quarta-feira, 30 de maio de 2012

O Estado Moderno e a Axiomática do Capitalismo - Deleuze e Guattari

DG mencionam que o surgimento do Estado Moderno Capitalista levou a uma "falência dos códigos" marcada pela "emergência da propriedade privada, a riqueza, a mercadoria, as classes". A partir desse momento, o "Estado já não pode se concentrar em sobrecodificar elementos territoriais já codificados; ele deve inventar códigos específicos para fluxos cada vez mais desterritorializados: pôr o despotismo a serviço da nova relação de classes; integrar as relações de riqueza e de pobreza, de mercadoria e de trabalho; conciliar o dinheiro mercantil com o dinheiro fiscal. (...) O que o Estado despótico corta, sobrecorta ou sobrecodifica, é o que vem antes, a máquina territorial, que ele reduz ao estado de tijolos, de peças trabalhadoras submetida desde então à ideia cerebral" (289-90).

"O Estado, inicialmente, era esta unidade abstrata que integrava subconjuntos que funcionavam separadamente; agora, está subordinado a um campo de forças cujos fluxos ele coordena e cujas relações autônomas de dominação e subordinação ele exprime. Ele não mais se contenta em sobrecodificar territorialidades mantidas e ladrinhadas; deve constituir, inventar códigos para os fluxos desterritorializados do dinheiro, da mercadoria e da propriedade privada. Já não forma por si mesmo uma ou mais classes dominantes; ele próprio é formado por essas classes tornadas independentes e que o incubem da prestação de serviços à potência delas e às suas contradições, às suas lutas e aos seus compromissos com as classes dominadas. O Estado já não é a lei transcendente que rege fragmentos; mal ou bem, ele deve desenhar um todo ao qual dá a sua lei imanente. Já é o puro significante que ordena seus significados, mas aparece agora atrás deles e depende do que ele próprio significa. Já não produz uma unidade sobrecodificante, mas ele próprio é produzido no campo de fluxos descodificados. Como máquina, o Estado já determina um sistema social, mas é determinado pelo sistema social ao qual se incorpora no jogo de suas funções" (293).

"Fluxos descodificados - quem dirá o nome desse novo desejo? Fluxo de propriedades que se vendem, fluxo de dinheiro que escorre, fluxo de produção e de meios de produção que se preparam na sombra, fluxo de trabalhadores que se desterritorializam: será preciso o encontro de todos esses fluxos descodificados, sua conjunção, a reação de uns sobre os outros, a contingência desse encontro, desta conjunção, desta reação que se produzem uma vez, para que o capitalismo nasça e que o antigo sistema encontre a morte que lhe vem de fora, ao mesmo em que nasce a vida em que o desejo recebe seu novo nome" (297).

O "Estado Capitalista", sob o contexto histórico marcado por fluxos de descodificação cada vez mais intensos e generalizados, exerce a prerrogativa de regulação ou regulamentação: esses fluxos exigem "órgãos sociais de decisão, de gestão, de reação, de inscrição, uma tecnocracia e uma burocracia que não se reduzem ao funcionamento de máquinas técnicas. Em suma, a conjunção dos fluxos descodificados, suas relações diferenciais e suas múltiplas esquizas ou fraturas, exigem toda uma regulação cujo principal órgão é o Estado. O Estado Capitalista é o regulador dos fluxos descodificados como tais, enquanto tomados na axiomática do capital. Nesse sentido, ele completa bem o devir-concreto que nos pareceu presidir à evolução do Urstaat despótico abstrato: de unidade transcendente, ele devém imanente ao campo de forças sociais, passa a seu serviço e serve de regulador aos fluxos descodificados e axiomatizados" (334).

"Se é verdade que a função do Estado moderno é a regulação dos fluxos descodificados, desterritorializados, um dos principais aspectos dessa função consiste em reterritorializar, de modo a impedir que fluxos descodificados fujam por todos os cantos da axiomática social. Às vezes, tem-se a impressão de que os fluxos de capitais voltar-se-iam de bom grado à lua, se o Estado capitalista não estivesse lá para reconduzi-los à terra" (342).    

Na axiomática do capitalismo, fundada em processos de desterritorialização e territorialização cada vez mais intensos e abrangentes, o Estado exerce a função de gestão e regulação dos fluxos, conduzindo-os em determinada direção, ordenando-os em compartimentos e vias pré-estabelecidas, garantindo, desta forma, os meios para toda forma de arranjamento e decodificação exercidos pela máquina capitalista.

