quinta-feira, 29 de março de 2012

Ontological Politics - Annemarie Mol

"These have to do with ontological politics. They have to do with the way in which 'the real' is implicated in the political and vice versa.(...) Ontological Politics is a composite term. It talks of ontology - which in standart philosophical parlance defines what belongs to the real, the conditions of possibility we live with. If the term 'ontology' is combined with that of 'politics' then this suggests that the conditions of possibility are not given. That reality does not precede the mundane practices in which we interact with it, but is rather shaped within this practices. So the term politics works to underline this active mode, this process of shaping, and the fact that its character is both open and contested. To be sure, is has always been assumed that 'reality' is not entirely immutable. Such was the point of technology - and indeed politics. These worked on the assumption that the world might be mastered, changed, controlled. So within the conventions of technology and politics the question of how to shape reality was open: at some point in the future it might be otherwise. But along with this it was assumed that the building blocks of reality were permanent: they could be uncovered by means of sound scientific investigation. Over the last two decades, however, they have been undermined, these neat divisions between present and future; between that which is well-set and that which is still-to-be-formed; between the building blocks that are given and the modes by which they might be differently adjusted.

This work - of which actor network theory  did quite a bit but that it by no means did alone - has robbed the elements that make up reality - reality in its ontological dimension - of its alleged stable, given, universal character. It has argued, instead, that reality is historically, culturally and materially located. Located where? The answer depends on the field in which it is given. In social studies of science it was the laboratory that was rediscribed as a sociomaterial practice where reality is transformed and where news ways of doing reality are crafted. From there they are exported, not so much in the form of theory but rather - or at least as much - in the shape of vaccinations, microchips, valves, combustion engines, telephones, genetically manipulated mice and other objects - objects that carry new realities, new ontologies, with them.


Ontologies: note that. Now the word needs to go in the plural. For, and this is a crucial move, if reality is done, if it is historically, culturally and materially located, then ir is also multiple. Realities have become multiple".

Ontological  Politics  (ANT and After) - Annemarie Mol 

A Constituição Moderna segundo Latour: purificação e hibridização

"A hipótese deste ensaio - trata-se de uma hipótese e também de um ensaio - é que a palavra 'moderno' designa dois conjuntos de práticas totalmente diferentes que, para permanecerem eficazes, devem permanecer distintas, mas que recentemente deixaram de sê-lo. O primeiro conjunto de práticas cria, por 'tradução', misturas entre gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura. O segundo cria, por 'purificação', duas zonas ontológicas inteiramente distintas, a dos humanos, de um lado,  e a dos não-humanos, de outro. Sem o primeiro conjunto, as práticas de purificação seriam vazias ou supérfluas. Sem o segundo, o trabalho da tradução seria freado, limitado ou mesmo interditado. (...) Enquanto considerarmos separadamente estas práticas, seremos realmente modernos, ou seja, estaremos aderindo sinceramente ao projeto da purificação crítica, ainda que esse se desenvolva somente através da proliferação dos híbridos. A partir do momento em que desviamos nossa atenção simultaneamente para o trabalho de purificação e o de hibridização, deixamos instantaneamente de ser modernos, nosso futuro começa a mudar" (16).

Jamais fomos modernos - B. Latour

Como podemos ver acima, a proposta de Latour não consiste em voltar a atenção apenas para as práticas de hibridização, mas também para as práticas de purificação. Afinal, é a relação entre esses dois conjuntos de práticas que constitui a possibilidade de transformar a própria modernidade (enquanto discurso e prática) em um fenômeno passível de descrição e reflexão etnográfica. Essa orientação da pesquisa surge em outro trecho do mesmo livro:

