir de estudos mais densos sobre as manifestações e os próprios manifestantes. Uma das razões para isso é a própria heterogeneidade do Movimento, que não pode ser reduzido a uma de suas várias partes ou eixos de disseminação. Ao tentar homogeneizar um coletivo de vozes diversificadas, acabamos por fabricar estereótipos imprecisos. Qualquer tentativa de pressupor uma identidade que não comporte, em si mesma, certa multiplicidade de vozes e opiniões, resultará em uma visão deturpada sobre o Movimento, seus protagonistas e suas razões históricas. Tenho certeza que, nos próximos anos, os eventos que acompanhamos nas últimas semanas serão objeto de inúmeras pesquisas nas áreas de ciências sociais e humanas. Podemos, no entanto, contribuir para esse mapeamento a partir de algumas anotações iniciais.
A razão mais geral e, provavelmente, também a mais espontânea e estrutural, é a indignação com a classe política e governamental. As pessoas estão cansadas de conviver com contradições evidentes de um país com problemas estruturais, como a alta desigualdade econômica e social. Ninguém suporta saber que, enquanto pessoas ganham um salário miserável, os políticos têm inúmeros privilégios, além de um excelente salário. Num país com alta taxa de desigualdade econômica, sustentar uma elite governamental extremamente onerosa e, na maioria dos casos, improdutiva, é uma contradição evidente aos olhos da sociedade civil. Esse sentimento cresce ainda mais diante das constantes notícias de corrupção e mau uso dos recursos públicos. A indignação aumenta ainda mais quando as pessoas se dão conta do quanto elas pagam de impostos e o que isso representa na economia familiar. Campanhas e projetos de lei que buscam dar visibilidade aos impostos embutidos no preço das mercadorias tem incentivado a revolta popular contra o uso indevido dos tributos estatais. A incapacidade dos governos em fazer uma reforma tributária profunda que promova um ajuste nas irregularidades existentes tem levado as pessoas a se manifestarem contra o que consideram um "roubo". Vale notar que não se trata aqui de ser contra a cobrança de tributos - essa é a tradução/versão propagada pelos empresários, pela indústria e pelos meios de comunicação - mas no fato de que, apesar da alta carga tributária, os serviços públicos, em geral, continuam sendo de péssima qualidade e acabam indo parar - através da corrupção - no bolso da classe político-partidária e governamental.
Além dessa razão mais geral - o que não significa que ela seja a mais importante ou significativa -, existem outras tantas razões mais específicas que são compartilhadas por apenas uma parte ou outra do Movimento, mas que estão mais ou menos disseminadas enquanto bandeiras secundárias para boa parte dos manifestantes: educação, saúde, transporte público, desigualdade econômica e social, além de projetos conservadores ou lutas históricas das minorias, como os direitos indígenas, de gênero e o combate a homofobia. Essas razões têm como porta-vozes, em geral, pessoas comuns, que elegem um tema para o seu cartaz tendo como referências os debates e discussões que ocorrem nas redes sociais e nos meios de comunicação, expressando sua voz no coletivo de manifestações. É importante notar que essas noções também são amplamente compartilhadas. Pessoas que saíram para ´protestar contra a homofobia podem 'apoiar' manifestações mobilizadas contra o ataque aos direitos indígenas e ao meio ambiente (e vive-versa). Existe, portanto, um fluxo contínuo de razões que se associam ou dissociam entre si em maior ou menor medida. Ao participar de uma manifestação, logo notei a multiplicidade de vozes que constituem o coletivo de manifestante, mas também notei que essas vozes não eram dissonantes, mas na maioria dos casos convergentes e/ou paralelas.
Não resta dúvida que os coletivos de direita "infiltrados" na massa de manifestantes possuem razões e motivações bem diferentes e até mesmo opostas às razões e motivações da maior parte das pessoas mobilizada nos protestos das últimas semanas. Seus interesses são notórios e públicos e estão expressos em toda série de documentos escritos e seus projetos políticos são divulgados por meio de redes sociais, blogs e sites. Não se trata, portanto, de nenhuma novidade. Por outro lado, não resta dúvida que essas razões e motivações representam uma pequena minoria dos interesses envolvidos na massa de manifestações políticas e seria um grave erro metodológico conferir a essas exceções o caráter de 'norma' ou 'média', pois certamente não se trata aqui de algo relevante ou representativo tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo.
O a-partidarismo e a insatisfação com o atual sistema de representação política
Muito tem se falado sobre o caráter a-partidário do Movimento de manifestantes. Conforme pesquisa do Ibope, 89% dos manifestantes disseram não se sentirem representados por qualquer partido político e 96% não são filiados. Antes de abordarmos as razões e motivações do sentimento a-partidário, precisamos limpar o terreno de teses equivocadas sobre o "a-partidarismo".