O Anti-Édipo (Anotações) - Deleuze e Guattari          

sábado, 26 de maio de 2012

A "Máquina Despótica Bárbara" - Deleuze e Guattari

"A instauração da máquina despótica ou do socius bárbaro pode ser assim resumida: nova aliança e filiação direta. O déspota recusa as filiações laterais e as filiações extensas da antiga comunidade. Ele impõe uma nova aliança e coloca-se em filiação direta com deus: o povo deve segui-lo" (255). A "formação bárbara despótica deve ser pensada em oposição à máquina territorial primitiva" (256).

"É a máquina social que mudou profundamente: em vez de máquina territorial, há a megamáquina de Estado, pirâmide funcional que tem o déspota no cume como motor imóvel, que tem o aparelho burocrático como superfície lateral e órgão de transmissão, que tem os aldeões na base como trabalhadores" (258). "As engrenagens da máquina da linhagem territorial subsistem, mas são apenas peças trabalhadoras da máquina estatal. Os objetos, os órgãos, as pessoas e os grupos mantêm, pelo menos, uma parte da sua codificação intrínseca, mas estes fluxos codificados do antigo regime acham-se sobrecodificados pela unidade transcendente que se apropria da mais-valia. A antiga inscrição permanece, mas ladrinhada pela e na inscrição do Estado. Os blocos subsistem, mas transformados em tijolos empilhados e ajustados, cuja mobilidade é artificial. (259-60). Desterritorialização = substituição dos signos da terra por signos abstratos (261); subordinação de todas as filiações primitivas à máquina despótica (262). Substituição da máquina territorial por um "novo corpo pleno desterritorializado", por outro lado, mantém as antigas territorialidades, integra-as como peças ou órgãos de produção na nova máquina (...), se apropria de todas as forças e agentes de produção; mas esta inscrição de Estado deixa subsistir as velhas inscrições territoriais, com tijolos sobre a nova superfície" (263).

Sobre o Estado Déspota e a sobrecodificação: "Todos os fluxos codificados da máquina primitiva são agora impelidos até uma embocadura onde a máquina despótica os sobrecodifica. A sobrecodificação é precisamente a operação que constitui a essência do Estado, que mede ao mesmo tempo sua continuidade e ruptura com as antigas formações" (264).

Mas também a emergência de uma nova forma de inscrição (enquanto sobrecodificação), essência da nova lei (281). "É o aniquilamento do antigo código, é a nova relação de significação, é a necessidade dessa nova relação fundada na sobrecodificação, que remetem as designações ao arbitrário (ou então, as deixam subsistir nos tijolos mantidos pelo sistema" (283).

O Anti-Édipo (Anotações) - Deleuze e Guattari  

terça-feira, 22 de maio de 2012

A Máquina Social 'Primitiva' - Deleuze e Guattari

Segundo Deleuze e Guattari, a máquina social primitiva está voltada para a codificação dos fluxos - de mulheres e de crianças, de rebanhos, de sementes e toda espécie de objetos - o que implica em uma série de operações (188). Toda sociedade é um socius de inscrição onde o essencial é marcar e ser marcado. "Só há circulação quando a inscrição a exige ou permite" (189).

As "máquinas sociais pré-capitalistas" codificam os fluxos de desejo (185). Elas têm os homens como peças. "A máquina social primitiva codifica os fluxos, investe os órgãos, marca os corpos, que são da terra. A essência do socius registrador, inscritor, enquanto atribui a si próprio as forças produtivas e distribui os agentes de produção, consiste nisso: tatuar, recortar, escarificar, mutilar, cercar, iniciar" (191). Ver mais sobre a inscrita corporal nas páginas 249-250.

"A máquina territorial é a primeira forma de socius, a máquina de inscrição primitiva, 'megamáquina' que cobre um campo social" (187).

"A noção de territorialidade só é ambígua aparentemente", quando entendida como princípio de residência ou de repartição geográfica: "é evidente que a máquina social primitiva não é territorial" (pelo menos não nesse sentido) (194). Ver, por exemplo, o parentesco como forma de territorialidade que envolve uma independência entre a distribuição das pessoas e a sua relação com o território (200). Outros exemplos fornecidos pelos autores são as diferentes instâncias de "representação territorial" nas sociedades indígenas.

A "máquina segmentária" é citada como um exemplo de máquina territorial primitiva (202-3). "A máquina territorial segmentária esconjura a fusão pela cisão, e impede a concentração de poder mantendo os órgãos de chefia numa relação de impotência para o grupo" (203-4). Ver também sobre as famílias nas sociedades primitivas nas páginas 221 e 231.