"A tarefa da antropologia do mundo moderno consiste em descrever da mesma maneira como se organizam todos os ramos de nosso governo, inclusive da natureza e das ciências exatas, e também em explicar como e por que estes ramos se separam, assim como os múltiplos arranjos que os reúnem. O etnólogo de nosso mundo deve colocar-se no ponto comum onde se dividem os papéis, as ações, as competências que iram enfim permitir definir certa entidade como animal ou material, uma outra como sujeito de direito, outra como sendo dotada de consciência, ou maquinal, e outra ainda inconsciente ou incapaz. Ele deve até mesmo comparar as formas sempre diferentes de definir ou não a matéria, o direito, a consciência, e a alma dos animais sem partir da metafísica moderna. Da mesma forma que a constituição dos juristas define os direitos e deveres dos cidadãos e do Estado, da mesma esta Constituição - que escrevo com maiúscula para distingui-lá da outra - define os humanos e não-humanos, suas propriedades e suas relações, suas competências e seus agrupamentos" (Idem, p. 20-1).

Não se trata, portanto, de negar ou criticar (antes mesmo de analisar) a "Constituição Moderna" (identificada pela correlação entre purificação e hibridização), mas em buscar descrever como essa constituição é colocada em prática em diferentes contextos, ou seja, analisá-la em ação.

Não tenho dúvida de que a objetividade científica, por estar associada simultaneamente a práticas de purificação e hibridização, não somente envolve modos históricos de objetivação (estratégias discursivas e  materiais de transformação dos fenômenos em objetos), como essas formas também dependem de um conjunto de práticas disciplinares associadas a construção de uma determinada subjetividade (neste caso, uma 'intersubjetividade'). Ao descrever como o objetivismo histórico é construído nas diferentes áreas científicas, leva-se adiante o projeto de uma antropologia simétrica.

Já uma perspectiva assimétrica, neste caso, consistiria em voltar o olhar etnográfico apenas para as práticas de hibridização, buscando velar ou desconstruir o outro conjunto de práticas mencionado por Latour, as chamadas práticas de purificação (e o que é pior, em tom de denúncia retórica). Essa 'anulação' do pensamento do 'outro' foi uma prática histórica comum em relação aos índios, por exemplo, assim como em relação a outros coletivos visados pelo olhar antropológico. Dizer que os atores não sabem o que estão dizendo quando dizem que sabem o que estão fazendo é uma forma de constituir um atalho, um recorte, uma linha que permite impor sobre o outro uma linguagem conceitual exógena e avassaladora.

Talvez seja o momento de retornarmos a boa etnografia, voltada para a reflexão sobre a relação tensa entre pensamento e ação. Na antropologia da ciência, isso implica em voltar a atenção para esses dois conjuntos de práticas científicas - purificação e hibridização - sem negligenciar nenhum deles, levando em conta a relação tensa que existe entre esses dois aspectos do pensamento 'moderno'. 

segunda-feira, 26 de março de 2012

Astrofísica e Objetivismo Científico (2ª Versão)

Um dos efeitos dos estudos sociais da ciência é a popularização da crítica (a priori) do objetivismo científico, ora acompanhada da defesa da ideia de que ele já não existe mais enquanto pressuposto  (um absurdo etnográfico), ora promovendo uma desautorização explícita do discurso e da fala dos próprios pesquisadores (uma atitude de autoritarismo epistemológico um tanto objetivista). Resulta dessa crítica uma batalha científica e epistemológica de grandes proporções que não representa nenhuma novidade no mundo ocidental.

De fato, os postulados naturalistas do conhecimento 'objetivo' como critério de cientificidade, assim como as práticas geradas pelo pressuposto da existência de uma Natureza objetiva, são formas históricas de pensamento que orientam parte das práticas de conhecimento nos laboratórios e instituições de pesquisa ocidentais. Essa ontologia objetivista produz coisas e leva o cientista a aproximar-se dos fenômenos a partir da tentativa de domesticação da subjetividade, projeto sempre inacabado e incompleto. As práticas de purificação também agem sobre o corpo e a mente dos pesquisadores, como forças disciplinares. Esse ideal de construção do conhecimento, cujo evento paradigmático é, certamente, o método de Descartes, ainda está vivo e atuante nas diferentes ciências ocidentais. Ele gera formas de disciplinarização do corpo e da mente e está associado a um conjunto arbitrário de modos de objetivação/subjetivação de coisas e pessoas. Trata-se, além de uma epistemologia, de um fenômeno histórico e político já bem consolidado na história ocidental. Inclusive, a crítica epistemológica e filosófica à pretensão de uma parte desses objetivistas (históricos) em promover o pensamento objetivo como o único caminho para alcançar a verdade não é nenhuma novidade  e já vem sendo feita ha muito tempo.