1) Existe uma diferença conceitual entre "a-partidarismo" e "anti-partidarismo". No primeiro caso, trata-se de uma ausência de identificação com os partidos políticos atuais e suas formas de organização, o que significa que esse termo expressa o fato das pessoas não serem 'filiadas' a nenhum partido político na atualidade, o que não significa que não tenham apoiado partidos políticos no passado ou não estejam dispostas a aderir a projetos políticos partidários no futuro. No segundo caso, trata-se de uma crítica histórica consciente à forma de organização político-partidária, postura geralmente associada a coletivos que defendem outras formas de ação política organizada;
2) A Ciência Política demonstra claramente que, pelos menos, desde o pensamento político de Aristóteles, sabe-se que a atividade política é inerente ao ser humano, daí o termo de "sujeito político" para referir-se a nossa forma de estar e viver no mundo;
3) Como muito bem esclarece o próprio marxismo, o Partido é, sim, um instrumento de exercício da política, mas não é o único. A política é uma atividade que perpassa outros setores da nossa sociedade: a família, o ambiente empresarial, as associações profissionais e de classe, as escolas e universidades, as fábricas e empresas, os bancos e instituições financeiras, as organizações não governamentais, os movimentos sociais, as diferentes igrejas e religiões, as relações comerciais e econômicas, a mídia e os meios de comunicação, etc. Reduzir a atividade política ao exercício partidário é um equivoco e tanto;
4) O fato das pessoas não serem filiadas a partidos políticos não significa, obviamente, que elas não exercem o voto nas eleições. Inclusive, boa parte dos manifestantes teve papel ativo nas últimas eleições, muito deles, inclusive, votaram na Dilma no primeiro ou no segundo turno. Outras ajudaram a eleger o Governo Lula, em 2002. Quando as pessoas dizem que são "a-partidárias", elas estão dizendo que, atualmente, não estão envolvidas diretamente com as questões deste ou daquele partido político ou que simplesmente não são filiadas a nenhum partido político, simples assim.
Mas porque essa insatisfação generalizada com os nossos partidos políticos e com a estrutura partidária? Ora, não é de hoje que os especialistas defendem a tese do "esvaziamento ideológico" dos partidos políticos no Brasil. Inclusive, existem pesquisas que apontam que boa parte dos eleitores não vota no partido "x" ou "f", mas neste ou naquele candidato. Por outro lado, os partidos atuais possuem uma organização social e política cujo esboço inicial foi construído na Grécia e na Roma Antiga, mas cuja forma atual foi concebida ao longo dos séculos XVIII e XIX. Ora, desde então, as sociedades ocidentais passaram por profundas transformações sociais e tecnológicas. Com isso, da mesma forma que fazemos, por exemplo, com outras instituições como a Igreja ou a escola, devemos questionar se a estrutura partidária foi capaz de se adaptar aos novos tempos ou se tornou obsoleta. Na minha opinião, eventos de mobilização direta da sociedade civil em diversos países do mundo apontam para uma falência da capacidade de organização das demandas civis por parte da classe política e dos partidos tradicionais.
É importante notar que a via partidária não é e nunca foi a única forma de fazer política na democracia. E essa questão de fazer política de outras formas nos remete a antigos debates do socialismo revolucionário, envolvendo figuras históricas do anarquismo e do marxismo. Existem, inclusive, milhares de grupos civis organizados no mundo inteiro que se identificam com a forma anarquista de fazer política e se organizam politicamente tendo como referência as noções de ação direta e auto-organização ou auto-gestão. É importante notar que a maior parte dos coletivos anarquistas não fazem uso de ações e táticas violentas de luta política, sendo que muitos desses coletivos possuem uma postura claramente pacifista. O Brasil, inclusive, foi palco de importantes ações anarquistas nas décadas de 1920-40, quando coletivos formados por imigrantes europeus desempenhavam um importante papel na luta de classes em diversas cidades brasileiras, como Porto Alegre e São Paulo. Boa parte dessas manifestações anarquistas resultaram nos direitos trabalhistas instaurados pelo primeiro governo de Getúlio Vargas, que também fez de tudo para institucionalizar e disciplinar esses setores mais radicais da sociedade civil por meio da criação de sindicatos e partidos políticos mais ou menos atrelados ao Estado.
O próprio Movimento dos Manifestantes é um bom exemplo de como é possível fazer ações políticas eficazes sem ser por intermédio dos partidos políticos. Inclusive, a forma de organização política descentralizada do Movimento deve ser estudada mais densamente, assim como o seu caráter mais ou menos "espontâneo", pois esses fatores podem oferecer uma boa indicação de alternativas ou impasses atrelados à difícil tarefa de superar a crise das instituições da democracia participativa.