Sociedades primitivas não são 'sem história', mas possuem outra forma de historicidade (201).

Terra: "unidade primitiva, selvagem, do desejo e da produção é a terra. (...) Ela é a superfície sobre a  qual se inscreve todo processo de produção, sobre a qual são registrados os objetos, os meios e as forças de trabalho, sobre a qual se distribuem os agentes e os produtos" (187).  

O Anti-Édipo, Capítulo III (Selvagens, Bárbaros e Civilizados), Deleuze e Guattari
Anotações Livres    

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Lista de Universidades que já aderiram à greve dos professores

Estou disponibilizando abaixo uma listagem das universidade que aderiram à greve até o dia 17 de maio, data prevista para o início da mobilização pela ANDES. Além dessas universidades, existe a informação de que outras instituições já marcaram assembleia para a próxima semana.

1. Universidade Federal do Amazonas
2. Universidade Federal de Rondônia
3. Universidade Federal Rural do Amazonas
4. Universidade Federal do Pará / Central
5. Universidade Federal do Pará / Marabá
6. Universidade Federal do Oeste do Pará
7. Universidade Federal do Amapá
8. Universidade Federal do Maranhão
9. Universidade Federal do Piauí
10. Universidade Federal do Semi-Árido (Mossoró)
11. Universidade Federal da Paraíba
12. Universidade Federal da Paraíba / Patos
13. Universidade Federal da Paraíba / Cajazeiras
14. Universidade Federal de Campina Grande
15. Universidade Federal Rural de Perbambuco
16. Universidade Federal de Alagoas
17. Universidade Federal de Sergipe
18. Universidade Federal do Triângulo Mineiro
19. Universidade Federal de Uberlândia
20. Universidade Federal de Viçosa
21. Universidade Federal de Lavras
22. Universidade Federal de Ouro Preto
23. Universidade Federal de São João Del Rey
24. Universidade Federal de Espírito Santo
25. Universidade Federal do Paraná
26. Universidade Federal do Rio Grande
27. Universidade Federal do Mato Grosso
28. Universidade Federal do Maro Grosso / Rondonópolis
29. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
30. Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
31. Universidade Tecnológica Federal do Paraná
32. Instituto Federal do Piauí
33. Instituto Federal de Minas Gerais      

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Greve dos Professores das Universidade Federais

No dia 12 de maio, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES), durante reunião do setor das IFES, deliberou pelo indicativo de greve nacional a partir do dia 17 de maio (quinta-feira). A greve foi aprovada por ampla maioria dos presentes (33), sem nenhum voto contrário e apenas três abstenções. A decisão é o resultado de um processo de desgaste  nas negociações com o governo, que demorou para cumprir o acordo firmado em 2011. O indicativo será repassado para as IFES, através das seções sindicais associadas à ANDES, que devem, nos próximos dias, convocar assembleias locais para deliberar se vão aderir ou não à greve. Até o presente momento, existe a informação de que mais de 20 universidade federais já aderiram ao movimento, do total de 61 centrais sindicais ligadas à ANDES.

As reivindicações do movimento grevista retomam a pauta deliberada no 31º Congresso da entidade, envolvendo os seguintes pontos:
  • Estabelecimento de uma carreira única com 13 níveis remuneratórios, com variação de 5% entre níveis a partir do piso para regime de 20 horas (R$ 2.329,35) e percentuais de acréscimo relativos à titulação e ao regime de trabalho;
  • Incorporação das gratificações no vencimento básico;
  • Valorização e melhoria das condições de trabalho nas IFES, com atenção especial para as instituições que estão passando por um processo de ampliação de vagas no âmbito do REUNI;
  • Aumento salarial (ainda não existe uma decisão sobre o percentual). 

No dia 15 de maio, a Associação dos Docentes da Universidade Federal de Uberlândia (ADUFU), por meio de assembleia, votou pelo indicativo de greve dos professores a partir do dia 17 de maio, quinta-feira, por tempo indeterminado. A reunião contou com a presença de 212 docentes, que votaram pela indicativo de greve. Como o movimento ainda está no início, fica difícil saber se todos os professores vão realmente parar as atividades de ensino. Vamos observar a conjuntura nos próximos dias para ver como as coisas vão andar daqui pra frente. Hoje de manha, ocorreu o primeiro ato de greve e outras atividades estão sendo organizadas para os próximos dias. Existe uma controvérsia em torno da pauta local da greve, que deve ser elaborada nas próximas semanas. Até o presente momento, a ADUFU reforçou as reivindicações apresentadas pela ANDES, mas alguns colegas querem rever e debater antigas demandas colocadas na última greve e que ainda não foram atendidas pelo governo. Além da questão salarial, também está em jogo a restruturação da carreira docente e as regras de progressão, além de demandas pontuais associadas à ausência de infra-estrutura adequada diante da expansão de vagas promovidas no âmbito do REUNI.