Os estudos da ciência percorreram outro caminho, tão importante quanto o caminho da filosofia crítica e experimental de autores como Husserl, Heidegger e Rorty, entre outros. Ao revelar os mecanismos discursivos e materiais que estão na origem da construção dos objetos (ou fatos) científicos, os estudos mais etnográficos ajudaram a historicizar e culturalizar o próprio 'objetivismo', que até então era analisado, em grande parte, como um paradigma filosófico ou epistemológico.

Ao fazer isso, no entanto, em nenhum momento negou-se a própria existência do fenômeno. Ora, apesar dos objetos não serem um reflexo imediato de uma Natureza intocada, esses estudos descrevem a forma como as coisas (e até mesmo as pessoas) são tornadas 'objetos' nas mais diferentes ciências. A crítica, portanto, não é epistemológica, mas ontológica. O que os estudos sociais da ciência demonstraram é que os cientistas não somente pensam assim, mas agenciam o mundo a sua volta de forma a reproduzir sinais que indiquem a existência de fenômenos mais ou menos 'objetivos' (no sentido de 'pensados enquanto objetos de determinada ordem').

Quando se busca objetos, o resultado da busca não pode ser nada além de 'objetos'. De fato, o objetivismo não é ignorado ou simplesmente criticado, mas descrito minuciosamente, em detalhes, como um fenômeno humano. Inclusive, é esse duplo movimento de descrição e desvelamento que vai revelar, ao lado das práticas de purificação dos objetos, as práticas de hibridização de coisas e pessoas, de natureza e cultura. A crítica, neste caso, é essencialmente etnográfica.  

Antes de promovermos uma marcha (a priori, de ordem epistemológica) contra a ontologia naturalista, devemos enraizá-la no devir histórico e humano, livrando-a da pretensão de universalidade, inserindo-a em um conjunto mais amplo de ontologias possíveis, colocando-a novamente no seu devido lugar. Somente essa atitude irá nos revelar os aspectos positivos e negativos dessa forma de construir o conhecimento, o que os seus instrumentos capturam e o mundo de coisas, pessoas, sentimentos, forças, linhas dispersivas e rebeldes,  que não são capturadas por essa malha fina. Nesse percurso, algumas questões iniciais são fundamentais:

Quais são os pressupostos ontológicos dos cientistas brasileiros, nas diferentes áreas do conhecimento? Como esses pressupostos estabelecem uma relação de circularidade com os aparelhos e os sinais que permitem a sua objetivação nas instituições de pesquisa? Quais os modos de subjetivação colocados em prática para sustentar esses objetos? Quais são os instrumentos de coleta, produção e sistematização de dados e quais são as suas implicações no processo de produção dos objetos científicos? Como os fatos científicos são construídos dentro e fora do laboratório?