O Papel das Redes Sociais
É importante notar o papel que as redes sociais têm na conscientização popular das contradições estruturais de uma sociedade capitalista: 76% dos manifestantes que participaram da pesquisa do Ibope disseram que fizeram uso das redes sociais para convidar amigos para manifestações. Esse padrão de organização política se alimenta de uma vasta rede de contra-informação que cresce a cada dia que passa, conseguindo, com isso, colocar em disputa a interpretação dos fatos, acirrando, portanto, as batalhas de interpretação e retirando um pouco do imenso poder de formar "opinião pública" que a grande mídia historicamente teve no Brasil e no mundo. A alta velocidade de disseminação rizomática das informações em amplos setores da sociedade civil tem levado a um aumento significativo do protagonismo político. Até maio de 2013, esse protagonismo era exercido, em grande parte, no ambiente virtual ou em eventos e mobilizações mais localizadas. A maior novidade deste Movimento é que as pessoas resolveram sair do ambiente virtual e ir para o mundo da vida, encontrando-se de "carne e osso" nas ruas e avenidas das cidades. Esse movimento de transbordamento do "virtual" para as ruas teve início há mais de uma década, quando a internet começou a se popularizar entre jovens de classe média, uma parte deles de esquerda. Ele esteve presente como importante fator de organização social, por exemplo, nas manifestações e protestos políticos promovidos pelos primeiros integrantes do MPL.
Existe, portanto, uma especificidade na forma como os manifestantes se organizam e se mobilizam e as redes sociais têm exercido um papel fundamental nessa forma de organização sociotécnica. As informações circulam de forma descentralizada, mas seguindo feixes ou eixos de dispersão que compartilham entre si uma determinada tendência ideológica ou posicionamento político. Esse fato não é novidade e existem, inclusive, grupos de pesquisa voltados para o estudo da circulação rizomática e arbórea de informações e posicionamentos políticos nas redes sociais. Ver, por exemplo, o excelente trabalho desenvolvido pelo "Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura" (LABIC).
É importante notar que o poder de agência e eficácia das ações políticas desses novos movimentos civis é o efeito da associação entre elementos humanos e não humanos. Vale notar aqui o papel que os aparelhos de mediação sociotécnica possuem na circulação, disseminação, amplitude e alta ressonância política dos protestos que temos acompanhados nas últimos anos no Brasil e no mundo, assim como a importância estratégica do uso de aparelhos de registro audiovisual - câmeras fotográficas, celulares e filmadoras digitais -, que funcionam como um elemento de divulgação dos abusos cometidos pela polícia ou até mesmo como instrumentos de registro de eventos que não são transmitidos pela grande mídia.
A associação entre o Movimento dos manifestantes brasileiros e outros movimentos civis
É bastante evidente a relação entre as manifestações que ocorreram nas últimas semanas, no Brasil, com outros movimentos civis como "Occupy Wall Street", os protestos contra a política econômica adotada na União Européia e o conjunto de mobilizações políticas denominadas de "Primavera Árabe". Essas manifestações possuem vários pontos em comum, como é o caso do papel desempenhado pelas redes sociais nas formas de organização e mobilização política, o caráter a-partidário dos coletivos de manifestantes (pelo menos num primeiro momento) e uma insatisfação generalizada com a democracia representativa e com as formas tradicionais de organização política das sociedades ocidentais e "modernas".
Por outro lado, o grau de resistência e densidade das manifestações civis tende a crescer na medida em que as contradições da democracia representativa e do capitalismo se multiplicam. Quanto maior for o vazio ideológico dos partidos políticos, quando mais os porta-vozes traírem as expectativas ideológicas dos coletivos que eles representam, maior será a força e a persistência das manifestações civis.
Diante do acirramento das relações de força no capitalismo contemporâneo - ocasionado, entre outras razões, por um acirramento da desigualdade econômica e social e pela crise ambiental - não seria uma hipótese equivocada apontar para um possível crescimento da periodicidade das manifestações políticas da sociedade civil.
Ainda em relação ao Movimento, outro desafio será equacionar as multiplicidade de vozes e interesses políticos agenciados nos protestos e mobilizações. Sabemos que os diferentes coletivos mobilizados nessas redes de ativistas envolvem atores que se diferenciam tanto pelos valores ideológicos que defendem, como pelas estratégias de luta e práticas políticas. Estabelecer um espaço de dialogo democrático entre as múltiplas diferenças que perpassam o Movimento representa um desafio e tanto para os manifestantes, algo que já ficou evidente na onda de protestos que acompanhamos nas últimas semanas.