Outra polêmica diz respeito à promulgação, na última semana, da MP 568, que, entre outras coisas, atendeu uma parte das demandas acordadas com o governo na última greve, como a incorporação das gratificações (GEMAS e GTEMPCT) no vencimento básico dos professores e um modesto aumento de 4% no salário base. A demora em atender as demandas e a edição da respectiva MP em um momento estratégico, diante da iminência de uma greve nacional, resultou na insatisfação dos professores e na decisão pela retomada da discussão da pauta do movimento.

Outras controvérsias giram em torno da restruturação do plano de carreira docente. No dia 15 de maio, representantes da ANDES e do governo se reuniram em Brasília, no âmbito do "GT Carreira", para discutir e deliberar os pontos de reforma do atual plano de carreira. As propostas apresentadas pelo governo nessa ocasião não representam nenhuma novidade ou avanço nas negociações iniciadas em 2010:
  • exclusão da classe "Sênior" do Plano de Carreira;
  • manutenção da estrutura já existente, com quatro cargos (auxiliar, assistente, adjunto e associado), 16 níveis de remuneração e o cargo isolado de professor "titular";
  • manutenção do regime de carga horária existente atualmente (20h, 40h, DE);
  • intervalo de 18 meses para progressão inter-níveis;
  • manutenção dos critérios de produtividade acadêmica como regra de progressão na carreira;
  • estabelecimento de regras claras para o estágio probatório; 
O posicionamento da ANDES é de insatisfação, pois os pontos apresentados refletem uma postura contrária à negociação. Entre as decisões criticadas, é importante mencionar a manutenção da categoria de "auxiliar", os critérios produtivistas como única regra de progressão e a não integração da Retribuição por Titulação (RT) no salário nominal dos docentes.

De fato, razões não faltam para entrar em greve. O salário nominal dos professores ainda é muito baixo diante da faixa salarial dos servidores públicos federais. A ampliação de vagas no âmbito do REUNI não foi acompanhada por uma ampliação da infra-estrutura e do número de professores, resultando em uma defasagem das condições de trabalho. Além da reivindicação histórica pela restruturação da carreira docente.

Por outro lado, a paralisação das aulas acarreta transtorno para alunos e professores, podendo resultar, em médio e longo prazo, na necessidade de alteração do calendário docente, o que implica em um prejuízo significativo para a comunidade acadêmica. Os rumos do movimento ainda estão um tanto incertos e a duração e abrangência da paralisação vai depender do número de docentes e universidade que irão aderir à greve nas próximas semanas. Só nos resta esperar que o governo tenha bom senso e estabeleça o mais breve possível uma agenda de negociação que leve à discussão dos pontos da pauta grevista.    

Para quem tiver interesse em saber maiores detalhes sobre as questões jurídicas associadas à greve docente, estou disponibilizando no link abaixo uma cartilha sobre "Greve no Serviço Público Federal":

http://pt.scribd.com/doc/93361856/Cartilha-de-Greve-SINTSEF-SP

terça-feira, 15 de maio de 2012

Da História das Ciências à Arqueologia do Saber em Michel Foucault

O livro "Foucault, a ciência e o saber", de autoria de Roberto Machado, é uma excelente introdução aos pressupostos metodológicos e teóricos associados à proposta de uma "arqueologia dos saberes", tal como definida por Foucault. Nessa obra, o autor busca mostrar a singularidade da abordagem arqueológica diante de uma linhagem francesa de estudos históricos e epistemológicos da ciência, comparando o método da arqueologia dos saberes à abordagem de autores como Bachelard e, principalmente, Canguilhem. Na primeira parte, somos introduzidos a história epistemológica de Canguilhem, que teria servido como ponto de partida para Foucault, cuja história arqueológica é abordada na segunda parte do livro. Segue abaixo um breve trecho onde Roberto Machado expõe a sua proposta:  

