Por mais que Hans se esforçasse, não conseguia lembrar quando o 'distúrbio' teve início. O 'caso' representa uma anomalia rara na história da psicanálise. Apesar de homens e ratos conviverem há milhões de anos,existem poucos relatos sobre eventos como aquele.
A relação entre as duas espécies é milenar. Homens e ratos vivem lado a lado, amigavelmente ou não. Os ratos podem ser 'sacrificados' em nome da ciência ou combatidos como uma praga.
As ciências ocidentais tecem inúmeras analogias entre o corpo do rato e o corpo humano. Doenças são testadas nesses animais tendo como referência esse pressuposto de homologia corporal. Apesar da diferença radical, ratos e homens possuem semelhanças genéticas e biológicas há muito exploradas pela medicina. Os ratos são mantidos em cativeiro, no laboratório, onde servem de cobaia 'viva' para experimentos de toda espécie. Coletivos de humanos se mobilizam em nome desses animais, instituições são mantidas com verbas governamentais e todo um campo de problematização jurídico-governamental se estabeleceu em torno dos 'direitos dos animais de laboratório', entre eles, os ratos e camundongos. Os comitês de ética fiscalizam e orientam procedimentos científicos por meio de protocolos. A relação entre homens e ratos no âmbito das pesquisas científicas é regulamentada por regras e valores humanistas, voltadas para o reconhecimento dos direitos do sujeito-rato. Os defensores dos animais seguem uma cartilha rigorosa de 'princípios' e 'orientações' e alguns pesquisadores se especializam em decifrar todos os artigos da nova "Constituição". A 'violência' entre uma espécie e outra é, assim, institucionalizada na ciência por códigos éticos que legitimam as práticas predadoras dos cientistas, tudo em nome da 'vida humana'.
Os ratos foram perseguidos durante milênios pelas cruzadas evangelizadoras. Simbolo da desgraça e da doença crônica, os ratos foram eleitos como o indicativo da peste e do pecado projetado sobre os homens maus. Os historiadores até hoje tem dificuldade em explicar os motivos que levaram a essa cruel demonização. O fato é que os ratos foram transformados, ao longo do tempo, em emissários e representantes das forças diabólicas, sendo combatidos como tal. Criou-se, assim, uma relação de homologia espiritual entre o espírito mau e o rato, assim como da praga e da desgraça coletiva com a invasão desses animais, considerados malignos e nefastos. A única analogia espiritual mais forte do que essa é aquela entre homens e morcegos...
A convivência entre ratos e homens nem sempre é pacífica. Mas o fato é que - conforme o 'senso comum' - homens e ratos têm vidas distintas, convivendo sem nunca se misturar. A fronteira entre as duas espécies é um marco para a 'humanidade' e apenas em situações extraordinárias foi superada, como é o caso dos famosos ratos-orelhas criados em laboratório, a partir da aplicação de técnicas de manipulação genética.
Mas, para o pobre Hans, a lembrança do momento exato em que teve início o lento processo de transformação simplesmente desapareceu. Nenhuma indicação de algo que pudesse ser minimamente denominado de realidade. Teria sido um sonho, ou talvez uma conversa? Ou, quem sabe, uma conversa em um sonho? A vida antes da internação na 'casa de saúde' era uma coleção de imagens borradas e imprecisas. Por mais que ele tentasse recordar, havia apenas a lembrança de uma invasão de ratos de consequências perturbadoras para o conjunto da humanidade. Aos poucos, todos se pareciam com ratos ou eram ratos disfarçados? Homens vestidos de ratos ou ratos vestidos de homens? Seriam todos vítimas de uma 'praga noturna'?
Por um instante a imagem de uma ratazana gigante lhe veio em mente, seguida de uma breve cena de um rato se deslocando em um assoalho de madeira vermelha. As suas unhas, já grandes, cintilam uma sinfonia desproporcional diante de um Hans tão pequeno e insignificante. A porta por onde entrara parece tão desproporcionalmente grande, assim como a sua sombra delineada na parede.