O pano de fundo para a elaboração dessas questões foram enunciadas pela primeira vez em um livro germinal no campo dos estudos da ciência, Vida de Laboratório, publicado ao final da década de 1970. Nesse livro, fazendo uso da 'etnometodologia", Latour e Woolgar acompanham o cotidiano de um laboratório, descrevendo o seu funcionamento e os aparelhos e instrumentos utilizados para a construção dos fatos científicos. Descrever os processos coletivos que estão na origem da construção da objetividade é uma tarefa explicitamente proposta pelos próprios autores:

"Mais importante que o respeito por um 'vivido' tantas vezes apresentado, uma única questão antropológica domina este relato: como a objetividade que não tem a sociedade por origem é produzida por essa sociedade? Para falar como Bachelard, como é feito um fato? Para falar como Serres (1987), como o objeto chega ao coletivo? Para falar como Shapin e Schaffer (1985), como a política da experiência produz uma experiência infinitamente distante de toda política? Para dizer como Bloor, como o conteúdo emerge de seu contexto? É unicamente com relação a essa questão diversamente formulada que se deve julgar os limites desta primeira pesquisa de campo" (1979: 34).   

Conforme Latour demonstrou muito bem em um livro posterior - Jamais Fomos Modernos (1991) - apesar do trocadilho do título, muito mais do que desconstruir os grandes divisores da modernidade, o etnógrafo da ciência deve estar comprometido com a descrição do funcionamento desses grandes divisores e na relação tensa e contraditória entre as práticas de hibridismo e purificação. Afinal, negar discursivamente a existência do objetivismo científico não resulta também no velamento das relações de poder que ele produz e que o produzem, exatamente aquilo que se pretende revelar ou descrever?

A etnografia da ciência em ação...

O Departamento de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP) adquiriu recentemente um supercomputador, avaliado em mais de US$ 1 milhão e composto por três torres do tamanho de geladeiras domésticas que, juntas, pesam cerca de 3 toneladas. Essa máquina computacional possui mais de 2 mil núcleos de processamento de dados, voltados exclusivamente para pesquisas astronômicas mundiais. Segundo o astrofísico Alex Carciofi, nenhuma outra instituição da área está equipada com essa capacidade de processamento de dados, tanto no que se refere à quantidade, como também no que se refere à capacidade de correlação, sistematização e cálculo de informações matemáticas. Esse computador, conforme anunciado pelos astrofísicos paulistas, tem a capacidade de aumentar "o grau de realismo físico" e rodar um maior número de "equações matemáticas".

O investimento é justificado pelos pesquisadores devido à "importância dos modelos matemáticos" para as pesquisas astrofísicas, incluindo também os estudos da teoria do multiverso. Tanto as equações como os aparelhos que as produzem são utilizadas diariamente nas instituições de pesquisa de diferentes áreas do conhecimento, em atividades cotidianas.

Mesmo os cosmólogos e astrólogos que defendem a existência de múltiplos mundos ou universos, fazem isso a partir de equações e modelos matemáticos, com o auxílio de poderosas máquinas de cálculo e computação como esta. De fato, a hipótese de múltiplos universos resulta do objetivismo científico tanto quanto do mono-naturalismo, pois é a mathesis (enquanto ciência numérica) que fornece os meios e a linguagem para a tradução e produção das informações e do conhecimento.

É claro que o objetivismo não está sozinho, pois ali, no laboratório, este templo sagrado das ciências ocidentais, outras formas de conhecimento não domesticadas, da ordem das qualidades sensíveis, também estão em ação, entrando em maior ou menor tensão com as equações matemáticas geradas pelos aparelhos. Muito mais do que negar o pensamento dos cientistas e seus pressupostos, devemos analisar como os processos de purificação e hibridização, de objetivação e subjetivação, entram em ralação nas instituições de pesquisa. Para isso, é necessário e fundamental fazer uma etnografia das ciências e, principalmente, etnografia simétrica, comprometida em levar a sério o que as pessoas dizem e pensam sobre o que estão fazendo, além de observar o que elas estão fazendo na prática.    

Da mesma forma, a maior parte das instituições de pesquisa, assim como das atividades e práticas científicas em andamento em diferentes regiões do Brasil e do mundo, trabalha com os pressupostos do objetivismo científico, construindo conhecimentos, fatos, objetos, produtos, relações de poder, etc,  a partir de informações quantitativas, cálculos matemáticos, gráficos e equações numéricas.