"Pretendo partir dessa problemática para analisar o importante deslocamento metodológico operado por Michel Foucault em relação à história das ciências. O método de análise proposto por ele é geralmente conhecido como 'arqueologia do saber'. O que talvez pouca gente saiba é que essa denominação é um ponto de chegada, não um ponto de partida; é o resultado de um processo, também histórico, em que, para se definir, a arqueologia sempre procurou se situar com relação à epistemologia. Daí o privilégio que confiro a essa relação. (...) Com efeito, uma análise minuciosa da abordagem de Foucault evidencia claramente um progressivo distanciamento das teses epistemológicas - sempre levadas em consideração em suas reflexões - torna possível um novo tipo de história. A especificidade da história arqueológica pode ser delimitada a partir da problemática da racionalidade. Sabemos que a filosofia de Bachelard desclassifica toda pretensão de formular um racionalismo geral. Instruída pela ciência - de quem a própria filosofia deve estar à altura, isto é, assimilar as lições e respeitar a normatividade -, a epistemologia bachelardiana é um racionalismo regional: a inexistência de critérios de racionalidade válidos para todas as ciências exige a investigação minuciosa de várias regiões de cientificidade. Bachelard concentrou sua pesquisa na física e na química, ciências que podemo grosso modo considerar como constituintes da região da natureza ou da matéria. Georges Canguilhem, retomando as principais categorias metodológicas da epistemologia bachelardiana, interessou-se por biologia, anatomia e fisiologia, disciplinas que denomina 'ciências da vida', estudando assim uma outra região de cientificidade. Para compreendemos a história arqueológica de Foucault podemos partir dessa constatação: todas as suas análises estão centradas no homem, isto é, formam uma grande pesquisa sobre a constituição histórica das ciências do homem na modernidade. Trata-se, portanto, de uma nova região. Mas essa originalidade do objeto de estudo não basta para situar a especificidade da arqueologia. O importante é que pelo fato de gravitar em torno da questão do homem - considerado uma região ao lado das regiões da natureza e da vida - a abordagem arqueológica não se norteia mais pelos mesmos princípios que orientam a história epistemológica. Um dos objetivos deste livro é estudar esse deslocamento produzido pela arqueologia em relação à epistemologia para dar conta de sua especificidade como história dos saberes. Isto quer dizer que, mesmo a epistemologia sendo considerada o ponto de referência que melhor permite situar as condições de possibilidade da arqueologia, esta assume em sua análises da racionalidade uma posição bastante diferente: enquanto epistemologia, pretendendo estar à altura das ciências, postula que a ciência ordena a filosofia, como diz Bachelard, a arqueologia, reivindicando sua independência em relação a qualquer ciência, pretende ser uma crítica a própria ideia de racionalidade; enquanto a história epistemológica, situada basicamente no nível dos conceitos científicos, investiga a produção da verdade na ciência, que ela considera como processo histórico que define e aperfeiçoa a própria racionalidade, a história arqueológica, que estabelece inter-relações conceituais no nível do saber, nem privilegia a questão normativa da verdade, nem estabelece uma ordem temporal de recorrências a partir da racionalidade científica atual. Abandono a questão da cientificidade - que define o projeto epistemológico -, a arqueologia realiza uma história dos saberes de onde desaparece qualquer traço de uma história do progresso da razão. (...) Parece-nos mesmo que a riqueza do método arqueológico é ser um instrumento capaz de refletir sobre as ciências do homem como saberes, neutralizando a questão de sua cientificidade e escapando do desafio impossível de realizar, nesses casos, uma recorrência histórica, como deveria fazer uma análise epistemológica. O que não significa, como veremos, abandonar a exigência de uma análise conceitual capaz de estabelecer descontinuidades, certamente não epistemológicas, mas arqueológicas, isto é, situada no nível dos saberes".

"Foucault, a ciência e o saber" - Roberto Machado          

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Heidegger & ANT: aporia ou complementaridade?

"No enunciado 'esse giz é branco', nós, os enunciadores, não percorremos aquele contexto relacional; não nos voltamos primeiramente para uma ou duas representações que, então, ligamos com o intuito de, por meio dessa ligação representacional, nos relacionarmos com esse giz branco. Ao contrário, tudo se dá de maneira totalmente diversa: antes da enunciação da proposição já estamos imediatamente relacionados com a coisa mesma, com o giz branco e, em verdade, não de um modo tal que só teríamos desse giz uma 'representação' em nossa alma. Ao fazermos a enunciação, já estamos antes nos mantendo junto ao giz. Nós, os sujeitos, nos relacionamos diretamente com esse ente (giz) mesmo; estamos junto a ele. A nossa, do sujeito, relação com o objeto é um direto 'estar junto ao' giz. Não chegamos primeiramente ao giz por meio do caminho do enunciado e do contexto relacional ao qual esse enunciado está supostamente atrelado, mas, inversamente, somente na medida em que já estamos junto ao giz, na medida em que já nos mantemos junto a ele, ele pode ser um objeto possível do enunciado. (...) O enunciado não é absolutamente o modo de acesso a esse giz. Somente porque antes do enunciado já estamos junto ao giz e não o alcançamos primeiramente por meio do enunciado como tal, somente por isso o enunciado, enquanto enunciado predicativo, pode se adequar à qualidade e ao modo de ser daquilo sobre o que esse enunciado deve versar. (...) O enunciar sobre... Já se movimenta no interior e, de certo modo, sobre a via de nossa permanência junto ao giz. (...) Nada de consciência, alma, ou mesmo apenas representações, imagens de coisas, mas somente nós mesmos, tal como nos conhecemos, estamos relacionados com o giz, nosso ser junto a um ente por si subsistente em sentido maximamente amplo".