Outra imagem, desta vez da face do rato, de seu nariz nervoso. Os pelos do nariz formam um minusculo bigode que vibra.Os olhos são assustadores, como os olhos de um feiticeiro. Seus dentes, levemente postados pra frente, indicando uma possível agressão.
Lembrança-rato, mas os ratos nunca andam sozinhos. A arte do flautista de Hamlin, como todo bom ilusionista, consiste em saber conduzir o coletivo de animais pelas ruelas e estradas do desconhecido país, apresentá-los às autoridades, levá-los para as festas mais requintadas da elite local até o ponto de embriagá-los completamente, até o ponto de afogá-los no rio Weser e com isso por fim à invasão e ao perigo da epidemia.
Mas o que seria do flautista sem aquele 'Outro', o anômalo que habita a fronteira e que caminha exatamente no 'entre', esse ser que coloca os limites em questão, abrindo as membranas para movimentos de simbiose completa. Esse rato branco com olhos de um vermelho intenso, unhas gigantes, pelos espessos e cintilantes. Havia nele algo de humano, algo de perigosamente familiar. Talvez os olhos, ou melhor, o olhar de indagação. Como se ele e Hans compartilhassem um grande segredo.
Mas que segredo seria esse?Seria outro dialeto, de onde viria esse vocabulário de ruídos-palavras? É como se os ratos falassem a mesma língua, mas de forma completamente diferente. Havia, de fato, algo muito semelhante entre Hans e aqueles animais. E tudo estava inscrito de forma bastante contundente naquele rato branco. A sua brancura era tão terrivelmente perturbadora, algo do qual Hans não conseguia mais se libertar.
Uma tendência radical em transformar-se em 'Outro' ou outro alguém, expressa em um turbilhão de intensidades que invadiram o corpo do pobre Hans. Seria uma possessão, estaria Hans possuído? Quando, em que momento exato esse movimento de fuga teve início? Melhor, para onde a transformação o conduzia, quais regiões do ser a fuga lhe permitiu experimentar? Quais ritmos, disposições e afecções permitiram essa comunicação entre-bordas, abrindo uma abertura nas dobras do ser?
Hans lembra de ter comprado um rato, ou seria esse primeiro rato um habitante antigo da morada de seus avós, da velha fazenda. Ou seria um rato capturado ainda vivo, talvez o pobre animal serviu de cobaia para projetos científicos. Teria sido um rato preso em seu labirinto ou uma ratazana presa em uma ratoeira? Mas o rato nunca foi um indivíduo, sempre viveu em coletivos nômades...
Em algum momento vieram os outros... E logo se multiplicaram, novas gerações surgiram, a população aumento com agressividade e em poucos meses havia toda uma civilização de ratos vivendo em sua casa, convivendo com Hans diariamente, comendo da sua comida e dormindo em sua cama. Porque ele não combateu os ratos, porque não declarou guerra aos invasores?
O fato é que a passividade custou-lhe caro. Afinal, para que o coletivo de ratos pudesse viver naquele pequeno apartamento de dois quartos e uma sala-cozinha foi necessário que os novos habitantes do local fossem exilados de sua própria terra. A esposa de Hans e suas duas filhas - Miriam e Jan - abandonaram o local após a chegada dos primeiros ratos. Não suportaram ver o lar transformado daquele jeito. Não suportavam ver Hans, outrora tão radiante, completamente transfigurado, vestido com roupas sujas, com barba por fazer e o corpo coberto de pelos, vivendo como um rato entre ratos. Aquela animalidade tornou-se, em algum momento, tão insuportavelmente humana a ponto de transpor as fronteiras entre as duas espécies, torná-las insignificantes. O resultado era um ser híbrido, nem rato nem homem, algo 'entre' os dois.
Hans continuou apático, servil, completamente dominado por uma ideia que apreendeu em pouco tempo a considerar 'natural': havia algo de 'rato' nele e em todos de sua espécie. Pequenos afetos, afecções, tendências e intensidades, que surgiam em contextos específicos, em situações inesperadas e, até certo ponto, incomuns. Havia a possibilidade iminente de composição radical entre homens e ratos. Cabia a ele elevar a enésima potência esses movimentos moleculares.