Tendo em vista que uma das maiores tarefas da etnografia da ciência é experimentar com o pensamento dos cientistas, a sua linguagem conceitual, seus aparelhos e objetos de trabalho, a crítica (pelo menos a priori) ao objetivismo científico torna-se anti-produtiva, além de extremamente assimétrica do ponto de vista epistemológico. Afinal, desconsiderar ou desautorizar o pensamento nativo é uma atitude bastante moderna, para não dizer modernizante. Antes de pregarmos a desconstrução do naturalismo ocidental, devemos fazer etnografia e acompanhar a ciência em ação.      

sábado, 24 de março de 2012

A reprodução do pensamento autoritário

"Como chegar a esta estrutura inconsciente?  (...)  Mostrando instituições que se transformam, esta, sozinha, permite destacar a estrutura subjacente a formulações múltiplas, e permanente através de uma sucessão de acontecimentos. (...) Assim, a etnologia não pode permanecer indiferente aos processos históricos e às expressões mais altamente conscientes dos fenômenos sociais. (...) Sua finalidade é atingir, além da imagem consciente e sempre diferente que os homens formam de seu devir, um inventário de possibilidades inconscientes, que não existem em número ilimitado; e cujo repertório e as relações de compatibilidade ou incompatibilidade que cada uma mantém com todas as outras fornecem uma arquitetura lógica a desenvolvimentos históricos que podem ser imprevisíveis, sem nunca ser arbitrários". 

História e Etnologia - Lévi-Strauss 

Diante da crença na linearidade da história, outro efeito do mito do progresso nacional, fatos extremistas como os planos de fascistas contra estudantes de ciências sociais da Universidade de Brasília revelam que o pensamento autoritário forjado por um Estado Ditatorial não desapareceu com os militares, mas continua sobre outras formas, disperso nas micro-relações diárias, na atitude de pessoas comuns, emergindo em surtos aparentemente isolados, mas constantes no cotidiano nacional. A intolerância diante da opinião política e ideológica do 'outro' é o reflexo de uma atitude comum em diversos setores da nossa sociedade: a incapacidade de refletir sobre os eventos que marcaram e continuam marcando a vida nacional. As informações são substituídas da arena pública numa rapidez impressionante. Os fatos se sucedem com tamanha rapidez que não há tempo para a reflexão.

Já tive a oportunidade de comentar aqui as reportagens fascistas de revistas como a Veja, formuladas a partir de mentiras e informações imprecisas, alimentando a incerteza diante de conquistas importantes dos índios, ribeirinhos e povos tradicionais que vivem no território brasileiro. A fábula midiática incita o ódio e o rancor diante da diversidade de opiniões. Com isso, todos perdemos. No caso de Brasília, salvaram-se em tempo os estudantes de um possível massacre. Mas estaremos realmente protegidos de outros surtos como este?

O pensamento autoritário não é uma particularidade do extremismo político e ideológico, pois está presente também na atitude fascista diante da diversidade sexual, racial e religiosa. Afinal, acompanhamos 'ao vivo' cenas de violência e preconceito gratuito: ataques contra homossexuais na Avenida Paulista; espancamentos de negros, mendigos e prostitutas; assassinatos de lideranças indígenas e ribeirinhas; a emergência de forças paramilitares nos morros cariocas; a violência e a irresponsabilidade no trânsito; a 'parceria' entre as forças de segurança pública, os políticos e os criminosos.

No Brasil como em outros países de democracia recente, a política é um campo de batalha que produz novas vítimas a todo momento. E uma parte da população assiste a tudo isso como se estivesse diante de um cenário cinematográfico. Junto com a reprodução prática da mentalidade e do comportamento autoritário, alimenta-se no imaginário nacional a crença no 'progresso' e no 'desenvolvimento'. Acreditamos estar 'evoluindo', mesmo sem saber ao certo se essa suposta evolução nos conduz ao passado ou ao futuro.  