Introdução à Filosofia - Martin Heidegger

Como podemos ver na citação acima, a representação do objeto (a imagem mental ou representacional que fazemos do mundo) não antecede a experiência de lidar com ele em contextos específicos. O giz não é representado antes de ser experimentado, mas é concebido na medida em que é experimentado. É através do uso dos objetos em contextos específicos que o sentido dos mesmos se revela à existência humana. O sentido do giz enquanto aparelho ou instrumento de escrita emerge na relação com um cenário composto por outras entidades associadas entre si, formando um sistema: o quadro negro, o apagador, o professor e sua platéia de alunos, uma sala de aula.

Até mesmo na sua origem primeira - que nos remete ao processo de concepção e fabricação do giz enquanto instrumento de escrita caracterizado por determinadas qualidades - foi preciso apreender as propriedades do gesso em contextos específicos de experimentação e interação, quando as suas qualidades sensíveis se revelaram enquanto vetor de interesse e observação. Antes mesmo de conceber o giz, o homem experimentou as propriedades sensíveis do calcário branco retirado das rochas sedimentares encontradas, por exemplo, nas Falésias Brancas de Dover, na Inglaterra (foto ao lado). A consistência e a brancura dessas rochas, assim como a grandiosidade de suas formas, deve ter atraído a atenção e o interesse humano. Ali terá tido início um lento processo de interação, investigação e experimentação que levou a determinação de uma entre outras propriedades do gesso: a capacidade de 'riscar' certos tipos de superfície.

Da mesma forma, a experiência do professor com o giz tem início muito antes dele entender o significado conceitual desse instrumento de escrita. Foi ainda nos primeiros anos de infância, quando ainda era criança e utilizava pequenos pedaços de giz para pintar o chão e as paredes de sua casa (para pavor dos pais), além de provar o seu gosto, ao ingeri-lo e testá-lo também de outras formas impróprias, que o professor entrou em contato pela primeira vez com esse que viria a ser, muito tempo depois, o seu principal companheiro de trabalho. Antes mesmo dele saber que um dia, ele, o giz, o quadro negro, e um modesto apagador, fariam parte de uma poderosa tecnologia de ensino, as qualidades sensíveis desse objeto se revelaram a partir de um intenso processo de interação e experimentação que teve início ainda na infância e se desdobrou em uma sequência de situações e contextos diferenciados.

Essa forma de pensar a relação entre o homens e os objetos tem levado alguns teóricos a um erro de interpretação das afirmações de Heidegger sobre a qualidade das 'coisas', dos 'seres vivos' e do 'homem". Segundo esses autores, o filósofo alemão 'ainda' estaria preso às limitações impostas pelo Grande Divisor "Natureza/Sociedade". Em parte, essa alegação é verdadeira, mas para entender o teor dessa afirmação, será preciso esclarecer antes alguns pontos importantes, para não corrermos o risco de 'jogarmos a criança fora junto com a água do banho'.  

De fato, para Heidegger, existe uma diferença entre coisas, seres vivos (Ex: plantas, animais) e o homem, como podemos ver no trecho abaixo:

"Ser junto a..., permanecer junto a... caracterizam inicialmente um modo, em conformidade com o qual nós, os homens, somos. O ente que, como homem, cada um de nós mesmos é, denominamos o ser-aí-humano, ou, de maneira sucinta, ser-aí. Denominamos existência um caráter fundamental do modo como o ser-aí é. (...) Isso não significa que outro ente não seria efetivamente real, mas apenas que o modo de ser junto a um outro ente é fundamentalmente diverso. Animais e plantas vivem; as coisas materiais, a 'natureza' em um sentido totalmente definido, subsistem por si; as coisas de uso são à mão. Terminologicamente resulta daí o paradoxo de que o homem não vive, mas existe. (...) Desse modo, considerando esses diversos tipos de ser do ente, podemos realizar a divisão da seguinte forma: o existente, os homens; o vivente: as plantas e animais; o ente por si subsistente: as coisas materiais; as coisas que são à mão; as coisas de uso no sentido mais amplo possível; as coisas que são consistentes: o número e o espaço. Segundo esses tipos fundamentais de ser, podemos caracterizar âmbitos ônticos, apesar de o aspecto desses âmbitos não ser essencial e primário" (Idem). 