Não há dúvida, os homens podem ser ratos em situações especiais, 'ratiando' aqui e ali como um pequeno mamífero roedor, alimentado-se das sobras e dos restos de seus hospedeiros. O homem pode ser o mais temível dos ratos, alcançando a terrível façanha de ser mais rato do que os próprios ratos.
A metamorfose.de Hans foi voraz e em poucos meses estava completamente transformado. A primeira mudança foi no campo da alimentação. Surgiu como uma modesta obsessão por queijos, de todas as procedências e tipos.
Depois, a transformação intensificou-se ainda mais. Em algum momento a caça de pequenos insetos lhe pareceu tão apetitosa e atrativa que a força do hábito não foi suficiente para desconstruir ou retrair um estranho e inesperado desejo evidenciado por um salivar compulsivo. Depois vieram os grãos, como nozes, amendoins e amêndoas. Restos de comida, pães e arroz cru. Sementes de todos os tipos, bananas e outras frutas. Mas os ratos comem no chão. Para comer como um rato, Hans também teve que passar a viver como um, rastejando ao lado de seus comparsas.
Tudo mudou quando os ratos reconheceram Hans pela primeira vez como parte do bando. Naquele momento, ele sabia que havia cruzado uma fronteira importante. A partir dali ele jamais seria o mesmo. Retornar no interior da diferença, reportar-se a outras diferenças, sem nunca reproduzir o "Fundamento" ou à identidade do conceito.
Um devir-rato apoderou-se do pobre Hans, dando início a um intenso movimento de transformação, transfigurando completamente o seu corpo e face, a ponto de, no final, nem mesmo sua mãe, ex-esposa e filhas reconhecerem nele nada mais do que uma remota lembrança do que um dia foi ou pensou ser.
Em dias de visita como hoje, Hans tem a impressão de ser um rato em uma gaiola, um reflexo dos olhares surpresos dos visitantes, com seus silêncios intermináveis e seus gestos de nojo e atitudes de distanciamento. Ele havia se tornado um intocável, habitante solitário de um palácio de assoalho e teto branco, de paredes também brancas, onde todos os seres vivem como seres imaculados, com suas vestimentas de um branco extremo, da mesma brancura do velho Barth, o anômalo. Aquele que parecia um animal tão humano, talvez mais humano do que o próprio Hans e todos de sua espécie. O rato-líder, com seus olhos terrivelmente vermelhos e seu bigode demasiadamente humano, tão humano que fazia de todos os homens um mero reflexo.
Barth era o seu 'Moby-Dick', um rato-homem, o anômalo que não reconhece qualquer fronteira, que transpassa por transbordar todas as linhas. A janela, a abertura ou a dobra por onde tudo flui, transloca, transgride, transforma e transfere. O rato-hans havia se tornado uma ratazana.
[Em algum momento do século XIX, Hans L. A. D. foi personagem de um famoso caso estudado pelos mais renomados psicólogos da época. O rapaz, então com apenas 24 anos, acreditava ter se transformado em um rato, convivendo com os membros desta espécie em um galpão abandonado, em sua propriedade agrícola, em uma pequena cidade da Inglaterra. O evento foi denunciado pela esposa e a filha de Hans, que foi removido para um manicômio, onde viveu até cometer suicídio, em 1932. Conforme relatam os 'livros médicos', Hans morreu "como um rato, comunicando-se até os últimos minutos de vida como se fosse um desses animais". Seguiram-se outros tantos relatos sobre 'casos' semelhantes e a história da psicanálise revela uma simpatia constante pela potencial relação de simbiose ou oposição entre homens e ratos. A obsessão foi analisada em um clássico da psicanalise - "Homem dos ratos" - publicada, em 1909, por Freud, que analisa a obsessão de seu paciente por esses animais, representados como o símbolo de uma série de ambivalências anais projetadas no conflito inaugural com o pai. Esta história e outras semelhantes serviram de inspiração para a escrita deste pequeno ensaio, elaborado em diálogo com a noção de 'devir' de Deleuze e Guattari].