É a mesma lógica que incita o intervencionismo autoritário do governo diante dos ribeirinhos e povos indígenas, passando por cima dos seus direitos constitucionais, em defesa do grande capital e do lucro das grandes empresas do setor hidroelétrico. Todos sabemos que Belo Monte é apenas a ponta do iceberg. Por trás desta obra reside todo um vasto esquema de corrupção financiado politicamente por Sarney e seus mandatários. É esse mesmo esquema que incita o descaso com o meio ambiente, a destruição das florestas e dos rios em nome de um produtivismo agro-industrial voltado para o mercado externo, onde os grandes fazendeiros e grileiros são os únicos que lucram. Diante disso, assistimos a uma substituição da biodiversidade pelo 'mono-agro-culturalismo', no lugar de plantas e animais, agora vemos vacas e bois espalhando-se pela Amazônia. Um exército bovino em marcha contra a sociobiodiversidade.

O 'desenvolvimento', neste caso, tem um objetivo muito específico: reproduzir as forças do colonialismo interno. De fato, estamos diante de uma forma de pensar a política e a sociedade forjada ainda nos primeiros séculos de domínio colonial: consumir com nossos bens naturais e culturais em nome do benefício e do lucro privado de uma elite que vê o Brasil como uma fonte de riqueza pessoal.

Mas o pensamento autoritário produz árvores a partir de antigos rizomas: a militante de ontem vira a tecnóloga de hoje! Na superficialidade da mudança histórica, nos interstícios do 'progresso' e do 'desenvolvimento nacional', esconde-se a lógica da reprodução estrutural de mentalidades autoritárias, agora camufladas por trás de um social-nacionalismo tupiniquim. O autoritarismo pseudo-nacionalista (porque extremamente colonialista), promove e incita o descaso para com as demandas dos povos indígenas e tradicionais. Os movimentos sociais estão fora da pauta do governo, que age para barrar toda e qualquer resistência a sua política desenvolvimentista.

Com isso, a sociedade brasileira dá um exemplo etnográfico claro de que as mudanças políticas e institucionais não resultam, necessariamente, em mudanças de mentalidade. Quanto mais tudo parece mudar, mais as coisas tendem a se reordenar de forma a reproduzir tendências e mentalidades 'profundas', que agem inconscientemente (ou conscientemente), ali onde a razão é subvertida pela emoção e o desejo.


quarta-feira, 21 de março de 2012

Corpo e Poder - Michel Foucault

"Como sempre, nas relações de poder, nos deparamos com fenômenos complexos que não obedecem a forma hegeliana da dialética. O domínio, a consciência do seu próprio corpo só puderem ser adquiridos pelo efeito do investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o desenvolvimento muscular,a  nudez, a exaltação do belo corpo... Tudo isto conduz ao desejo de seu próprio corpo através de um trabalho insistente, obstinado, meticuloso, que o poder exerceu sobre o corpo das crianças, dos soldados, sobre o corpo sadio. Mas, a partir do momento em que o poder produziu este efeito, como conseqüência direta de suas conquistas, emerge inevitavelmente a reivindicação de seu próprio corpo contra o poder, a saúde contra a economia, o prazer contra as normas morais da sexualidade, do casamento, do puder. E, assim, o que tornava forte o poder passa a ser aquilo por que ele é atacado... O poder penetrou no corpo, encontra-se exposto no próprio corpo... Lembrem-se do pânico das instituições do corpo social (médicos, políticos) com a ideia da união livre ou do aborto... Na realidade, a impressão de que o poder vacila é falsa, porque ele pode recuar, se deslocar, investir em outros lugares... E a batalha continua".