Segundo Heidegger, existe uma diferença ôntica entre coisas, seres vivos e homens, mas essa diferença não implica em uma definição da agência como privilégio dos humanos ou uma limitação da abordagem ontológica ao universo humano (ver a diferença entre o "ôntico" e o "ontológico" nas primeiras páginas de "Ser e Tempo"). O homem, para Heidegger, é o único ente que dá sentido ao mundo, mas esse 'dar sentido' não é um exercício meramente cognitivo(as imagens mentais), que antecede a experiência de 'ser-no-mundo', mas se dá a partir da experimentação (enquanto imersão) concreta em um mundo de coisas e seres vivos: é através da experiência de lidar e, desta forma, associar-se com coisas e seres vivos em contextos de ação específicos que esses entes 'desvelam' o seu sentido. Ora, isso significa dizer que, apesar do homem ser o único ente que dá sentido ao mundo (como ser de linguagem), esse sentido se dá a partir da associação com coisas e seres vivos, ou seja, trata-se de uma agência de natureza compósita. Um giz branco, por exemplo, não pode ser representado como uma 'canoa' ou até mesmo como uma 'borracha' (assim como o gesso em pó não pode ser utilizado para 'navegar' ou 'apagar'), pois a experiência de lidar com esse objeto impõe certas limitações ao sentido que ele assume para os homens. É isso que as crianças apreendem a duras custas, quando se voltam às orientações dos mais velhos. O sujeito, aqui, não está separado do mundo e da natureza, mas se constitui a partir da sua imersão no mundo, o que inclui também a sua relação com os objetos e os seres vivos, cujo sentido se revela na experiência concreta e não no privilégio intelectual da representação cognitiva e mental. A prática de dar sentido é, de certa forma, compartilhada com objetos e seres vivos. Estamos diante de uma agência de natureza compósita, onde os humanos dão sentido ao mundo, mas fazem isso a partir da relação com as coisas e com os seres vivos que fazem parte do mundo. Esses seres se revelam a partir da experiência que o homem adquire ao lidar com eles em contextos específicos, como a sala de aula e, antes dela, os depósitos naturais de rochas sedimentares.    

Ora, quando Latour, Callon e Law propõem ampliar a agência para o universo dos não humanos, isso é feito a partir de uma redefinição conceitual da própria noção de agência. 'Agência', neste caso, deixa de ser definida pela "intencionalidade" dos agentes (o sentido que o homem dá ao mundo e a si mesmo), e passa a ser concebida como a propriedade de "fazer a diferença" no sentido que a ação assume em contextos específicos. Quando esses autores afirmam que os não humanos também possuem 'agência', eles não estão dizendo que coisas, animais e plantas 'estão' no mundo da mesma forma, mas que eles 'fazem a diferença' no curso da ação social, como podemos ver abaixo:

"Por contraste, se nos mantermos firme na nossa decisão de partir das controvérsias existentes sobre atores e agências, então qualquer coisa que modifique o estado das coisas ao fazer a diferença é um ator - ou, se ainda não possui uma figuração, um actante. Assim, a questão a se fazer sobre os atores é simplesmente a seguinte: ele faz a diferença na ação de outro ator ou não? (...) ANT não é a alegação vazia de que os objetos fazem as coisas no lugar dos atores humanos: ela simplesmente afirma que nenhuma ciência social pode existir se a questão sobre quem e o que participa no curso da ação é devidamente explorada" (Tradução livre, Reassembling the social, p. 71, Bruno Latour).

Ora, quando Heidegger insere a prática de sentido na experiência de lidar com coisas e seres vivos, redefinindo a existência humana como "ser-no-mundo", ele está reconhecendo a agência dos não humanos na definição dos limites  e potencialidades (materiais e intelectuais) da ação humana, incluindo aí a ação de dar sentido ao mundo. As coisas não pensam ou possuem intencionalidade, mas fazem a diferença nas práticas de sentido.         