Poder - Corpo - Michel Foucault (Microfísica do Poder)     

terça-feira, 20 de março de 2012

Corpo e Metamorfose - Michel Serres

"Caminho sobre um solo cuja inclinação se eleva suavemente. Em um determinado momento, paro e 'ponho mãos à obra'; a verdadeira montanha começa e eu a escalo. A partir do momento em que meu dorso se inclina, volto a ser quadrúpede? Quase: meu corpo se altera, os pés transformam-se, as mãos e as duas presas manuais passam a garantir o equilíbrio. O Homo erectus retorna ao arcaico quadrúmano de quem descende. Essa consternadora recordação se fez tão sombria em mim que não temo mais falar do animal: lembro-me de quem fomos.

(...) Em contrapartida, a linguagem escrita ou falada repetida sem nenhum risco faz proliferar pessoas irrefletidas que, imóveis, se agitam e se reproduzem. Neste caso, por mensagens mortas, o outro se reduz a nada, assim como a coisa se reduz a seus suportes, cera, tela ou papel e, enfim, a si mesmo, a seus neurônios, ao eu, ao pensamento. O risco que a verdade corre desaparece no instante em que o mundo inimitável exige posições, atos e movimentos cuja pertinência ele imediatamente sanciona.

(...) Eu nunca soube explicar o eu nem descrever a consciência. Quanto mais penso, menos sou; quanto mais eu sou, menos penso e menos ajo. Não me busco como sujeito, projeto tolo; solitários, as coisas e os outros se encontram. Entre eles encontra-se meu corpo, um pouco menos coisa e muito menos outro.

(...) Em contrapartida, quando as mãos se agarram à rocha até sangrarem, quando o peito, o ventre, as pernas e o sexo ficam paralelos à parede, quando em conjunto as costas, os músculos, os sistemas nervoso, digestivo e simpático participam sem reservas da abordagem física do relevo, em uma relação de luta aparente e de sedução real, do mesmo modo a pedra tocada perde sua dureza e, amada, ganha uma surpreendente doçura. A visão, mesmo ampla, perde o sentido de distância do sobrevôo e passa a interessar-se pelo corpo inteiro, como se a totalidade do organismo, agora lúcido, colaborasse com o olhar, enquanto os olhos ficam ligeiramente obscurecidos; aquilo que do alto continua a ser espetáculo passa a integrar o corpo cuja estatura aumenta nas dimensões gigantes do mundo. (...) O corpo em movimento federa os sentidos e os unifica nele. Essa visão corporal global e esse toque, cujo maravilhoso poder de transubstanciação transformam o paredão rochoso em matéria mole e fibrosa, continuam sempre a produzir encantamento, mesmo na ausência tácita de linguagem e música".

Variações sobre o corpo - Michel Serres          

sábado, 17 de março de 2012

Seminário "Teoria Antropológica e Etnologia" - UFU

Nesta terça feira, dia 20 de março de 2012, vou apresentar a minha pesquisa - "Redes Sociotécnicas, Práticas de Conhecimento e Ontologias na Amazônia: tradução de saberes no campo da biodiversidade" - no âmbito do seminário "Teoria Antropológica e Etnologia", uma realização do Núcleo de Pesquisa em Ciências Sociais (NUPECS/UFU). Também estarão apresentando suas pesquisas os professores Marcel Mano, Rodrigo Barbosa Ribeiro e Claudelir Correa Clemente. O evento irá ocorrer as 14 horas, no Anfiteatro do bloco 50D, campus Santa Mônica, na Universidade Federal de Uberlândia.

A participação neste seminário representa um ponto de partida para o estabelecimento de um Grupo de Pesquisa em Antropologia Simétrica no âmbito do NUPECS-UFU, assim como a continuidade dos meus estudos sobre redes sociotécnicas na Amazônia através da elaboração de um projeto no âmbito do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia.

Além desse projeto, também estou elaborando outra iniciativa na área de etnologia Kayapó, com o objetivo de desenvolver pesquisas na área de conhecimentos tradicionais e biodiversidade em parceria com o departamento de antropologia da Universidade de Maryland e a Associação Floresta Protegida.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...