Em nenhum momento a ANT afirma que um objeto como o giz possui intencionalidade, mas que as suas características materiais determinam, até certo ponto, o sentido que é dado a esse objeto pelo homem. Ou seja, o giz enquanto objeto (coisa), 'faz a diferença' nas práticas de sentido. Ao se associar ao giz e ao quadro negro, o homem se torna capaz de transmitir ideias para grandes plateias. Mas é somente através da experiência de uso do giz em contextos pragmáticos específicos que esse ente se revela enquanto algo que faz sentido para o homem. Isso significa que a ação humana é sempre de natureza compósita, ela se dá na relação de sentido que o homem estabelece com os objetos e os seres vivos. 

Afinal, a ANT não se reduz a alegação vazia de que humanos e não humanos são seres da mesma natureza (afinal, ninguém dúvida de que o giz e os seres humanos são seres existencialmente diferentes), mas que eles estão associados entre si, formando coletivos e definindo o sentido da 'ação social'. Não se trata, portanto, de uma simples ruptura com o Grande Divisor entre "Natureza X Sociedade", mas de uma redefinição das associações existentes entre esses dois universos e a forma como humanos e não humanos se associam para compor o 'social'. 

A crítica de Heidegger ao primado da representação sobre a experiência humana possui consequências teóricas inquestionáveis e desdobramentos que impactaram diversas áreas do conhecimento, incluindo aí os estudos da ciência. Isso me leva a concluir que - no que se refere à relação entre ANT e a abordagem ontológica de Heidegger - estamos diante de caminhos diferentes, mas que levam a lugares vizinhos. Inclusive, essa proximidade foi potencialmente explorada pelos estudos de ontologia política de John Law e Annamerie Mol.

O problema (e a razão da polêmica) é que, devido à barreira imposta por uma linguagem conceitual e um estilo narrativo de natureza 'filosófica', a leitura de Heidegger nas ciências sociais é feita por intermédio dos comentadores da área. A questão é que a maior parte desses comentadores faz uma leitura parcial (porque 'interessada') de Heidegger, o que leva a disseminação de mal entendidos baseados em imprecisões terminológicas. Isso reflete, para usar um termo cunhado por G. Stocking, uma incapacidade de historicizar a obra, ou seja, de remetê-lá ao contexto histórico em que foi originalmente concebida. Nesse leitura presentista, seletiva e apressada, corre-se o risco de não captar em Heidegger a potencialidade de noções conceituais e teóricas que ainda se encontram em estado de esboço, mas que já apontam potencialmente para desdobramentos posteriores, muitos deles levados adiante pelos críticos com inquestionável maestria.      

Retornarei a essa questão a partir de outro mal entendido: a noção de 'tecnologia' em Heidegger e na Teoria Ator-Rede.    

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Situated Knowledges - Donna Haraway

"I would like to proceed by placing metaphorical reliance on a much maligned sensory system in feminist discourse: vision. Vision can be good for avoiding binary oppositions. I would like to insist on the embodied nature of all vision, and so reclaim the sensory system that has been used to signify a leap out of the market body and into a conquering gaze from nowhere. This is the gaze that mythically inscribes all the market bodies, that makes the unmarked category claim the power to see and not be seen, to represent while escaping representation. (...) I would like a doctrine of embodied objectivity that accommodates paradoxical and critical feminist science projects: feminist objectivity means quite simply situated knowledges. The eyes have been used to signify a perverse capacity - honed to perfection in the history of science tied to militarism, capitalism, colonialism, and male supremacy - to distance the knowing subject from everybody and everything in the interest of unfettered power. The instruments of visualization in multinationalist, postmodernist culture have compounded these meanings of disembodiment. The visualizing technologies are without apparent limit; the eye of any ordinary primate like us can be endlessly enhanced by sonography systems, magnetic resonance imaging, artificial intelligence-linked graphic manipulation systems, scanning electron microscopes, computer-aided tomography scanners, color enhancement techniques, satellite surveillance systems, home and office VDTs (...). Vision in this technological feats becomes unregulated gluttony; all perspective gives way to infinitely mobile vision, which no longer seems just mythically about the god-trick of seeing everything from nowhere, but to have put the myth into ordinary practice. (...) But of course that view of infinite vision is an illusion, a god-trick. (...) So, not so perversely, objectivity turns out to be about particular and specific embodiment, and definitely not about the false vision promising transcendence of all limits and responsability. The moral is simple: only partial perspective promise objective vision".

Situated Knowledges (1988) - Donna Haraway  
Image  - Pamela Moore Dionne (Tattoo)
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